Capa da publicação Incidente de resolução de demandas repetitivas e valorização dos precedentes
Capa: Iano Andrade/Folha de Pernambuco
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Incidente de resolução de demandas repetitivas.

Considerações sob a óptica da crescente valorização dos precedentes judiciais

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04/02/2023 às 16:10
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3. A crescente valorização da força vinculante do precedente judicial

O ordenamento jurídico brasileiro, filiado à tradição da civil law, produz, em sua maioria, precedentes judiciais de eficácia persuasiva. Isto porque esta tradição jurídica tem a lei como fonte formal e primária do direito e a jurisprudência considerada como fonte subsidiária ou indireta do direito.

Inobstante a jurisprudência não constar como fonte secundária na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro – LINDB, em seu artigo 4º, parte da doutrina, afastando-se da visão tradicional, reconhece-a como tal29.

Nessa perspectiva, o renomado jurista Miguel Reale (2009, p. 169) observa que não se pode negar à jurisprudência a categoria de fonte do Direito, uma vez que a norma legal é, no fundo, a sua interpretação, isto é, o entendimento da lei pelo magistrado. Desarrazoado é, então, que a jurisprudência ou o costume continuem a ser classificados como fontes acessórias ou secundárias30.

O precedente persuasivo é o precedente que se volta à formação do convencimento do magistrado, isto é, não há imposição em seu decidir, no sentido de observância obrigatória, mas sim potencial capacidade de influência no julgamento, podendo ser adotado se assim entendido como aplicável ao caso.

Patrícia Perrone Campos Mello e Luís Roberto Barroso ao tratarem dos tipos de eficácia dos precedentes judiciais no direito brasileiro assim delineiam a eficácia persuasiva:

Esta é a eficácia que tradicionalmente se atribuía às decisões judiciais em nosso ordenamento, em razão de sua própria raiz romano-germânica. Os julgados com essa eficácia produzem efeitos restritos às partes e aos feitos em que são afirmados, são relevantes para a interpretação do direito, para a argumentação e para o convencimento dos magistrados; podem inspirar o legislador; e sua reiteração dá ensejo à produção da jurisprudência consolidada dos tribunais. São, contudo, fonte mediata ou secundária do direito31.

A norma positivada, despontando como principal e imediata fonte do direito no cenário brasileiro, pautava a atuação do juiz restringindo a sua discricionariedade, revelando-se este um mero aplicador da lei.

Em que pese a preponderância da legislação como fonte primária do direito e a subsidiariedade da jurisprudência no nosso sistema jurídico, esta foi amplamente utilizada e desenvolvida ao longo da experiência jurídica, o que permitiu, consequentemente, o próprio desenvolvimento do precedente judicial no nosso sistema.

O processo civil brasileiro, durante muito tempo, comportou jurisprudência de eficácia meramente persuasiva, já que, conforme explanado, o cenário era de supremacia da lei. Entretanto, é necessário sinalizar a diferença entre os conceitos de precedente judicial e jurisprudência para então destacar a evolução do papel da jurisprudência ao longo das últimas décadas. Em seguida, será demonstrada a crescente valorização do precedente judicial.

O precedente judicial é proveniente de uma decisão judicial que trate de uma questão de direito de forma ampla e bem fundamentada. Já a jurisprudência não é sinônimo de precedente, pois aquela, na verdade, se refere a uma série de decisões proferidas em assonância por um tribunal. Destarte, a primeira diferença entre os dois conceitos é a pluralidade de decisões.

O precedente sempre possui eficácia vinculativa, enquanto a jurisprudência possui eficácia persuasiva. Saliente-se, todavia, que em certas hipóteses o novo Código empresta a força vinculante própria dos precedentes à jurisprudência das Cortes de Justiça, por exemplo, aos acórdãos em incidente de assunção de competência.

A criação das súmulas jurisprudenciais, entendidas como enunciados de caráter geral, no ano de 1963, através de alteração no Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal, já acusava a ascensão da jurisprudência, que se tornou importante mecanismo para combater o grande volume de processos que sobrecarregavam os julgadores. Tornou-se, logo, um verdadeiro método de trabalho32, posto que proporcionava de maneira fácil e rápida a consulta ao entendimento dominante da Corte Suprema pelos seus próprios ministros. De outro lado, apresentou tal ferramenta a função de promover a unidade do direito, própria das Cortes de Precedentes, de forma repressiva, uma vez que já houve interposição de recurso.

