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Impropriedades e danos do status de militar como condição de procedibilidade para a persecução penal no crime de deserção praticado por praças sem estabilidade

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Apresenta-se a condição de procedibilidade como a mais adequada natureza jurídica atribuída à exigência do status de militar para a persecução penal castrense nos casos de praças sem estabilidade incursos no crime de deserção.

RESUMO: O objetivo do estudo é apresentar a condição de procedibilidade como a mais adequada natureza jurídica atribuída à exigência do status de militar para a persecução penal castrense nos casos de praças sem estabilidade incursos no crime de deserção. Para tanto, se valeu de uma pesquisa capaz de trazer um breve histórico do Direito material militar, perpassando pela evolução jurisprudencial e doutrinária atinente ao início e a continuidade da ação até o seu trânsito em julgado, além de discorrer sobre as consequentes mazelas à seara administrativa e judicial nas hipóteses de admitir a qualidade de militar como condição de prosseguibilidade.

Palavras-chave: Status de Militar; Condição de Procedibilidade; Administrativa; Judicial; Condição de Prosseguibilidade.


INTRODUÇÃO

 O Ordenamento Jurídico Pátrio é composto, dentre outros ramos, pelo Direito Penal e Processual Penal Militar, que por suas vezes, conceituam-se de uma forma perfunctória, respectivamente, como ramo do direito público que por iniciativa do ente legiferante definirá as condutas consideradas criminosas, e o direito adjetivo utilizado como instrumento por meio do qual, àquelas condutas, seguindo um devido processo legal, após análise probatória, se pertinente, aplicar-se-ão as previstas sanções.

 Especificamente sobre o delito tipificado no artigo 187 do Código Penal Militar, qual seja, o crime de deserção, podemos destacar algumas peculiaridades, dentre elas, a natureza jurídica das condições de procedibilidade e prosseguibiliade da ação penal castrense. Tais institutos são objetos de inúmeras controvérsias ao se procurar definir a natureza jurídica da exigência da qualidade de militar na ação penal do crime em comento, praticado, sobretudo, por praça especial ou sem estabilidade, em especial quando confrontado com o mandamento constitucional.

 O delito supracitado é classificado doutrinariamente como crime propriamente militar, portanto, pode ser praticado somente por militares da união ou dos estados membros.

 Diante do exposto, pretende-se com o presente artigo, após breve histórico do Direito Penal Militar, discorrer sobre o crime de deserção propriamente dito, tipificado no artigo 187 do CPM, detalhando a aplicação dos institutos de condição especial de procedibilidade e prosseguibilidade no processo de deserção, suas impropriedades e decorrentes consequências nocivas à regular persecução penal militar.

 Ao longo do artigo, objetivamente, será apresentado o risco de violação sistêmica aos bens jurídicos, serviço e dever militares, dentre outros, bem como o risco à epidêmica sensação de impunidade despertada nos infratores, principalmente no âmbito das Forças Armadas, ao admitir a qualidade de militar como condição de prosseguibilidade, inclusive, se em todos os momentos processuais penais castrense.


1 BREVE HISTÓRICO DO DIREITO PENAL MILITAR

 Antes de adentrar efetivamente no desenvolvimento da discussão central deste trabalho, faz-se necessário trazer à baila, ainda que de forma superficial, o histórico processo existencial do direito penal militar, perpassando pelas civilizações da antiguidade clássica até a contemporaneidade no Brasil. De fato, a história aponta que o legado deixado pelo povo Romano para a construção da ciência jurídica da humanidade é de grande valia, embora no direito brasileiro essa influência tenha ocorrido notoriamente no campo do direito privado, é perfeitamente possível perceber algumas características que revelam os influxos daquelas regras jurídicas outrora propostas na Roma Antiga, também no campo o direito público, em especial, no Direito Penal Militar.

 Pode-se dizer que o Direito Penal Militar teve suas primeiras aparições na antiguidade clássica. Inicialmente, diante de uma pesquisa atinente às batalhas desenvolvidas na Grécia Antiga, é possível inferir, por exemplo, que o dever cívico, espírito patriótico, a vida dos cidadãos espartanos condicionada a um permanente estado de guerra, bem como, a destacável e respeitável Marinha de Guerra ateniense, são características de um direito militar existente à época, embora notoriamente soframos com a escassez de registros e fontes.

