Capa da publicação Incidente de resolução de demandas repetitivas e valorização dos precedentes
Capa: Iano Andrade/Folha de Pernambuco
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Incidente de resolução de demandas repetitivas.

Considerações sob a óptica da crescente valorização dos precedentes judiciais

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04/02/2023 às 16:10
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Analisa-se a evolução do papel da jurisprudência e a formação do sistema de precedentes judiciais.

Resumo: Este artigo analisa o incidente de resolução de demandas repetitivas, instrumento processual inovador instituído pelo novo Código de Processo Civil, enfatizando-se o contexto da crescente valorização dos precedentes judiciais no ordenamento jurídico brasileiro. Imprescindivelmente explora também a evolução do papel da jurisprudência, com o objetivo de demonstrar os principais motivos pelos quais foi estabelecido um sistema de precedentes judiciais no ordenamento, em que se destaca a previsão a respeito do incidente de resolução de demandas repetitivas. Em seguida, aborda o incidente, evidencia seus aspectos mais importantes e delineia as fases de seu processamento. Por fim, busca-se explanar sua natureza jurídica.

Palavras-Chave: Incidente de resolução de demandas repetitivas. Precedente Judicial. Novo Código de Processo Civil.

Sumário: INTRODUÇÃO; 1 CONCEITO DE PRECEDENTE JUDICIAL; 1.1 A INTRODUÇÃO DO SISTEMA DE PRECEDENTES JUDICIAIS NO BRASIL COM O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL; 2 MICROSSISTEMA DE FORMAÇÃO CONCENTRADA DE PRECEDENTES OBRIGATÓRIOS: ARTIGO 927 DO CPC/15; 2.1 O PRECEDENTE JUDICIAL VINCULANTE OU OBRIGATÓRIO; 2.2 EVOLUÇÃO HISTÓRICA DOS PRECEDENTES NOS SISTEMAS DA COMMON LAW E DA CIVIL LAW; 3 A CRESCENTE VALORIZAÇÃO DA FORÇA VINCULANTE DO PRECEDENTE JUDICIAL NO BRASIL; 4 O INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE DEMANDAS REPETITIVAS; 4.1 AS FASES DO IRDR 4.1.1 Instauração e admissão; 4.1.2 Instrução; 4.1.3 Julgamento; 4.1.4 Aplicação e revisão da tese jurídica; 4.2 NATUREZA JURÍDICA DO IRDR; CONSIDERAÇÕES FINAIS; REFERÊNCIAS.


INTRODUÇÃO

Os órgãos do Poder Judiciário abarcam uma alta quantidade de ações continuamente. Esse fenômeno da excessiva judicialização, uma das causas do congestionamento da máquina judiciária brasileira, está principalmente relacionado à massificação dos conflitos, inserida em um contexto de globalização e de sociedade de consumo, bem como à democratização do acesso à justiça ocorrido após a vigência da Constituição Federal de 1988.

Segundo dados levantados pelo Conselho Nacional de Justiça no relatório Justiça em Números de 20191, foram mais de 28 milhões de ações ajuizadas no ano de 2018, além daquelas em tramitação que ainda não transitaram em julgado, que somam aproximadamente 78 milhões.

Deste quantitativo de processos pendentes, mais de 2,5% estão sobrestados, segundo dados do CNJ2, por versarem sobre temas repetitivos, aguardando soluções idênticas que garantam a segurança jurídica.

Diante deste cenário, surgiu a necessidade de implementação no ordenamento jurídico brasileiro de novas técnicas destinadas a solucionar essa litigiosidade, que muitas vezes se mostrava repetitiva. Assim, foram promovidas alterações legislativas no Código de Processo Civil de 1973, modificando o regime dos recursos extraordinário e especial repetitivos.

É de se destacar, no entanto, a instituição do sistema de precedentes de observância obrigatória no processo civil pelo Novo Código de Processo Civil. Conforme demonstrou a experiência, as técnicas processuais existentes não foram totalmente eficazes para combater a litigiosidade, e os órgãos judiciais continuaram assoberbados. Eram necessárias técnicas diferenciadas para se atingir este fim.

