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As fake news e a guinada do STF sobre liberdade de expressão

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03/03/2023 às 15:48
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A Suprema Corte passará restringir a liberdade de expressão, mandando apagar conteúdo falso da internet para proteger a segurança, a honra de pessoas e instituições e a própria democracia?

Resumo: : O objetivo do presente trabalho é verificar como o Supremo Tribunal Federal tem decidido recentemente sobre a possibilidade de restrição judicial da liberdade de expressão, especialmente considerando que o contexto social existente no julgamento da ADPF nº 130 está superado, pois atualmente a opinião ou o conteúdo jornalístico são essencialmente disponibilizados de forma massiva em redes sociais e na internet e podem ser compartilhados de forma instantânea com milhares ou mesmo milhões de pessoas, em um ambiente tóxico permeado por fake news, deepweb, direcionamento do discurso pelos algoritmos das grandes redes sociais e aplicativos, “robotização” dos usuários de redes sociais, polarização ideológica e discurso de ódio contra minorias. Nesse contexto, analisaremos se a Suprema Corte caminha por manter-se na posição preferencial da liberdade de expressão, permitindo a manutenção da publicação do conteúdo/informação, com posterior responsabilização do ofensor, ou se a Corte passará a intensificar a restrição da liberdade de expressão, com a determinação judicial de retirada da publicação com conteúdo falso ou mentiroso das redes sociais e da internet, visando a evitar ou diminuir a propagação e a abrangência de conteúdos falsos e massivos que possam colocar em risco a segurança, a honra e a imagem de pessoas, de instituições e da própria democracia no Brasil.

Palavras-chave: Liberdade de expressão. Direitos fundamentais. Limites. Restrição. Democracia. Supremo Tribunal Federal.

Sumário: 1. Introdução. 2. A liberdade de expressão e sua importância constitucional. 3. O papel do Supremo Tribunal Federal na definição contemporânea da liberdade de expressão no Brasil. 4. Os direitos fundamentais não são absolutos e admitem restrições. 5. A interpretação inicial da liberdade de expressão pelo STF. 6. Os novos tempos exigem nova conformação da liberdade de expressão pela Suprema Corte. 6.1. Tempos de pós-verdade: a mentira como regra. 6.2. A polarização, que era algo até normal, foi absurdamente acirrada pelas redes sociais e tornou-se um efeito nocivo. 6.3. O encolhimento do espaço de deliberação pública pelas redes sociais. 7. A nova conformação da liberdade de expressão pelo STF. 8. Conclusão.


1. Introdução.

A liberdade de expressão é um direito fundamental, com caráter preferencial sobre os demais direitos fundamentais, mas sem natureza absoluta, conforme já reconhecia o próprio Supremo Tribunal Federal (STF).

Exatamente devido a este caráter preferencial, nossa Suprema Corte entendeu, durante muito tempo, que se deveria dar preferência à liberdade de expressar-se e de informar, não sendo adequada a limitação judicial da liberdade de expressão, salvo raríssimas ocasiões, pois eventual excesso ou abuso da liberdade de expressão deveria ser resolvido nas esferas cível e penal com a posterior responsabilização do ofensor.

Ocorre que os tempos em que o conteúdo da liberdade de expressão, ou a informação jornalística, era exposto em jornais e revistas impressas e na televisão ficaram para trás; hoje, a opinião ou o conteúdo jornalístico são essencialmente disponibilizados de forma massiva em redes sociais e na internet e podem ser compartilhados de forma instantânea com milhares ou mesmo milhões de pessoas, em um ambiente tóxico permeado por fake news, deepweb, direcionamento do discurso pelos algoritmos das grandes redes sociais e aplicativos, “robotização” dos usuários de redes sociais, polarização ideológica e discurso de ódio contra minorias (racismo, misognia, homofobia, dentre outros).

O objetivo do presente estudo, portanto, é verificar se, nesse contexto atual da digitalização da vida, a Suprema Corte manterá sua posição anterior pela preferência da liberdade de expressão, sendo inadequada a restrição judicial à publicação de opiniões e/ou conteúdos jornalísticos, com responsabilização posterior do ofensor, ou se, ao contrário disso, intensificará a possibilidade de restrição judicial da liberdade de expressão.