 Como dito acima, uma das batalhas na Grécia antiga foram travadas em especial por espartanos e atenienses, estes possuíam uma respeitável e melhor Marinha de Guerra, enquanto àqueles eram detentores de uma melhor infantaria.

 Não obstante, pode-se destacar uma importante particularidade entre esses dois habitantes gregos, a história registra que a severa disciplina militar era praticamente comum a ambos os povos daquelas Cidades-Estados. Desse modo, asseveram os seguintes doutrinadores, in verbis:

"Mas, acima de tudo, foi a severa disciplina militar a que se submetiam praticamente todos os habitantes da pólis o que mais efetivamente influenciaria o cotidiano das legiões de Roma. Eis um traço comum entre ambas as cidades, mesmo que a disciplina militar, conforme anotou Chrysólito de Gusmão, não possa ser considerado um fenômeno exclusivo da cultura greco-romana.". (Chrysólito, 1915, p.8, apud, Rodrigo Freitas Palma, 2010, p. 65).

 Supracitada característica, sem dúvidas, demostrava evidências militares na tradição dos referidos povos. Durante todo o período clássico da antiguidade, diversos povos tiveram sua contribuição para a história do direito, mas para o contexto do presente trabalho, importante destacar o surgimento e peculiaridades do povo romano, os quais eram considerados como guerreiros sedentos por domínios de terras mais férteis e aráveis, como bem define o autor in verbis:

"Na verdade, aquela que foi a mais influente cidade do Lácio floresceu em virtude das intensas migrações de diversos povos provenientes do Mar Egeu e do sul da Anatólia. Como já tratamos alhures, os primeiros habitantes da região entrecortada pelas sete famosas colinas não passam de pastores ávidos por terras mais férteis e aráveis que aquelas que conheciam na pedregosa Hélade. E, certamente, essas gentes aventureiras vieram a encontrar tais solos e terrenos agricultáveis por todos os arredores da Península Itálica. Esses grupos pioneiros no processo de ocupação do território, como foi visto no Capítulo II, atendiam por diversos nomes, tais como "latinos", "sabinos", "etruscos", "oscos" e "volscos", "équios", sendo os três primeiros, os mais influentes. No decorrer dos séculos, com o intenso progresso de miscigenação ocorrido, sera cada vez mais difícil distingui-los". (Grifo nosso) (Rodrigo Freitas Palma, 2010, p. 68-69).

 Outro fato muito pertinente, é como se deu o processo de formação do exército Romano, definiu-se por quatro diferentes períodos, quais sejam: Realeza, República, Alto Império e Baixo Império, destaque para este último, devido a um registro interessantíssimo, foi nele que formalmente se consignou o Direito Militar Romano, fatos bem desenvolvidos nos trechos abaixo da obra do autor Rodrigo Freitas Palma (PALMA, 2010, p. 69):

"Como já dissemos anteriormente, segundo os cálculos do historiador Varrão, a urbs propriamente dita teria sido fundada no ano 753 a.C. Assim, podemos ter definidos, basicamente, quatro períodos distintos dessa trajetória: Realeza (753-510 a.C.); República (510-27 a.C.); Alto Império (27 a.C. - 284 d.C.) e Baixo Império (284 d.C - 565 d.C.), ainda que existam outras formas de classificação ou abordagem do assunto igualmente válidas.Todavia, foi no Baixo Império ou Dominato (284-565) que o Direito Militar Romano se consolida formalmente através de uma compilação - O Corpus Iuris Civilis. Vale notar que nenhuma outra fonte do Direito Romano fornece uma síntese tão confiável e bem constituída do Direito Castrense na Antiguidade quanto aquela famosa obra elaborada no governo de Justiniano.[...]"

 Apesar da característica militar ser observada na época do povo lacedemônio (Esparta), não há registros escritos, podemos assim dizer, que consignado mesmo ficou a característica militar na era das guerras de conquistas, nas quais temos como grande destaque o povo Romanista.

 Durante a ascensão de Roma, pôde ser observado uma influência de diversas ordens do povo espartano no Direito Penal Militar Romanista, que vai desde o símbolo nacional, vestimentas, até ao trato para com os cidadãos daquela Cidade-Estado. Há registros que Roma ostentava um formidável Brasão, equivalente ao galo com esporas afiadas, símbolo nacional de Esparta. As técnicas de combate corporal tradicionalmente desenvolvidas pelos guerreiros espartanos, utilizando-se de armaduras para proteção da cabeça, capa vermelha representativa da ação de se impor perante aos adversários, bem como, o uso efetivo de escudo e espada que também foram utilizados, gerou benefícios aos Romanos. Outra semelhança interessante era a rejeição de crianças portadoras de necessidade especiais para as atividades castrenses.