Para tentar reduzir significativamente o quantitativo desses processos, criaram-se técnicas processuais aptas para tanto, dentre elas o Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas, que tem como principais objetivos a redução do número de processos que tramitam no Poder Judiciário e a uniformidade da interpretação do direito e, por conseguinte, a garantia do princípio constitucional da isonomia e da segurança jurídica.

O instituto do IRDR e suas especificidades e inovações serão capazes de efetivamente proporcionar celeridade processual e o tratamento isonômico dos jurisdicionados? Este é um tema muito debatido pela doutrina, que acredita ser necessário esperar a consolidação do instituto na prática judiciária, para poder analisar se efetivamente ele está atingindo seus objetivos ou não, e tecer apontamentos mais aprofundados. Por ora, é essencial a imersão nos estudos sobre o tema, o que se passa a fazer adiante.


1. Conceito de precedente judicial

O precedente judicial, segundo Fredie Didier Jr., Paula Sarno Braga e Rafael Alexandria de Oliveira,” é a decisão judicial tomada à luz de um caso concreto, cujo elemento normativo pode servir como diretriz para o julgamento posterior de casos análogos” 3.

Nas palavras de Marcos Paulo Pereira Gomes, “o instituto dos precedentes judiciais tem natureza jurídica de Direito Público, pertence ao ramo do Direito Processual Civil e pode alcançar o status de norma jurídica” 4.

Inicialmente, é necessário pontuar uma breve diferenciação entre precedente e decisão judicial. O precedente sempre advém de uma decisão judicial. Esta, no entanto, nem sempre causará a formação de um precedente, como por exemplo quando aplica lei não controversa, cujo comando legal é bem determinado e compreendido por seus aplicadores, ensejando apenas uma interpretação harmônica, decorrente do próprio texto normativo.

Da decisão que se vislumbra o nascimento de um precedente pode ser observado duas partes essenciais que a constituem. A primeira, e mais importante já que diretamente relacionada à força vinculante, é a Ratio Decidendi, ou razão de decidir, em que se verificam os motivos determinantes da decisão e os seus fundamentos jurídicos relevantes.

A segunda é o chamado Obter Dictum, que pode ser entendido como aqueles argumentos que não foram essenciais ou principais para a construção da decisão, revelando-se secundários, e, portanto, não dotados de força vinculante. Estes são dois conceitos fundamentais que permitem a melhor compreensão do instituto jurídico aqui discutido.

Pode-se afirmar que o efeito vinculante do precedente é o seu aspecto de maior relevância para o ordenamento jurídico brasileiro na atualidade, uma vez que traz consequências jurídicas tanto para os jurisdicionados, que recorrentemente tem a apreciação das suas demandas prejudicada pela morosidade do Poder Judiciário, violando-se o princípio constitucional da duração razoável do processo previsto no artigo 5º, inciso LXXVIII5, quanto para os magistrados, que ficam vinculados aos precedentes emanados dos órgãos jurisdicionais aos quais se submetem, conforme concebe o Enunciado 170 do Fórum Permanente de Processualistas Civis - FPPC6.

1.1 A INTRODUÇÃO DO SISTEMA DE PRECEDENTES JUDICIAIS NO BRASIL COM O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL

Com a promulgação em 16 de março de 2015 através da Lei nº 13.105 e a entrada em vigor em 18 de março de 2016 do novo Código de Processo Civil instituiu-se no Brasil um sistema de precedentes judiciais vinculantes ou obrigatórios. Vale ressaltar que, anteriormente, conforme será detalhado em momento oportuno no presente artigo, já se verificava em nosso sistema certa previsão a respeito da força vinculante de decisão judicial, como por exemplo, a possibilidade de criação de súmulas vinculantes do Supremo Tribunal Federal – STF, instituto criado pela Emenda Constitucional n. º 45 de 08/12/2004, que por sua vez, não se confunde com o conceito de precedente judicial.