2. A liberdade de expressão e sua importância constitucional.

A liberdade de expressão foi consagrada como direito fundamental na Constituição Federal de 1988 (CF/88), nos seus artigos 5º e 220, e, de forma breve e resumida, pode ser conceituada como o direito fundamental de qualquer cidadão de expor suas opiniões, mesmo que incomodem ou desagradem a outros, não bastando que o fato da opinião expressa ter causado algum tipo de transtorno, embaraço, incômodo ou sofrimento a outras pessoas ou instituições possam caracterizá-la como ilícita.

Trata-se de um direito fundamental da mais alta importância no direito brasileiro, eis que, para além da natureza puramente individual, a liberdade de expressão possui nítida conotação coletiva que é benéfica à democracia, à medida que, “em sociedades democráticas, é fundamental a existência de uma esfera pública robusta e desinibida, em que se possa discutir com coragem e sem constrangimentos os temas de interesse social” 2.

A par da enorme importância da liberdade de expressão, e de sua preponderância como direito fundamental, fato é que as questões a respeito da possibilidade e das medidas de eventuais limites ao exercício de tal direito não podem mais ser interpretadas como o foram na década passada, eis que atualmente o exercício da liberdade de expressão se apresenta sob um contexto em que a utilização constante das redes sociais no Brasil e no mundo 3 gerou novos padrões de conduta e comportamento 4 e, consequentemente, vivemos sob uma enorme preocupação sobre os efeitos e as consequências prejudiciais advindas de postagens compartilhadas entre centenas, milhares e até milhões de indivíduos de modo quase que instantâneo.


3. O papel do Supremo Tribunal Federal na definição contemporânea da liberdade de expressão no Brasil.

O mais jovem Presidente do Tribunal Constitucional alemão (TCF) Andreas Voβkuhle considera como um enorme desafio das Cortes Constitucionais, no âmbito da tutela de direitos fundamentais, inclusive nas relações entre particulares, a atual economia digital e de dados, cujos principais atores em escala global, Google e Facebook, apenas para citar alguns, “não se deixam domesticar por intermédio da clássica função dos direitos fundamentais” 5

Mas para Voβkuhle, em sua experiência como juiz da Corte Constitucional alemã, “isso não quer dizer que os tribunais constitucionais fiquem de mãos amarradas”, pois “o fato de a Lei Fundamental alemã continuar estando em condições de oferecer soluções adequadas para os riscos do direito fundamental da liberdade também em constelações complexas, definidas pelo direito privado, é demonstrado também por algumas decisões do Tribunal Constitucional Federal dos tempos mais recentes” 6.

Tal perspectiva de dificuldades enfrentadas pela Suprema Corte alemã para a preservação de direitos fundamentais em relação ao ambiente de redes sociais ou em relação às empresas de tecnologia pode ser tranquilamente transportada para o Brasil contemporâneo, especialmente porque vivenciamos os mesmos dilemas de digitalização da vida como a Alemanha e porque, por aqui, há um fator agravante ao direito constitucional germânico: o legislador constituinte brasileiro optou por quedar-se silente - ao contrário do que ocorreu na Alemanha, Portugal e mesmo Espanha, para referir os exemplos mais conhecidos – quanto ao “estabelecimento de um regime constitucional expresso e específico em matéria de limites e limites aos limites dos direitos fundamentais, à exceção da previsão de reservas de lei e da proibição de abolição efetiva e tendencial de conteúdos protegidos contra a reforma constitucional (art. 60, § 4º da Constituição de 1988)” 7.

Na falta de tal regime constitucional expresso de “limites e limites aos limites dos direitos fundamentais”, não há dúvidas de que o legislador constituinte originário estabeleceu que cabe ao STF a solução das colisões de direitos fundamentais envolvendo a liberdade de expressão, deixando ao alvedrio da Corte estabelecer os limites de tal direito fundamental no Brasil, até também porque a CF/88 não estabeleceu soluções a priori para tais colisões dos direitos fundamentais.