 Renomados autores apontam que Roma deixou um importantíssimo legado jurídico para o Direito Brasileiro, ainda que mais bem evidente na seara do Direito Privado, existem limitados estudos nacionais e internacionais os quais demonstram a aparição de tal legado no Direito Militar Romano, não só pela característica beligerante e espírito cívico-militar do cidadão romanista, mas também nos registros de algumas regras afetas à prestação do serviço castrense e identificação de fontes direcionadas a tal direito. Nesses sentidos, assevera PALMA, Rodrigo Freitas (2010, p. 82-83,apud,CARRIÉ, Jean-Michael, 1992, p. 98, apud, GIORDANI, Mario Curtis, 1997, p.115-116, apud, VEGETIUS, Flavius, 2001):

"O processo de formação do Direito Militar Romano, pois, não pode ser conhecido em toda sua extensão se houver negligência a uma característica cultural própria a modelar o espírito do homem romano, qual seja, o seu arraigado compromisso cívico como o militarismo e uma inegável inclinação à beligerância. "Ao alistar-se, o soldado romano não sabe se verá ou não o campo de batalha, mas conhece os riscos a que se expõem, e chega mesmo a desejar enfrentá-los""

"Vegetius, escritor romano que por volta do ano 390 a.C. escreveu a obra Epitome Rei Militaris fala do processo de seleção dos recrutas. O exército, na visão do autor, deveria ser constituído por homens altos e fortes, se bem que esta não era uma exigência absoluta, ressalta o autor, porém, sempre preferível. O soldado, igualmente, deveria saber nada; em síntese, 'exercitar os braços'. Os recrutas recebiam uma marca a ferro quente na palma das mãos. A puberdade era o período ideal para o alistamento, todavia, Vegetius não fez alusão a uma idade específica para o início da prestação do serviço militar[...]"

"Os romanos, por certo, trataram o Direito Militar sob prisma científico, utilizando, inclusive, uma terminologia jurídica particularíssima: (De res militari). Mario Curtis Giordani, oportunamente, identifica pelo menos quatro importantes fontes para o conhecimento do Direito Penal Militar Romano. São elas a Stentiae Pauli (5.31 De poenis militum; o Livro VII do Código Teodosiano (Codex Theodosianus); o Digesto 49.16 (Corpus Iuris Civilis); as obras de Vegetius (Epitome rei militaris) e Rufus (Ex Rufus Leges Militaris).[...]".

 Outro ponto interessante e que retratava bem a existência de peculiaridades de um Direito Militar no Direito Romano era a possibilidade de recompensas destinadas aos virtuosos guerreiros que consagravam-se vitoriosos nas fastidiosas batalhas que participavam. Tais honrarias cuja principal era o "Triunfo" estavam previstas em lei ou se fundamentavam pela tradição militar. Assim vejamos:

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"Mas a vida militar, apesar de árdua, era também convidativa e atraente sob muitos ângulos, especialmente quando se leva em conta o fator cultural de um povo que depositava nos feitos heroicos em guerra, a exata dimensão da virtude humana. Portanto, antes de falarmos dos crimes e das penas previstos no Direito Penal Militar Romano, esboçaremos as honrarias destinadas aos vitoriosos nas batalhas e que se encontravam, igualmente, amparadas por lei ou pela sólida tradição militar ancorada nos mores ditados, ainda em tempos primevos, pela figura dos ancestrais. Deste modo, Mario Curtis Giordani elenca, basicamente, cinco destas recompensas, a saber: 1) Elogios (laudes); Condecorações (phalerae); Braceletes (armillae), Coroas (coronae), Triunfo (trunfo). Sem desconsiderar a importância de todas elas no presente itinerário, pensamos em ser mais útil lançar um foco especial nesta última, a qual era, indubitavelmente, a maior honraria com que um oficial poderia ser agraciado, o que é confirmado, logo em seguida, pelo próprio Giordani: "A maior recompensa que um general vitorioso podia obter era o triunfo: o chefe vencedor, com coroa de louros e em carro puxado por quatro cavalos brancos, partia do Campo de Marte para o desfile triunfal"". (PALMA, Rodrigo Freitas, 2010, p. 86, apud, GIORDANI, Mario Curtis. História do Direito. 16, ed. Petrópolis: Vozes, 1968, p. 115-116).