Sobre este tema, assevera Lilese Barroso Benevides de Magalhães que:

Em verdade, pode-se dizer que o CPC/15 organiza as regras já existentes em nosso sistema, (...) associando os princípios da legalidade, da segurança jurídica, da duração razoável do processo, da proteção da confiança e da isonomia como pressupostos valorativos da obrigatoriedade do sistema de precedentes judiciais. A ideia é a uniformização da jurisprudência dos tribunais superiores, de modo a dar ao jurisdicionado maior previsibilidade das demandas judiciais e reduzir o nível de insegurança existente pela possibilidade de decisões díspares em casos judiciais em que a semelhança dos fatos materiais indique a aplicação da mesma solução judicial7.

De tal citação corrobora-se que de fato já existia no sistema processual brasileiro uma certa aplicação de regras semelhantes aos precedentes, o que será exposto mais à frente. Entretanto, a melhor estruturação e organização dos precedentes só foram conquistadas com a positivação pelo CPC/15 deste conjunto de técnicas de aplicação de precedente.

É indiscutível que um dos objetivos precípuos da adoção deste sistema é combater a velha conhecida morosidade do Poder Judiciário. Marcos Paulo Pereira Gomes8 é contundente ao tratar desse tema, apontando que o uso dos precedentes favorece o jurisdicionado, se feito com responsabilidade e buscando entregar prestação jurisdicional satisfatória, prezando pela segurança jurídica e pela celeridade processual.

Cristiane Maria de Lima Curtolo9, porém, entende de forma diversa ao afirmar que a introdução do sistema de precedentes judiciais não é capaz de solucionar os problemas da insegurança jurídica e demora na prestação jurisdicional enfrentada pela nossa sociedade, uma vez que não confronta o verdadeiro problema, relativo à qualidade das decisões e, por conseguinte, direitos fundamentais podem vir a ser suprimidos.


2. Microssistema de formação concentrada de precedentes obrigatórios: artigo 927 do CPC/15

Conforme já mencionado, o Código de Processo Civil de 2015 introduziu no ordenamento jurídico brasileiro um sistema de precedentes judiciais estruturado e organizado. Um dos seus aspectos mais notáveis é a criação do mecanismo processual denominado de Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas, que, em conjunto ao Incidente de Assunção de Competência (IAC), que encontra correspondência no CPC/73 em seu artigo 555, §1º10, sendo este remodelado pelo novo Código no artigo 94711, e aos também já conhecidos recursos especial e extraordinário repetitivos, formam o microssistema de formação concentrada de precedentes obrigatórios 12.

O IAC, reformulando a regra de mesma essência já existente no Código de Processo Civil de 1973, é instituto processual que visa à uniformização da jurisprudência, evitando que o mesmo tribunal profira decisões divergentes relativas à mesma matéria. Ele possibilita que o colegiado competente de um tribunal o instaure quando o julgamento de recurso, de remessa necessária ou de processo de competência originária envolver relevante questão de direito, com grande repercussão social, sem repetição em múltiplos processos, conforme o artigo 947 do Código de Processo Civil de 2015.

Luiz Guilherme Marinoni, Sérgio Cruz Arenhart e Daniel Mitidiero (2017, p. 603) afirmam que a finalidade do instituto é clara, operando em duas frentes, apesar de destinadas a um mesmo objetivo. A primeira é relativa à consolidação da compreensão do tribunal a respeito de relevante questão de direito, por meio de análise feita por órgão com atribuição para tanto. A segunda objetiva a prevenção de divergência de interpretação entre seus órgãos fracionários a este respeito, que ficarão vinculados ao acórdão proferido, segundo o artigo 947, §3º do CPC/1513, bem como aclarar a orientação para a população. É, portanto, técnica de compatibilização das decisões complementar ao incidente de resolução de demandas repetitivas14.

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Ante a evidenciada complementariedade entre o IRDR e o IAC, temos que a diferença mais relevante entre esses dois institutos é a existência ou não de repetição em múltiplos processos em que se controverta questão de direito. Assim, existindo referida repetição, é adequado que se instaure o incidente de resolução de demandas repetitivas.