Desse modo, no momento histórico citado, tendo em vista a ausência de técnicas processuais preventivas codificadas para a uniformização do direito, o papel da jurisprudência ainda se revelava um tanto quanto acanhado. Porém, a instituição das súmulas de jurisprudência no âmbito do STF foi um marco da evolução da jurisprudência, que, decerto, fertilizou o solo para os vindouros avanços, especialmente os legislativos, de técnicas mais aptas e efetivas no combate à divergência jurisprudencial e à uniformização do direito.

Promulgado sob a ditadura militar, o Código de Processo Civil de 1973 é outro importante marco da valorização da jurisprudência como instrumento de uniformização do direito que, ao lado das já conhecidas técnicas preventivas como as súmulas de jurisprudência, trouxe a previsão de técnicas preventivas para que os órgãos de superposição exerçam sua primordial função de dar unidade ao direito, também conhecida como função nomofilácica33.

Acerca dessas inovações trazidas pelo Código Buzaid, leciona Daniel Mitidiero:

O Código de 1973, cuja vigência testemunharia uma paulatina transformação na teoria da interpretação judicial do direito, não só manteve técnicas repressivas para a uniformidade do direito, mas também instituiu técnicas preventivas para tanto. Além de conviver com o sistema de súmulas e de repetir o recurso de embargos infringentes (art. 530) e o recurso extraordinário (art. 541), incorporando ainda posteriormente o recurso especial e o recurso de embargos de divergência (art. 546), o Código de 1973 instituiu o incidente de uniformização de jurisprudência (art. 476), cuja função estava em viabilizar um “pronunciamento prévio” a respeito da interpretação de uma determinada questão. Vale dizer: obter um pronunciamento prévio que evitasse uma interpretação inadequada da questão pelo órgão encarregado de seu julgamento34.

A súmula vinculante, instituto jurídico criado pela Emenda Constitucional nº 45, de 08/12/2004, é figura emblemática da batalha travada pelo Poder Judiciário brasileiro em relação ao elevado número de processos que tramitam nos tribunais, sobrecarregando-os, especialmente no âmbito do STF, que busca através do referido instituto alcançar, verdadeiramente, a redução das demandas repetitivas que nele aportam.

Pode-se afirmar que a finalidade da súmula vinculante é assegurar a celeridade da prestação jurisdicional, princípio constitucional previsto no artigo 5º, inciso LXVVIII da Carta Magna35. Seja por trazer como consequência a improcedência liminar do pedido de causa que tenha pedido formulado contrário a enunciado de súmula do Supremo Tribunal Federal, na hipótese de dispensa da fase instrutória, conforme artigo 332, inciso I do CPC/1536, seja diante da inadmissibilidade de recurso extraordinário interposto quando a questão constitucional tida por violada não tenha sido debatida no acórdão recorrido, por contrariar direito sumular, conforme estampado na Súmula 282 do STF37, por exemplo, é certo que estamos tratando de um instrumento em que consta orientação jurisprudencial sedimentada da Corte Superior sobre determinada questão para prevenir tanto a disparidade de decisões sobre temas idênticos, promovendo a segurança jurídica, quanto para combater a morosidade do Judiciário, estimulando a celeridade processual.

Merece ser destacada a diferença entre o instituto da súmula vinculante e o instituto do precedente judicial, na medida em que aquele possui a característica própria de representar uma jurisprudência já consolidada e, ao mesmo tempo, gerar efeitos vinculantes de observância obrigatória, identicamente ao precedente.

Sobre a referida diferença, os autores Michel Roberto Oliveira de Souza e Juliana Sípoli Col explicam o que segue:

[...] nota-se a relação entre SV e o precedente judicial, já que aquela se trata de enunciado resultante de reiteradas decisões no mesmo sentido acerca de matéria constitucional, sendo tal entendimento de seguimento obrigatório para os demais órgãos do Poder Judiciário e da Administração Pública direta e indireta.