 Partindo para uma análise mais específica do Direito Penal Militar Romano podemos inferir que já à época, este ramo gozava de uma autonomia peculiar, sua existência representou a criação e preservação da disciplina das legiões romanas ao longo dos movimentos seculares. Nestes termos aponta o Professor Rodrigo de Freitas que: O Direito Penal Militar Romano - conceituado por Giordani como o "conjunto de normas jurídicas que criaram e preservaram a disciplina das legiões romanas através dos séculos" (PALMA, Rodrigo Freitas, 2010, p. 89 apud GIORDANI, Mário Curtis, 1997, p. 115).

 Segundo os ensinamentos do jurista Hélio Lobo, citada na obra do professor Rodrigo Freitas Palma, os romanos já adotavam uma segregação entre o direito comum e o direito castrense, dando a este último uma roupagem própria na qual observava-se delitos e penas especificamente militares. Nestes termos: "Roma teve uma jurisdição penal própria aos militares e separada do Direito Comum" ou - como salienta alhures - "os romanos gozaram de lei penal autônoma, referente aos crimes e as penas militares". (PALMA, Rodrigo Freitas, 2010, p. 89 apud LOBO, Helio, 1906, p. 24)

Podemos observar o registro de alguns crimes militares feitos por renomados escritores da Roma antiga, tais como: deserção, sedição, desobediência contra as decisões dos magistrados, evasão do campo de batalha, abandono de posto, injúria, furto cometido no campo de batalha, incitação à violência, insubordinação, agressão física a um oficial, abandono dos baluartes, fingir-se doente para evitar a luta, traição, repasse de informações ao inimigo, refúgio junto ao inimigo, perda ou entrega das armas e abandono de um superior hierárquico no campo de batalha, salienta-se que estes dois últimos encontram-se consignados no digesto, compilação de obras jurídicas romanas, todos mencionados pelo ilustre professor Rodrigo Freitas Palma em sua obra Direito Militar Romano. No que tange a deserção, ressalta o referido Autor em seus ensinamentos: "que nenhum outro crime foi tão ou mais pormenorizadamente tratado no Disgesto por Triboniano e seus assessores do que a deserção, apesar de não haver no corpo da referida compilação uma tipificação definida para o delito. [...]". E de forma exemplar, continua o mestre, Rodrigo Freitas Palma (PALMA, 2010, p.92-93):

"(...) Sem embargo, seria oportuno notar que aos olhos dos romanos, ao menos no que concerne ao crime em tela, considerava-se mais grave o delito se praticado em tempos de guerra. Ora, decorridos mais de um milênio após o Código Justinianeu ter vindo a lume, torna-se interessante ressaltar que é dessa mesma forma que são organizados os códigos penais militares da atualidade, nos quais normalmente são elencados os chamados " crimes em tempos de paz" e os "crimes em tempos de guerra" [...].

 Além dos crimes supracitados, alguns jurisconsultos à época, como Mommsem, mencionavam, como exemplos de penas militares aplicadas pelos romanos, a pena de morte, considerada a principal do sistema penal militar, a pena corporal, a prisão, o confisco e certas penas relacionadas a trabalho degradante ou forçados" (PALMA, Rodrigo Freitas, 2010, p. 92 apud Mommsen, Teodoro, 1999, p. 21-22).

 Diante do exposto, nota-se, portanto, uma forte e originária aparição do Direito Militar na antiguidade, tendo seus primeiros registros, a pesar de ínfimos, feitos pelos jurisconsultos da Roma antiga, fato que nos permite perceber a influência do tecnicismo e profissionalismo jurídico dos romanos, não só na seara do Direito Civil, como também, especificamente, no âmbito do Direito Penal Militar.

 Por fim, vale ressaltar que o Direito Militar brasileiro teve sua origem com a chegada da corte portuguesa no período colonial, oportunidade em que as influências do império romanista se mostraram bem presentes nas, então, ordenações do Reino: afonsinas, manuelinas e filipinas.

 Não obstante, surgiu em 1830 o Código Criminal do Império com fortes influências da Revolução Francesa de 1789, um dos mais importantes fatos ocorridos no século XVIII, cujos ideais de valorização da dignidade humana passaram também a nortear a construção da jurisdição militar moderna.