Neste sentido, mais uma vez merece ser colacionado o ensinamento de Luiz Guilherme Marinoni, Sérgio Cruz Arenhart e Daniel Mitidiero:

Ademais, é requisito para a aplicação do instituto – a fim de não sobrepô-lo a outros instrumentos com função semelhante e, em particular, ao incidente de resolução de demandas repetitivas (...) – a inexistência de repetição da questão a ser submetida ao incidente em outros processos. A questão objeto desse incidente, portanto, deve ser isolada, sem efetiva condição de repetir-se em diversos outros processos. Assim é porque, havendo essa repetição, é caso de instaurar-se o incidente de resolução de demandas repetitivas, que tem como pressuposto essencial exatamente a efetiva repetição da questão em várias demandas (art. 976 e seguintes)15.

Também deve ser mencionada a semelhança entre os institutos acima tratados, que repousa na inequívoca força vinculante do acórdão proferido no âmbito do incidente de assunção de competência, – uma vez que vincula os juízes e os órgãos fracionários do tribunal – do mesmo modo como ocorre com a decisão que julga o incidente de resolução de demandas repetitivas. É expressa previsão do artigo 927, III, do CPC/1516, que também se aplica ao julgamento de recursos excepcionais repetitivos.

O julgamento de recursos extraordinário e especial repetitivos, previsto no artigo 1.036 e seguintes do CPC/1517, é técnica de julgamento por amostragem em que, diante de multiplicidade de recursos que versem sobre idêntica questão de direito, o Supremo Tribunal Federal ou o Superior Tribunal de Justiça fará a seleção de recursos representativos da controvérsia, permitindo que seja proferida decisão que será aplicada a estes recursos que foram afetados para julgamento paradigmático e aos demais recursos que foram sobrestados nos tribunais de origem. Necessário apontar que é incabível a instauração do IRDR quando um dos tribunais superiores no âmbito de sua competência já tiver afetado recurso para definição de tese sobre questão repetitiva, conforme artigo 976, § 4º do CPC/1518.

O novo Código reforça o prestígio à força vinculativa do precedente ao prever o cabimento de reclamação quando inobservado o acórdão em IAC e IRDR, na forma prevista no artigo 988, IV do CPC/1519. Enfatize-se, desde logo, que a desobediência à súmula vinculante também desafia a reclamação, sendo nítido que já existia previsão a respeito da força vinculante no direito brasileiro.

Com isso, constata-se o esforço do legislador em combater a divergência jurisprudencial excessiva, criando o IRDR e repaginando as técnicas processuais já existentes, sobretudo, ao prever a força vinculante obrigatória do precedentes emanados através da utilização das referidas técnicas, a fim de uniformizar a jurisprudência, cumprindo o que manda o artigo 926 do Código de Processo Civil vigente20.

2.1 O PRECEDENTE JUDICIAL VINCULANTE OU OBRIGATÓRIO

Precedente judicial é toda decisão judicial que tem por característica o amplo debate a respeito de certa questão jurídica, de modo a restar bem delineada a tese jurídica nela estabelecida, tornando-se apta a ser aplicada no julgamento de casos futuros e semelhantes, dada a relevância e abrangência da sua análise.

Sobre o tema, Daniel Mitidiero aduz que:

O novo Código de Processo Civil introduziu o conceito de precedentes no direito brasileiro. Os precedentes não são equivalentes às decisões judiciais. Eles são razões generalizáveis que podem ser identificadas a partir das decisões judiciais. O precedente é formado a partir da decisão judicial e colabora de forma contextual para a determinação do direito e para a sua previsibilidade21.

Todo precedente judicial é dotado de força vinculante, isto é, ao se falar em precedente, pressupõe-se a existência da sua vinculatividade. Por outro lado, na concepção de Luiz Guilherme Marinoni, Sérgio Cruz Arenhart e Daniel Mitidiero22, é errôneo referir-se a decisões de Tribunais de Justiça e de Tribunais Regionais Federais como precedentes, posto que somente o STF e o STJ, Cortes Supremas, produzem precedentes. Os autores esclarecem a corriqueira confusão entre os termos “precedente” e “jurisprudência”, apontando sucintamente que “apenas o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça formam precedentes. Os Tribunais Regionais Federais e os Tribunais de Justiça dão lugar à jurisprudência”.