Assim, se notícias falsas são utilizadas para promover discurso de ódio e intolerância e desestabilizar as instituições e o próprio regime democrático de direito estabelecidos pela CF/88 - tem sido senso comum que a internet e as redes sociais venham sendo exploradas para solapar os elementos básicos da democracia liberal - devem as instituições constitucionais, especialmente o STF como guardião do Estado democrático constitucional de direito por expressa determinação do seu texto (art. 102. da CF/88), promover as restrições judiciais cabíveis para proteger o Estado democrático de direito contra uma versão absoluta de liberdade de expressão fomentada por aqueles que estão “preparados para fazer de tudo que for necessário para serem eleitos – mentir, confundir e incitar o ódio contra os demais cidadãos” 8.

Parece-nos, portanto, muito oportuno analisar a possibilidade de restrição do direito fundamental de liberdade de expressão pelo STF, especialmente em uma realidade contemporânea em que a internet e as redes sociais reverberam vozes a favor de uma liberdade de expressão absoluta sob a qual se possa disseminar ódio e informações inverídicas ou mentiras e estimular violência contra pessoas ou instituições.


4. Os direitos fundamentais não são absolutos e admitem restrições.

Viver em sociedade naturalmente leva a que nenhuma liberdade possa ser absoluta, sob pena de colocar em risco a liberdade das demais pessoas e porque a liberdade absoluta de um indivíduo ou de um grupo social colocaria em risco o próprio estrato social no qual os mesmos vivem, pois, como disse Hannah Arendt, “Onde os homens aspiram ser soberanos, como indivíduos ou como grupos organizados, devem se submeter à opressão da vontade, seja esta a vontade individual com a qual obrigo a mim mesmo, seja a ‘vontade geral” de um grupo organizado. Se os homens desejam ser livres, é precisamente à soberania que devem renunciar” 9.

Nas democracias constitucionais contemporâneas não há qualquer possibilidade de liberdades individuais desmensuradas e sem restrições 10, pois as Constituições contemporâneas - sendo a brasileira um grande exemplo destas ao prever a dignidade da pessoa humana como princípio (art. 1º, III) e a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, a erradicação da pobreza, a redução das desigualdades sociais e a promoção do bem de TODOS (art. 3º, I, III e IV) como objetivos da República federativa – por um lado asseguram as liberdades inalienáveis dos indivíduos, mas por outro consagram o estabelecimento de direitos sociais e econômicos mínimos que exigem a natural restrição das liberdades individuais.

A CF/88 não permite a existência de liberdades individuais que não convivam e permitam condições mínimas de desenvolvimento humano igualitário para todos os componentes da sociedade, pois “sem o mínimo necessário à existência cessa a possibilidade de sobrevivência do homem e desaparecem as condições iniciais de liberdade” 11, não havendo que se falar em direitos fundamentais que possam ser interpretados como liberdades absolutas, eis que, como ensina Gustavo Binenbojm, “a liberdade de cada um deve conviver com a liberdade de todos” 12.

Falando especificamente sobre um dos ramos da liberdade de expressão, Gustavo Binebojm diz que “a liberdade de criação e expressão artística não é um valor absoluto e inquestionável” e que “discuti-la é parte do conceito da própria liberdade de expressão intelectual e tem levado a algumas nações a proscrever as manifestações voltadas puramente para a propagação do ódio e da violência, por exemplo. Fora esses casos, a garantia constitucional da liberdade de expressão deve preservar o espaço para que o artista conceba o inconcebível, diga o indizível e transforme em arte qualquer sentimento humano” 13.

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5. A interpretação inicial da liberdade de expressão pelo STF.

O ministro Celso de Mello, no famoso caso Ellwanger (HC nº 82.959/RS 14), reforçou seu entendimento de que a liberdade de expressão é um direito fundamental de enorme importância, com caráter preferencial no conflito com outros direitos fundamentais, mas que não possui caráter absoluto, por nele não estarem permitidos expressões ou comportamentos de caráter discriminatório ou racista 15.