2 CRIME MILITAR

 Para melhor compreensão do assunto central deste trabalho interessante tecer breves comentários sobre algumas características importantes do crime militar.

2.1 Aspectos cronológicos do surgimento das regras e instituições Jurídicas Militares

 De início, conforme sucintamente explanado no capítulo anterior, observa-se no Direito Militar brasileiro fortes influências da legislação penal lusitana, em especial as características das Ordenações filipinas em conjunto com os "Artigos de Guerra do Conde de Lippe , que à época consagraram regras de aspectos nitidamente militares.

 Nesse sentido asseverou Renato Rafael de Brito Fell: "Todavia, nas Ordenações Filipinas não havia nítida separação entre Direito Penal Comum e Direito Penal Militar.

 Em 1763, entretanto, juntam-se às Ordenações Filipinas os Artigos de Guerra do Conde de Lippe, consagrando regras de cunho nitidamente militar". (FELL, 2021).

 Com o advento da transferência da família real portuguesa para o Brasil devido ao bloqueio continental aplicado por Napoleão Bonaparte, surge o Conselho Supremo Militar e de Justiça, dando origem a Justiça Militar no país, e a consequente criação de regras especificamente militares.

 Com a promulgação da Constituição Brasileira de 1891, ao supracitado conselho foi dado a denominação de Supremo Tribunal Militar, e após a constituição de 1946 passou a ser chamado de Superior Tribunal Militar, nomeação que persiste até os dias atuais.

 Com o intuito de manter a ordem e disciplina, foi instituído em 1981 o Código Penal da Armada de aplicação apenas na Marinha, em 1899 ampliou-se a aplicação ao Exército por meio da Lei nº 612, adquirindo, portanto, status de primeiro Código Penal Militar aplicado às duas Forças existentes à época, e somente estendido à Força Aérea em 1941, o qual permaneceu em vigor até 1969, cedendo lugar para o atual Código Penal Militar, Decreto-Lei 1.001, outorgado em 21 de outubro de 1969 pela junta militar que governava o Brasil.

2.2 A importância do Código Penal Militar

 Está preconizado na Constituição Federal de 1988, em seu artigo 142, caput, que as FFAA são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e disciplina, sob autoridade suprema do Presidente da República, destinando-se à defesa da pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem. Com base no artigo 42 da Carta Magna, consideram-se militares dos Estados, Distrito Federal e Territórios, os membros das Polícias Militares e Corpo de Bombeiros Militares, instituições organizadas na hierarquia e disciplina.

 Observa-se, portanto, que as instituições supracitadas são possuidoras de bens jurídicos especiais e comuns, tais como a hierarquia e disciplina, embora às FFAA esteja precipuamente atribuída a missão constitucional de defender a pátria, garantir os poderes constitucionais, a lei e a ordem, e às Polícias e ao Corpo de Bombeiros, esteja reservado o exercício da segurança pública, com o intuito de preservar a ordem pública e a incolumidade das pessoas e do patrimônio.

 Os bens jurídicos supramencionados são a base para manutenção do regular funcionamento das instituições militares, não obstante, a disciplina militar, como bem sinalizado na Revista do Ministério Público Militar, edição número 24, 2014, p.26, é um bem pertencente à coletividade, uma vez violado atingirá valores supraestatais, como o regular funcionamento da democracia, dos poderes constituídos, a paz interna, a segurança pública, a defesa nacional e a sobrevivência do estado.

 Em vistas a coibir violações à bens jurídicos caros às instituições militares e essenciais à manutenção do convívio social, a constituição previu em seu artigo 124, caput e §4º, que à Justiça Militar competirá processar e julgar os crimes militares definidos em lei, qual seja, o Código Penal Militar.

2.3 Conceito e classificação do crime militar

 Embora não haja uma conceituação de crime militar no código penal castrense, de acordo com a doutrina majoritária e o entendimento pacífico do Superior Tribunal Militar, o legislador ordinário o definiu utilizando-se do critério em razão da lei (ratione legis), ou seja, são considerados crimes militares àqueles definidos em lei. Assim dispõem o art. 124 da CRFB/88, in verbis:

"Art. 124. À Justiça Militar compete processar e julgar os crimes militares definidos em lei.

Parágrafo único. A lei disporá sobre a organização, o funcionamento e a competência da Justiça Militar."