Contudo, Sofia Temer diverge neste ponto, sobretudo no tocante ao tratamento do incidente de resolução de demandas repetitivas, o que parece restar claro no seguinte trecho da sua obra intitulada “Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas”:

Parece-nos, então, que ao pretender distanciar o IRDR do “precedente” [...] criou-se uma simples negação de questões basilares do novo instituto, notadamente da sua pretensão de garantir previsibilidade na resolução de conflitos, orientando a sociedade [...] É que, sendo essas características ou consequências do “precedente”, limitado às Cortes Supremas, Marinoni nega sua importância para o IRDR, com o que discordamos23.

É imperioso distinguir o efeito vinculante do precedente da eficácia erga omnes. Como se sabe, a vinculação do precedente não se limita a sua parte dispositiva, abrangendo as razões determinantes presentes na fundamentação, isto é, a Ratio Decidendi, que é o que verdadeiramente forma um precedente. A eficácia erga omnes, por sua vez, se limita à parte dispositiva da decisão. Traduz-se em eficácia que é válida contra todos. Refere-se, portanto, à validade da lei ou de decisão judicial, que deve ser observada por qualquer pessoa.

No que tange o IRDR e o efeito vinculante de seu precedente, destaque-se a esclarecedora doutrina de Humberto Theodoro Júnior:

Por não ocorrer composição de lide, o acórdão pronunciado pelo tribunal na resolução do incidente de demandas repetitivas não faz coisa julgada material. Terá, porém, força vinculativa erga omnes, fazendo que a tese de direito assentada seja uniformemente aplicada a todo aquele que se envolver em litígio similar ao retratado no caso padrão. Por outro lado, embora o enunciado paradigmático seja de observação obrigatória nos diversos processos individuais similares, não se pode cogitar de força executiva na espécie. É que nele não se procedeu à certificação da existência do direito ou da obrigação de ninguém. No incidente, enfim, “o que vincula é o próprio precedente que dali se origina. A projeção erga omnes não é dos efeitos da coisa julgada, mas da ratio decidendi”24.

2.2 EVOLUÇÃO HISTÓRICA DOS PRECEDENTES NO SISTEMA DA COMMON LAW E DA CIVIL LAW

É seguro afirmar que a common law é produto de circunstâncias histórico-políticas diversas daquelas vivenciadas pelos países da tradição romano-germânica. A França pré-revolucionária estava inserida em um contexto no qual os juízes, pertencentes à classe aristocrática da época e alinhados ao Estado Absolutista, utilizavam da atividade jurisdicional para fins de manutenção dos privilégios que o clero e os nobres possuíam. Insatisfeita com o excesso de privilégios conferidos à aristocracia, a classe revolucionária dá início à Revolução Francesa, que culminou no fim do Antigo Regime.

Dentre as demais consequências de cunho econômico, político e social, verifica-se também o surgimento de um modelo jurídico novo em que o monarca perde o poder absoluto e o Parlamento ganha destaque, uma vez que atua como representante da vontade do povo, elaborando as leis que são a expressão dessa vontade. Já a figura do juiz se enfraquece, visto que fica adstrito à determinação legal, tornando-se simples aplicador do texto preciso da lei, com vedação a qualquer atividade interpretativa.

Dessa forma, é criada uma imagem de segurança jurídica, assegurada pela norma escrita, capaz de garantir a igualdade entre todos os cidadãos, posto que representa a vontade do povo, bem como pela consequente limitação da atuação do juiz.

Nascido na Inglaterra, o sistema da common law, por sua vez, teve uma formação lenta, conforme a apreciação dos casos que eram submetidos às cortes e a própria formação dos precedentes, que, vale afirmar, se amoldavam às modificações sociais. Os costumes eram, evidentemente, a principal fonte do direito inglês. De forma contrária ao que ocorria na França, depositava-se confiança no juiz inglês, pois este também se opunha, junto ao Parlamento, ao poder absoluto do rei.

Assim, nota-se que o civil law sofreu uma forte transformação política que alterou o seu ordenamento jurídico, enquanto a common law foi construída de maneira mais linear, sem grandes rupturas.