No referido julgamento assentou-se que são vedados expressamente os discursos racistas, de ódio (hate speech), reconhecendo-se que a liberdade de expressão não é um direito fundamental absoluto, pois o direito à livre expressão não pode abrigar, em sua abrangência, manifestações de conteúdo imoral que implicam ilicitude penal e que as liberdades públicas não são incondicionais, por isso devem ser exercidas de maneira harmônica, observados os limites definidos na própria CF/88. Assentou-se ainda no referido julgamento que o preceito fundamental de liberdade de expressão não consagra o "direito à incitação ao racismo", dado que um direito individual não pode constituir-se em salvaguarda de condutas ilícitas, como sucede com os delitos contra a honra 16.

O STF também analisou a possibilidade de limitação da liberdade de expressão quando do julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 130/DF, na qual a Corte decidiu quanto à não recepção da Lei de Imprensa (Lei nº 5.250/67) pela CF/88, não permitindo que o Poder Judiciário proferisse liminares com base na referida lei da época da ditadura militar no Brasil para impedir a publicação de informações pela imprensa, ao argumento de que a própria CF/88, no seu art. 220, já havia realizado a ponderação entre a liberdade de expressão por meio da liberdade de imprensa com outros direitos de personalidade 17, “dando-se prevalência à liberdade de informar”, sendo “inviável a concessão de liminares para impedir a divulgação de qualquer informação” e “eventual excesso seria resolvido nas esferas cível e penal” 18.

Para o Ministro relator da ADPF nº 130, somente a CF/88 poderia limitar as comunicações sociais, não a lei e não atos da Administração Pública, mas somente a Constituição, a qual, além disso, tem um nítido caráter de garantia, proteção e tutela do direito de informar e ser informado pelos meios de comunicação de massa; disse à época o relator em seu voto que “(...) a ideia-força de que quem quer que seja tem o direito de dizer o que quer que seja. Logo, não cabe ao Estado, por qualquer dos seus órgãos, definir previamente o que pode ou o que não pode ser dito por indivíduos e jornalistas19.

Ficaram então definidos no referido julgamento do STF os seguintes pressupostos quanto ao reconhecimento da liberdade de expressão como direito fundamental 20: (i) a primazia da liberdade de expressão e informação jornalística, (ii) a impossibilidade de regulamentação estatal da liberdade de informação jornalística e (iii) a autoaplicabilidade do direito de resposta proporcional ao agravo e de indenização posterior pelo dano causado.

Ocorre que, no âmbito da ADPF nº 130, o julgamento proferido pelo STF deu-se sob uma realidade em que os principais meios de comunicação de massa e disseminação de conhecimento e informação davam-se por meio de jornais e revistas impressas, rádio e TV aberta e a propagação de desinformação não tinha a massividade, a instantaneidade e o potencial lesivo que possuem atualmente.

O próprio Ministro Relator Carlos Ayres Britto reconheceu em seu voto que a questão objeto de julgamento da Suprema Corte no âmbito da ADPF nº 130/DF não analisou a propagação de informações por meio da – então incipiente à época - internet , eis que para ele a “Rede Mundial de Computadores – INTERNET” deveria ficar “fora do conceito de imprensa” por “absoluta falta de previsão constitucional” 21, já dando indícios de que a questão a respeito da possibilidade ou não da limitação da liberdade de expressão e de imprensa por meio da internet e por redes sociais deveria ser analisada em outra oportunidade pelo STF.


6. Os novos tempos exigem nova conformação da liberdade de expressão pela Suprema Corte.

A realidade com a qual lidamos hoje é a das fake news, da instantaneidade e da massividade da reprodução de conteúdo nas redes sociais e na internet, da “robotização” dos usuários de redes sociais, da minimização e enfraquecimento da linguagem, da agressividade e da polarização ideológica do discurso, do discurso de ódio contra minorias (racismo, misognia, homofobia, dentre outros) e contra as instituições, do direcionamento do discurso pelos algoritmos das grandes redes sociais e aplicativos e, por fim, da deepweb onde não é possível qualquer controle sobre o conteúdo ou informação compartilhada no submundo da internet.