 Não obstante, é cediço que estão presente na lei, ainda que implicitamente, outros critérios como em razão da matéria (ratio materiae), pela qual exige-se a qualidade do militar no ato e no agente, em razão da pessoa (ratio personae), pela qual é mister que o militar seja o sujeito ativo, levando-se em consideração, de forma exclusiva, a qualidade do agente, em razão do lugar (ratio loci), aqui é considerado apenas que a prática delituosa ocorra em lugar sob a administração militar, e por fim, em razão do tempo (ratio temporis), são crimes militares àqueles ocorridos em tempos determinados, como exemplo, cita-se os ilícitos praticados em tempo de guerra ou no período de manobras e exercícios.

Nesse sentido, Jorge César de Assis:

"Daí, conforme já dissemos anteriormente, "a classificação do crime em militar se faz pelo critério ratione legis, ou seja, é crime militar aquele que o Código Penal Militar diz que é, ou melhor, enumera em seu art. 9º. Por sua vez, as diversas alíneas do inc. II esposam concomitantemente outros critérios, quais sejam, em razão da matéria, da pessoa, do lugar e do tempo. (ASSIS, 2004, pag. 5)".

 Este entendimento foi fortalecido por Cícero Robson Coimbra Neves e Marcello Streifinger na obra Manual de Direito Penal Militar, editora Saraiva, ao afirmarem que a variedade de critérios existentes para a caracterização do crime militar ensejava em alguns momentos da história do Direito Penal Militar brasileiro a sobreposição de um em detrimento do outro, na tentativa de solucionar esse impasse o legislador enumerou todos os critérios sem que um prevalecesse nitidamente sobre o outro, concluindo, portanto que o delito militar seria àquele que a lei definisse como tal.

 Nesse diapasão, podemos classificar tais crimes como propriamente militares, passíveis de prisão, ainda que não haja estado de flagrância ou ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, conforme previsto no artigo 5º, LXI da CRFB/88, ou impropriamente militares. Àqueles, doutrinariamente, considerados delitos constantes no Código Penal Militar possíveis de serem praticados somente por militares, a exemplo da deserção, cujo fato descrito no tipo, o civil jamais poderá incorrer. Estes conceituam-se como sendo os praticados também pelo civil, esteja a conduta prevista no ordenamento jurídico castrense ou na legislação penal, e amolde-se a uma das hipóteses previstas no artigo 9º do CPM, o qual descreverá quando um crime será militar ou comum.

 Importante consignarmos que anteriormente, só poderia ser considerado crime militar a conduta existente na parte especial do Código Penal Militar, ainda que o agente estivesse no exercício da função, com o advento da Lei nº 13.491/2017, uma conduta descrita em qualquer legislação penal brasileira poderá ser classificada como crime militar, tal possibilidade se deu pela nova redação do inciso II do artigo 9º, pelo qual consideram-se crimes militares em tempo de paz, os previstos na parte especial do Código Penal Militar e os tipificados na legislação penal, quando adequado a certas hipóteses, fato que ficou conhecido, doutrinária e jurisprudencialmente como crime militar por extensão.

 Vale destacar que, embora seja possível o civil praticar crime militar na esfera federal, sendo competente para julgá-lo e processá-lo, a Justiça Militar da União, nos termos do artigo 124 da CRFB/88 c/c artigo 9º, inciso III do CPM, não há o que se falar do mesmo na esfera estadual, na qual não cabe julgamento de civil na Justiça Militar Estadual por força do artigo 125 § 4º da CRFB/88.

 Em suma, de forma bem rasa e sem a pretensão de esgotar o registro de pontos importantes, para se chegar à conclusão de que está diante de um crime militar, deve-se observar não só o conceito analítico ou estratificado de crime, pelo qual é necessário constatar a existência de um fato típico, antijurídico ou ilícito e culpável, mas também avaliar se as condutas tipificadas tanto no Código Penal Militar como também na legislação penal comum ou especial, se enquadram nas hipóteses previstas no artigo 9º do Código Penal castrense, senão vejamos:

Art. 9º Consideram-se crimes militares, em tempo de paz:

I - os crimes de que trata êste Código, quando definidos de modo diverso na lei penal comum, ou nela não previstos, qualquer que seja o agente, salvo disposição especial;