No entanto, o instituto da SV delineia-se de modo peculiar, pois, se por um lado possui a característica da observância obrigatória, tal como o precedente judicial, por outro, sintetiza diversas decisões reiteradas, o que a aproxima do conceito de jurisprudência[...].38.

Desse modo, é patente no decorrer das últimas décadas a promoção de diversas alterações legislativas, inclusive de índole constitucional, como a Emenda Constitucional nº 45/04, na busca da concretização da segurança jurídica e celeridade processual, subsidiando-se para tais fins do efeito vinculante do precedente, mormente com a instituição da súmula vinculante e com a adoção do microssistema de formação concentrada de precedentes no Código de Processo Civil de 2015.


4. O incidente de resolução de demandas repetitivas

O Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas, ou, de modo abreviado, IRDR, é um novo instituto processual inaugurado pelo Código de Processo Civil de 2015, com previsão no capítulo VIII, nos artigos 976 ao 987. É uma nova modalidade de solução de conflitos repetitivos, em que se busca resolver seriadas controvérsias que contenham questões de direito idênticas, tendo ainda como finalidade a estabilidade e coerência das decisões judiciais.

Inspirado pelo instituto do Musterverfahren do direito alemão, conforme asserido na Exposição de Motivos do CPC/1539, em que se tem um procedimento-modelo que vai gerar uma decisão “modelo” (Muster), destinada à resolução de diversos processos semelhantes.

Assim, o IRDR é o incidente processual criado pela nova legislação processual civil que possibilita, diante da efetiva repetição de demandas que contenham controvérsia sobre uma mesma questão exclusivamente de direito e da existência de risco à isonomia e à segurança jurídica, o cabimento de sua suscitação perante o Presidente do Tribunal.

É preciso ainda que se tenha ausência de afetação de recurso em tribunal superior para definição de tese sobre questão de direito repetitiva (requisito negativo de admissibilidade). Esta é a previsão do artigo 976, incisos I e II e § 4º do CPC/1540.

Ainda sobre os requisitos para que seja cabível o IRDR, especificamente o primeiro requisito, previsto no artigo 976, inciso I do CPC/1541, é importante apontar que o Código Processual exige que, efetivamente, se tenha multiplicação de processos com a mesma questão de direito controvertida, material ou processual, o que justifica a exigência cumulativa dos requisitos, sobretudo da existência de risco à isonomia e à segurança jurídica, visto que não se vislumbra risco a este último princípio se não há repetição de demandas de fato.

Logo, o Código descartou a possibilidade de que a potencial repetição de processos permitisse o cabimento e a instauração do IRDR, o que afastou o instituto de um caráter preventivo, revestindo-o, na verdade, de uma natureza repressiva, posto que a mesma questão jurídica precisa ter sido decidida em várias ações.

Luiz Guilherme Marinoni, Sérgio Cruz Arenhart e Daniel Mitidiero42 sucintamente explicam que “não basta o potencial risco de multiplicação. Ou seja, não basta que a questão de direito tenda a repetir-se em outras causas futuras. É necessário que a reprodução dessa questão seja concreta, efetiva, existente já no momento em que é instaurado o incidente”.

Outro ponto em que há divergência na comunidade jurídica é o cabimento ou não do IRDR que se origina de processo com tramitação na primeira instância. Parte da doutrina entende que o instituto somente é cabível diante da existência de recurso ou processo no tribunal, até mesmo em razão da literalidade do parágrafo único do artigo 978 do novo CPC43.

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Aluisio Gonçalves de Castro Mendes e Sofia Temer44defendem essas duas possibilidades, discorrendo sobre as vantagens e desvantagens de cada interpretação. Os autores entendem que o cabimento somente perante o tribunal permite que haja um amadurecimento nos debates, tendo-se algumas decisões judiciais proferidas da questão, favorecendo o exercício do contraditório e a ampla defesa, e, assim, alcançar-se-ia um excelente padrão decisório. No entanto, critica-se o tempo de espera necessário para que se tenha a repetição de processos e para que alguns dentre eles cheguem ao tribunal, o que não traz nenhuma novidade em comparação aos recursos excepcionais repetitivos, além da redução da potencialidade do IRDR. Por outro lado, argumentam que a instauração a partir da primeira instância evita a multiplicação de processos, que se prolongam, sendo esta uma de suas características mais relevantes.