O fenômeno da digitalização da vida contemporânea, especialmente pelo uso cotidiano de redes sociais, faz com que a velocidade da disseminação de conteúdo falso seja exponencial e que qualquer informação sem fundamento possa ter consequências desastrosas 22, especialmente quando o conteúdo disseminado ou reproduzido em redes sociais reúne chamadas sensacionalistas, caráter polarizador ou antagônico e informações falsas, pois os efeitos nocivos de tais conteúdos sobre pessoas e instituições podem ser devastadores, eis que “matérias falsas, de cunho sensacionalista, tendem a ter repercussão fácil, a viralizar, a tornar-se trend topics mais rapidamente do que aquelas produzidas por jornalistas zelosos que checam os fatos” 23.

6.1. Tempos de pós-verdade: a mentira como regra.

Matthew D’Ancona acredita que atualmente vivemos uma era da pós-verdade, marcada pelo colapso da confiança que servia como mecanismo fundador de sobrevivência humana e pela fragilização das instituições devido à propagação maciça de informações inverídicas, mentiras ou fake news – chame como queira - por grupos de pressão bem financiados e que se valem da rapidez e da abrangência das redes sociais e da internet para estimular o público a questionar a verdade conclusivamente confiável, chamando a atenção o autor para o fato de que “nunca houve um modo mais rápido e mais poderoso de espalhar uma mentira do que postá-la on line24

A pretensão de tais grupos de pressão em gerar a desconfiança necessária para colocar em xeque as instituições como árbitros sociais é baseada em verdadeiras estratégias de desinformação e é favorecida pelos algoritmos das redes sociais. Inicialmente, porque a ideia de funcionamento dos algoritmos é justamente conectar as pessoas apenas àquilo que gostam ou podem gostar, gerando o chamado “filtro bolha” pelo qual as opiniões baseadas em informações inverídicas, mentiras ou fake news são reforçadas e acabam tornando as mentiras incontestadas nos grupos sociais que as aceitam. Para o autor, a internet e as redes sociais são “o valor definitivo da pós-verdade”, exatamente porque são indiferentes “à mentira, à honestidade e à diferença entre os dois” 25.

Depois, porque informações inverídicas, mentiras ou fake news ficam ainda mais potentes com a utilização de perfis robôs, contas falsas e disparos em massa de mensagens, “criando a ilusão de que as ideias por trás dessas notícias são ratificadas por milhões de indivíduos, quando, na verdade, não o são”. 26 Para se ter ideia de como o uso de robôs é massivo nas redes sociais para dar-se a impressão de aceitação da notícia falsa por outras pessoas, Miguel Lago informa que “em 2016, somente no Twitter, de seus 336 milhões de usuários em todo o mundo, os pesquisadores estimavam que até 50 milhões eram bots” e que esses “bots são comunicadores prolíficos”, eis que um “levantamento do Pew Research Center sugere que até 66% dos links compartilhados nessa mesma plataforma vinham de bots suspeitos” 27.

6.2. A polarização, que era algo até normal, foi absurdamente acirrada pelas redes sociais e tornou-se um efeito nocivo.

A atenção e a curiosidade do ser humano é mais capturada por matérias de cunho sensacionalista e assuntos que polarizem pensamentos antagônicos, sendo até, de certa forma natural, que informações com forte viés ideológico e caráter de polarização e antagonização divulgadas por redes sociais tenham maior recepção das pessoas do que as reportagens realizadas pela chamada imprensa tradicional.

Mas, o fato é que a experiência virtual personalizada pelos algoritmos gera o que Eli Pariser chama de “bolha dos filtros”, pois o código básico das redes sociais e da internet é a geração de filtros on line que examinam tudo aqui de que as pessoas gostam e passam a oferecer a elas exatamente mais do que já gostam, aproximando também de forma virtual pessoas que tenham as mesmas opiniões e gostos, alterando-se assim, de forma profunda, o modo como as pessoas se deparam com ideias e informações; por isso, “numa época em que as informações partilhadas são a base para a experiência partilhada, a bolha dos filtros é uma força centrífuga que nos afasta um dos outros” 28.