Nessa esteira, a didática lição do doutrinador Hélio Ricardo Diniz Krebs, em sua obra Sistema de Precedentes e Direitos Fundamentais (2015, p. 85):

Com efeito, uma das grandes características do direito inglês, que tanto fascina os estudiosos, é o fato de que a Inglaterra nunca experimentou uma reviravolta política capaz de caracterizar um rompimento com o sistema tradicional, tal como ocorreu na França, com a Revolução de 1789, onde se assistiu a derrota do antigo regime (ancien régime), que foi substituído por um sistema radicalmente novo, (...).25.

No decorrer da evolução do direito inglês, por volta do século XIX, edificou-se a doutrina do stare decisis, que pode ser entendido como o respeito obrigatório aos precedentes. Se durante muito tempo o direito inglês valorizava a experiência judicial na construção do seu sistema jurídico, não é de se espantar que, a partir de certo ponto, os precedentes, recorrentemente citados pelos juízes em suas decisões, atingiram um grau de importância que fora reconhecida a sua força vinculante, criando-se, portanto, a doutrina dos precedentes. Em suma, os precedentes deixam de ser persuasivos e tornam-se vinculativos, horizontal e verticalmente.

Embora as duas tradições tenham origens distintas, há na atualidade uma expressiva comunicação entre elas, facilitada pelo fenômeno da globalização. O exemplo mais pertinente é a valorização da jurisprudência na civil law, bem como dos precedentes. Contudo, não é só a tradição romano-germânica que é influenciada pelo direito anglo-saxão, aquela também exerce influência sobre esta. A common law produz mais leis do que costumava em sua origem, enxergando a codificação como apta a prover segurança jurídica, assim como os precedentes o fazem.

Portanto, merece destaque o que expõe Sérgio Gilberto Porto:

Cumpre, outrossim, registrar que, hodiernamente, em face da globalização (...) observa-se um diálogo mais intenso entre as famílias romano-germânica e a da common law, onde uma recebe influência direta da outra. Da common law para civil law, há, digamos assim, uma crescente simpatia por algo que pode ser definido como uma verdadeira “commonlawlização” no comportamento dos operadores nacionais (...) a chamada “commonlawlização” do direito nacional é o que se pode perceber, com facilidade, a partir da constatação da importância que a jurisprudência, ou seja, as decisões jurisdicionais vêm adquirindo no sistema pátrio, particularmente através do crescente prestigiamento da corrente de pensamento que destaca a função criadora do juiz26.

Não restam dúvidas quanto à existência, vale dizer, histórica, de um sistema de precedentes obrigatórios na common law, tendo em vista que ele, conforme demonstrado, foi construído culturalmente, sem qualquer necessidade da atuação do legislador para fundá-lo. No caso do ordenamento jurídico brasileiro, houve a introdução dos precedentes vinculantes através de lei. Diante das dissemelhanças na incorporação dos precedentes aos dois sistemas jurídicos destacados, seria possível afirmar que a doutrina dos precedentes é igual em ambos?

De acordo com Georges Abboud, o artigo 927 do CPC/15 apresenta um rol de provimentos vinculantes, como exemplo, o acórdão proferido no julgamento do IRDR, que não correspondem ao genuíno precedente da common law 27.

Sob outra perspectiva, a introdução do sistema de precedentes no Brasil é encarada de forma mais otimista por Hélio Ricardo Diniz Krebs, que afirma que o novo Código de Processo trouxe um sistema de precedentes à brasileira, distinto daquele que existe na Inglaterra e nos Estados Unidos, sendo louvável essa positivação do que já ressoava na doutrina, considerando que durante décadas o Poder Judiciário falhou em conferir segurança jurídica28.

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Sobre a autora
Amanda Gibson Silva Pinto

Advogada. Bacharel em Direito pela Universidade Candido Mendes, Niterói.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GIBSON, Amanda Silva Pinto. Incidente de resolução de demandas repetitivas.: Considerações sob a óptica da crescente valorização dos precedentes judiciais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 28, n. 7157, 4 fev. 2023. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/97079. Acesso em: 27 abr. 2024.

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