Já o processualista Daniel Amorim Assumpção Neves45 se filia à corrente que entende pela necessidade da existência de processo em trâmite no tribunal para o cabimento do incidente, porque, para ele, é um requisito não escrito que resulta da escolha do legislador em elaborar o já citado parágrafo único do artigo 978 do CPC.

No cenário jurisprudencial, ressalte-se que a 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça tem debatido a questão no Recurso Especial nº 1.631.846/DF, e a ministra Fátima Nancy Andrighi, em seu voto, afirmou que a causa pendente não é condição indispensável para instauração do IRDR, sendo tal dispositivo uma regra de prevenção, conforme notícia veiculada no site Migalhas46. Não há, até o momento, a divulgação da posição adotada pela Corte.

O rol dos legitimados para requererem a instauração do incidente perante o presidente do tribunal encontra-se no artigo 977 e incisos do CPC47. São eles o juiz ou o relator, as partes, o Ministério Público e a Defensoria Pública. O parágrafo único do artigo 977 do CPC48 determina que o ofício ou a petição deve ser instruído com a documentação necessária a comprovar o preenchimento dos requisitos da instauração. Os legitimados que efetuem o pedido de instauração não se sujeitam ao recolhimento de custas, conforme o artigo 976, § 5º do CPC.

A atuação do Ministério Público e da Defensoria Pública no incidente pode ocorrer mesmo quando essas instituições essenciais à função jurisdicional do Estado não figurem como parte do processo, conforme se depreende da leitura do artigo 977 do CPC. Logo, temos que quando o Ministério Público atuar sem ser parte, será como fiscal da ordem jurídica. A Defensoria Pública, por sua vez, atuará na representação dos direitos e interesses dos necessitados. Para os dois órgãos, portanto, sua atuação é orientada segundo suas atribuições constitucionais.

O cabimento do IRDR no âmbito dos Juizados Especiais é mais um ponto que gera controvérsias. Sabe-se que os Juizados Especiais formam um subsistema próprio, não se sujeitando à jurisdição dos Tribunais de Justiça e dos Tribunais Regionais Federais. Os recursos contra as decisões advindas dos juizados são encaminhados a uma Turma Recursal, composta por juízes de primeiro grau. A discussão é legítima, uma vez que parcela da doutrina entende que o IRDR não foi pensado para ser aplicado nos juizados, e sim nos tribunais.

Nessa linha, pontua Mozart Borba49 que “O IRDR foi pensado para completar o microssistema de demandas repetitivas. Enquanto o REsp e RE repetitivos dão ao STJ/STF uma abrangência nacional, os TJs/TRFs teriam o IRDR como ferramenta de uniformização similar”.

Vale fazer menção ao julgamento do Agravo Regimental no Agravo em Recurso Especial nº 1.508.273/SC50, que foi negado provimento por unanimidade pelos Ministros da Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça, em que essa questão foi discutida, tendo os ministros entendido que instituto é dirigido aos tribunais locais, concluindo pela sua inaplicabilidade nesta Corte Superior.

De outro lado, há entendimento de que o IRDR é plenamente cabível nos juizados especiais. Nesse sentido, assevera Fredie Didier Jr. que “A tese fixada no IRDR aplica-se aos processos dos Juizados Especiais, conforme estabelece o inciso I do art. 985 do CPC. Não parece haver inconstitucionalidade nisso”51.

A doutrina chegou a solução de que o IRDR deve ser processado e julgado pelo órgão colegiado de uniformização do próprio juizado. Sofia Temer52, entretanto, aponta que esta solução é passível de críticas, ao dizer que “não parece aconselhável haver dois órgãos diversos, com competências muitas vezes coincidentes, aptos a uniformizar a jurisprudência através do IRDR, porque isso pode resultar na quebra de isonomia que o incidente pretende evitar”.