Tal tipo de relacionamento virtual contribui por acirrar as polarizações ideológicas já existentes nas redes sociais e na internet, eis que “essa interação por nichos, de um lado, engessa a cosmovisão das pessoas, ao restringi-las àquele universo composto somente por quem pensa de maneira igual a elas e, de outro lado, gera efeitos verdadeiramente polarizantes, o que contribui para a balcanização das visões e do comportamento político de cada um” 29.

6.3. O encolhimento do espaço de deliberação pública pelas redes sociais.

Ao invés do que esperava, que a internet e as redes sociais permitissem o fluxo livre e contínuo de informações, aumentando o espaço de deliberação pública para além das instituições estatais, o que se tem visto é exatamente o contrário. É que as redes sociais transformaram-se em espaço público especialmente propício para a proliferação de informações inverídicas ou fake news que são usadas, deliberadamente, por grupos de pressão para provocar o “encolhimento da dimensão deliberativa da esfera pública”, eis que o propósito da comunicação política baseada nas fake news é que o discurso político deixe de ser baseado no bem comum e no debate por evidências científicas para convencer quem pensa diferente e passe, ao invés disso, a “reforçar identidades particulares, aquecer polêmicas e fomentar ódio à diferença” 30.

Então como se discutir e solucionar problemas cruciais da população, se essa vem sendo bombardeada até mesmo com as chamadas “deepfakes”, cuja tecnologia é baseada em criar vídeos falsos, porém bem realistas, com pessoas fazendo coisas que nunca fizeram de verdade ou em situações que nunca presenciaram, usando inteligência artificial para manipular imagens de rostos e criar movimentos, simulando expressões e falas 31.

Para se ter uma noção do potencial lesivo dessa tecnologia basta lembrar do recente vídeo da jornalista Renata Vasconcelos adulterado por deepfake que circulou massivamente pelas redes sociais, no qual se propagou a informação inverídica – ou mentirosa 32 ou fake news, chame como achar melhor – em que a âncora do Jornal Nacional falava da liderança de Jair Bolsonaro em pesquisas para o 1º turno da recente eleição presidencial, quando o fato verdadeiro noticiado na televisão foi que o candidato Lula estava na liderança das pesquisas para o referido pleito 33.

É sob esse contexto recente que o STF se vê no desafio de reanalisar a interpretação que se deve dar à liberdade de expressão como direito fundamental, sendo absolutamente natural, portanto, que a solução para os conflitos jurídico-constitucionais envolvendo a liberdade de expressão, principalmente nas redes sociais, receba outro tipo de resposta da Corte que não seja permitir a divulgação do conteúdo e a posterior responsabilização de quem o divulgou.

E mais! Atualmente, o desafio da Suprema Corte não se limita apenas aos efeitos que a propagação de conteúdo falso ou mentiroso tenha na esfera privada dos indivíduos, pois a Corte tem sido instada a decidir pela manutenção ou não de conteúdos em redes sociais, cuja propagação instantânea e massiva para milhares ou milhões de pessoas pelas redes sociais tem enorme potencial ofensivo ao Estado democrático de direito e às instituições responsáveis pela sua proteção, como, por exemplo, o próprio STF.

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Sobre o autor
Dalton Santos Morais

Professor da graduação do Centro Universitário FAESA e de pós-graduação lato sensu da Escola da Advocacia-Geral da União, da Escola Superior de Advocacia da OAB/SP e do Centro Universitário FAESA.. Mestre em Direito pela UFES e Especialista em Direito do Estado pela Universidade Gama Filho. Procurador Federal da Advocacia-Geral da União.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MORAIS, Dalton Santos. As fake news e a guinada do STF sobre liberdade de expressão. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 28, n. 7184, 3 mar. 2023. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/102188. Acesso em: 27 abr. 2024.

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