O novo Código Processual, entretanto, alude que a tese jurídica fixada será aplicada também no âmbito dos juizados especiais, em seu artigo 985, inciso I53. Considerando a estrutura própria e a independência do subsistema dos juizados especiais em relação à jurisdição comum, o que se constata é a falta de harmonia entre os dois sistemas quanto à questão da uniformização da jurisprudência, que poderia ter sido arquitetada pelo novo Código. Esta é a conclusão de Sofia Temer54, atestando que “não é aconselhável, sob a perspectiva do sistema jurídico e da integridade do ordenamento, desenhar esferas impermeáveis no que se refere aos juizados e aos demais processos”.

Cabe colacionar, no sentido da aplicabilidade do IRDR no âmbito dos juizados especiais, os enunciados do Fórum da Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados – ENFAM55:

Enunciado nº 21: O IRDR pode ser suscitado com base em demandas repetitivas em curso nos juizados especiais.

Enunciado nº 44: Admite-se o IRDR nos juizados especiais, que deverá ser julgado por órgão colegiado de uniformização do próprio sistema.

A competência para o processamento e julgamento do incidente é do órgão indicado pelo Regimento Interno do tribunal, órgão este representativo da função uniformizadora da jurisprudência. Claro que se a questão debatida resvalar em inconstitucionalidade de norma, a competência passa a ser do órgão especial ou plenário, em obediência à cláusula de reserva de plenário estabelecida pelo artigo 97 da Constituição Federal56.

É de grande relevo a publicidade e a ampla divulgação que deve ser dada ao IRDR desde o momento da sua instauração, com a ampla e específica divulgação e publicidade nos bancos de dados dos tribunais e do CNJ, conforme definido pelo artigo 979 do CPC57.

Aluisio Gonçalves de Castro Mendes e Sofia Temer58 asseguram que a publicidade viabiliza que a sociedade tenha a informação sobre quais temas estão sendo analisados pelo Poder Judiciário, possibilitando-se o acompanhamento do julgamento e a participação democrática no debate do IRDR pelos meios adequados, assim como a divulgação do precedente, que servirá de padrão para casos futuros.

Note-se, portanto, que esta previsão é coerente com a tônica de dar publicidade aos precedentes judiciais concebida pelo novo CPC, o que se revela no artigo 927, § 5º59.

4.1 AS FASES DO IRDR

Demonstrados inicialmente os requisitos exigidos para a instauração do incidente de resolução de demandas repetitivas, é mister prosseguir com a elucidação do seu processamento, dividido em quatro fases, para sua melhor visualização.

São elas: instauração e admissibilidade, instrução, julgamento, aplicação e revisão da tese jurídica.

4.1.1 INSTAURAÇÃO E ADMISSÃO

Para que o incidente seja instaurado, é imprescindível que estejam presentes os requisitos de instauração. São requisitos cumulativos a efetiva repetição de demandas com controvérsia sobre a idêntica questão de direito, o risco à isonomia, à segurança jurídica e a não afetação de recurso repetitivo sobre a mesma questão em tribunal superior, como exige o artigo 976, incisos I e II do CPC60. Um dos legitimados, então, juntando os documentos pertinentes que demonstrem a presença dos requisitos exigidos para a instauração, irá requerê-la perante o presidente do respectivo tribunal. Este, por sua vez, encaminhará o requerimento ao órgão competente indicado pelo regimento interno do tribunal.

Registrado e distribuído o pedido de instauração do IRDR no órgão colegiado competente, este passará a realizar o juízo de admissibilidade. Se ausentes os pressupostos de admissibilidade, o juízo será negativo e por consequência o incidente não será admitido. Se, posteriormente, os requisitos restarem devidamente preenchidos, poderá ser suscitado novamente o incidente.

Estando presentes os pressupostos, tem-se juízo positivo de admissibilidade, e o incidente prosseguirá regularmente. Na hipótese de desistência ou abandono do processo originário, não haverá qualquer prejuízo ao prosseguimento do incidente, em função do interesse público nele existente. Portanto, quem assumirá a titularidade é o Ministério Público, que também tem o dever obrigatório de intervenção quando não é o seu suscitante, atuando como custus iuris.

A decisão de admissão implica ao relator a adoção das providências elencadas no artigo 982 do CPC61, dentre as quais se destaca o dever de determinar a suspensão dos processos repetitivos pendentes, individuais ou coletivos, em tramitação no âmbito da competência territorial do tribunal em que foi instaurado o IRDR, podendo ainda a suspensão se estender nacionalmente, desde que requerida ao Superior Tribunal de Justiça ou ao Supremo Tribunal Federal por aquele que seja legitimado, em processo individual ou coletivo, que contenha como questão de direito o mesmo objeto do IRDR.

O prazo de suspensão é de 1 ano, período em que o incidente deve ser julgado. Tal prazo pode ser prorrogado por decisão fundamentada do relator.

Caso entenda necessário, poderá requisitar informações a órgãos em cujo juízo tramita processo em que se discute o objeto do incidente, nos termos do art. 982, inciso II do CPC. O relator deverá intimar o Ministério Público para manifestar-se no prazo de 15 dias, conforme o artigo 982, inciso III, tendo em vista ainda ser o Parquet o guardião dos interesses da sociedade.

Os competentes órgãos jurisdicionais serão comunicados da mencionada suspensão (art. 982, §1º, CPC62). Enquanto esta perdurar, não ficarão obstados os pedidos de tutela de urgência, que deverão ser dirigidos aos juízos nos quais tramitem os respectivos processos (art. 982, §2º, CPC63).

Ademais, a partir deste momento efetuar-se-á a definição do objeto do IRDR, que, seguramente, é uma das consequências mais importantes da decisão de admissibilidade, visto que a clara delimitação da questão jurídica debatida favorece o exercício do direito ao contraditório pelos interessados.

4.1.2 INSTRUÇÃO

Pode-se afirmar que a fase de instrução já está em curso quando os órgãos requisitados transmitem informações e o Ministério Público eventualmente se manifesta, consoante exposto no tópico anterior. Esta fase é bem elucidada no artigo 983, caput, do CPC64, porque prevê a atuação dos sujeitos, admitindo que relator ouça as partes, demais interessados, incluindo-se pessoas, órgãos e entidades interessadas na controvérsia.

Essa ampliação do contraditório é essencial para que a questão objeto do incidente seja bem delineada e, portanto, que seja fixada uma boa tese jurídica.

As possibilidades de participação dos sujeitos, para Sofia Temer, é um aspecto relevante, posto que assim expressa sua visão sobre a questão:

A apresentação de informações, dados e argumentos, o debate em torno das “teses” propostas, a realização de audiências públicas e o envolvimento da sociedade são indispensáveis para a qualidade da decisão construída no incidente, porque, quanto mais profunda e detalhada a cognição realizada pelo órgão julgador, melhor será a tese jurídica ali fixada65.

Assim, temos que, posteriormente à admissibilidade pelo colegiado, ao relator incumbe a sistematização do procedimento do IRDR com a decisão de organização, que, segundo Fredie Didier Jr. e Sofia Temer66, “corresponde à formalização do que foi decidido pelo órgão colegiado no que diz respeito à admissibilidade e aos limites objetivos do incidente, notadamente quanto à definição da questão jurídica".

4.1.3 JULGAMENTO

Finda a fase instrutória, com a devida organização do incidente, o relator solicitará dia para julgamento, conforme o art. 983, §2º do CPC/1567, que ocorrerá no órgão colegiado competente em que houve sua tramitação.

No artigo 984 do CPC68 encontramos as etapas do seu julgamento, que iniciará, conforme o inciso I do referido dispositivo, com a exposição da questão de direito de que trata o incidente pelo relator. Cabe apontar que neste momento também serão expostos os resultados das diligências feitas na fase de instrução, conforme lista Rodolfo de Camargo Mancuso:

A exposição do relator deverá noticiar outros eventos de interesse na espécie, tais os debates na audiência referida no §1º do art. 983; os subsídios aportados pelos intervenientes, a convite ou espontaneamente, inclusive os trazidos por eventuais amicus curiae; a documentação juntada aos autos; o parecer do Ministério Público ou da Defensoria Pública, conforme o caso69.

Após, será concedido às partes do processo originário a realização da sustentação oral, bem como ao Ministério Público e aos demais interessados, por trinta minutos para cada, sendo exigido a estes últimos a inscrição com dois dias de antecedência. Também é possível a intervenção do amicus curiae, com direito também a sustentar oralmente suas razões, assim como os assistentes litisconsorciais.

Se houver grande número de inscritos, haverá a dilatação do prazo para a sustentação oral, conforme previsto no artigo 984, §1º do CPC.

Mais uma vez, em respeito ao princípio do contraditório, o conteúdo do acórdão deverá abranger a análise de todos os fundamentos ventilados a respeito da debatida tese jurídica, sejam eles favoráveis ou não (art. 984, § 2º, CPC)70.

Finalizado o julgamento, será fixada a tese jurídica, em que já poderá ser interposto Recurso Especial ou Recurso Extraordinário, que neste caso terá efeito suspensivo, em virtude de regra específica neste sentido, expressa no artigo 987, §1º do CPC71. O Recurso Extraordinário interposto contra decisão proferida no incidente tem presunção de repercussão geral, conforme dispõe o referido artigo.

Vale destacar que a figura do amicus curiae tem legitimidade para recorrer da decisão proferida no julgamento do IRDR, conforme artigo 138, § 3º do CPC72.

4.1.4 APLICAÇÃO E REVISÃO DA TESE JURÍDICA

O acórdão de mérito no IRDR, portanto, soluciona a controvérsia de direito e estabelece uma tese jurídica, que será aplicada a: (a) todos os processos individuais ou coletivos que versem sobre idêntica questão de direito e que tramitem na área de jurisdição do respectivo tribunal, inclusive àqueles que tramitem nos juizados especiais do respectivo Estado ou região; (b) casos futuros que versem idêntica questão de direito e que venham a tramitar no território de competência do tribunal, salvo revisão na forma do art. 986 (artigo 985, incisos I e II do CPC73).

Logo, temos que a tese é fixada e, posteriormente, nos processos individuais, o juiz de primeira instância a aplicará aos casos sob judice. Para Aluisio Gonçalves de Castro Mendes, não se destina tal incidente a julgar as pretensões de casos concretos individualizados, consoante expôs em palestra ministrada na sede do Tribunal Regional Federal da 2ª Região, no Rio de Janeiro, em 13 de março de 2015:

Aplicação da tese jurídica no incidente. Na minha opinião – há quem pense em sentido contrário -, não há o julgamento do pedido, portanto, da causa, do pedido formulado nos processos individuais, mas sim da tese jurídica, porque se decide apenas o incidente, e, portanto, há necessidade do julgamento do pedido pelo órgão de Primeiro Grau, mesmo no processo em que foi suscitado o incidente74.

Essa eficácia vinculante do precedente originado do julgamento do incidente resulta da previsão contida no artigo 927 do CPC de que os juízes e os tribunais observarão os precedentes previstos nos incisos do mencionado artigo, dentre eles, os acórdãos em IRDR (artigo 927, inciso III)75.

Rodolfo de Camargo Mancuso vai além, pontuando outras razões pelas quais o acórdão em IRDR é vinculante:

Embora no art. 927 não tenha o legislador empregado os termos vinculante ou obrigatório, a interpretação sistemática, iluminada pelo ideário revelado na Exposição de Motivos, leva a se inferir pela eficácia impositiva dos produtos judiciários otimizados, relacionados nos incisos do art. 927, inclusive o acórdão em IRDR (inciso III)76.

Devem ser citados alguns dos efeitos provocados pela decisão de mérito no IRDR contemplados no CPC: possibilidade de concessão de tutela provisória de evidência (artigo 311, inciso II, CPC77); julgamento monocrático pelo relator de recurso contrário a entendimento firmado no incidente no sentido de desprovimento (artigo 932, inciso IV, alínea “c”, CPC78); nulidade da decisão por não fundamentação a respeito do precedente vinculante (art. 489, §1º, V e VI79).

Poderá ainda a tese jurídica sofrer revisão perante o mesmo tribunal que a estabeleceu, conforme determina o artigo 986 do CPC80. Importante destacar que o rol dos legitimados para requerer a revisão é restrito, cabendo somente ao tribunal, de ofício, ao Ministério Público e à Defensoria Pública fazê-lo.

Cassio Scarpinella Bueno (2016, p. 650) explica os motivos que ensejam a revisão das questões jurídicas fixadas, referindo que o dispositivo legal supracitado é bastante pertinente para a dinâmica do direito jurisprudencial, sendo crucial que tais questões, mesmo que fixadas para os casos presentes e futuros, sejam passíveis de revisão conforme surjam novas circunstâncias fáticas ou jurídicas. Isso ocorre com a criação de novas leis e não haveria razão para ser diferente com os precedentes judiciais, inclusive os brasileiros81.

4.2 NATUREZA JURÍDICA DO IRDR

Parece ser evidente que sua natureza jurídica seja a de incidente processual, o que se depreende da sua própria nomenclatura. No entanto, esta questão é permeada de controvérsias e divergências doutrinárias, que consistem essencialmente na incerteza de estarmos diante de uma causa-piloto ou de um procedimento-modelo.

Se admitirmos tratar-se de uma causa-piloto, o que se terá é o julgamento do caso concreto que ensejou a instauração do IRDR e a definição da tese jurídica.

Alexandre Freitas Câmara entende que o IRDR julgará também a causa principal, afirmando que:

Este órgão colegiado, competente para fixar o padrão decisório através do IRDR, não se limitará a estabelecer a tese. A ele competirá, também, julgar o caso concreto (recurso, remessa necessária ou processo de competência originária do tribunal), nos termos do art. 978, parágrafo único. Daí a razão pela qual se tem, aqui, falado que o processo em que se instaura o incidente funciona como verdadeira causa-piloto82.

Em outra linha, existem aqueles que sustentam que o IRDR é procedimento que apenas estabelece tese jurídica sobre a questão de direito, distanciando-se do caso concreto que originou o incidente. Tratar-se-ia, portanto, de um procedimento-modelo, assemelhado ao Musterverfahren do sistema jurídico alemão.

Aluisio Gonçalves de Castro Mendes e Sofia Temer83 adotam este último entendimento, asseverando que se trata de “procedimento incidental autônomo, de julgamento abstrato – ou objetivo – das questões de direito controvertidas, comuns às demandas seriadas, a partir da criação de um procedimento-modelo”.

Humberto Theodoro Júnior, por sua vez, é categórico ao destacar o caráter coletivo do incidente, distinguindo-o, porém, das ações coletivas:

Trata-se, portanto, de remédio processual de inconteste caráter coletivo. Não se confunde, entretanto, com as conhecidas ações coletivas, que reúnem num mesmo processo várias ações propostas por um único substituto processual em busca de um provimento de mérito único que tutele os direitos subjetivos individuais homogêneos de todos os interessados substituídos. O incidente de resolução de demandas repetitivas não reúne ações singulares já propostas ou por propor. Seu objetivo é apenas estabelecer a tese de direito a ser aplicada em outros processos, cuja existência não desaparece, visto que apenas se suspendem temporariamente e, após, haverão de sujeitar-se a sentenças, caso a caso, pelos diferentes juízes que detêm a competência para pronunciá-las. O que, momentaneamente, aproxima as diferentes ações é apenas a necessidade de aguardar o estabelecimento da tese de direito de aplicação comum e obrigatória a todas elas. A resolução individual de cada uma das demandas, porém continuará ocorrendo em sentenças próprias, que poderão ser de sentido final diverso, por imposição de quadro fático distinto. De forma alguma, entretanto, poderá ignorar a tese de direito uniformizada pelo tribunal do incidente, se o litígio, de alguma forma, se situar na área de incidência da referida tese84.

Vinicius Silva Lemos85 compartilha do mesmo entendimento, aduzindo que “o órgão colegiado competente ao incidente, não realiza o julgamento da ação, da demanda repetitiva, somente a análise das questões de direito repetitivas”.

Nessa compreensão, tem-se, portanto, que o objetivo do incidente é fixar uma tese jurídica, sendo ele uma técnica processual objetiva86.

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Sobre a autora
Amanda Gibson Silva Pinto

Advogada. Bacharel em Direito pela Universidade Candido Mendes, Niterói.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GIBSON, Amanda Silva Pinto. Incidente de resolução de demandas repetitivas.: Considerações sob a óptica da crescente valorização dos precedentes judiciais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 28, n. 7157, 4 fev. 2023. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/97079. Acesso em: 9 mai. 2024.

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