II os crimes previstos neste Código e os previstos na legislação penal, quando praticados:

a) por militar em situação de atividade ou assemelhado, contra militar na mesma situação ou assemelhado;

b) por militar em situação de atividade ou assemelhado, em lugar sujeito à administração militar, contra militar da reserva, ou reformado, ou assemelhado, ou civil;

c) por militar em serviço ou atuando em razão da função, em comissão de natureza militar, ou em formatura, ainda que fora do lugar sujeito à administração militar contra militar da reserva, ou reformado, ou civil;

d) por militar durante o período de manobras ou exercício, contra militar da reserva, ou reformado, ou assemelhado, ou civil;

e) por militar em situação de atividade, ou assemelhado, contra o patrimônio sob a administração militar, ou a ordem administrativa militar;

III - os crimes praticados por militar da reserva, ou reformado, ou por civil, contra as instituições militares, considerando-se como tais não só os compreendidos no inciso I, como os do inciso II, nos seguintes casos:

a) contra o patrimônio sob a administração militar, ou contra a ordem administrativa militar;

b) em lugar sujeito à administração militar contra militar em situação de atividade ou assemelhado, ou contra funcionário de Ministério Militar ou da Justiça Militar, no exercício de função inerente ao seu cargo;

c) contra militar em formatura, ou durante o período de prontidão, vigilância, observação, exploração, exercício, acampamento, acantonamento ou manobras;

d) ainda que fora do lugar sujeito à administração militar, contra militar em função de natureza militar, ou no desempenho de serviço de vigilância, garantia e preservação da ordem pública, administrativa ou judiciária, quando legalmente requisitado para aquêle fim, ou em obediência a determinação legal superior.

Parágrafo único. Os crimes de que trata este artigo, quando dolosos contra a vida e cometidos contra civil, serão da competência da justiça comum.

Parágrafo único. Os crimes de que trata este artigo quando dolosos contra a vida e cometidos contra civil serão da competência da justiça comum, salvo quando praticados no contexto de ação militar realizada na forma do art. 303 da Lei no 7.565, de 19 de dezembro de 1986 - Código Brasileiro de Aeronáutica. (Redação dada pela Lei nº 12.432, de 2011)

§ 1o Os crimes de que trata este artigo, quando dolosos contra a vida e cometidos por militares contra civil, serão da competência do Tribunal do Júri. (Redação dada pela Lei nº 13.491, de 2017)

§ 2o Os crimes de que trata este artigo, quando dolosos contra a vida e cometidos por militares das Forças Armadas contra civil, serão da competência da Justiça Militar da União, se praticados no contexto: (Incluído pela Lei nº 13.491, de 2017)

I do cumprimento de atribuições que lhes forem estabelecidas pelo Presidente da República ou pelo Ministro de Estado da Defesa;(Incluído pela Lei nº 13.491, de 2017)

II de ação que envolva a segurança de instituição militar ou de missão militar, mesmo que não beligerante; ou (Incluído pela Lei nº 13.491, de 2017)

III de atividade de natureza militar, de operação de paz, de garantia da lei e da ordem ou de atribuição subsidiária, realizadas em conformidade com o disposto no art. 142 da Constituição Federal e na forma dos seguintes diplomas legais: (Incluído pela Lei nº 13.491, de 2017)

a) Lei no 7.565, de 19 de dezembro de 1986 - Código Brasileiro de Aeronáutica; (Incluída pela Lei nº 13.491, de 2017)

b) Lei Complementar no 97, de 9 de junho de 1999; (Incluída pela Lei nº 13.491, de 2017)

c) Decreto-Lei no 1.002, de 21 de outubro de 1969 - Código de Processo Penal Militar; e (Incluída pela Lei nº 13.491, de 2017)

d) Lei no 4.737, de 15 de julho de 1965 - Código Eleitoral. (Incluída pela Lei nº 13.491, de 2017).

 Por fim, sem aprofundar o assunto por não ser o foco deste trabalho, cabe informar que os crimes militares podem ocorrer também em tempo de guerra conforme preconizado no artigo 10 do Código Penal Militar, bem como aproveitar para consignar que os crimes dolosos contra a vida praticados por militares das Forças Armadas dentro do contexto do artigo 9º, § 2º do Código Penal Militar, serão julgados e processados pela Justiça Militar da União, inovação esta trazida pela Lei 13.491/17.

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Sobre o autor
Neilton Jacinto Bulcão Mathias

Bacharel em Direito pelo Centro Universitário Augusto Motta do Rio de Janeiro (2015). Pós-Graduado em Direito Militar pela Faculdade Verbo Educacional (2022). Assessor Adjunto de Justiça. Militar da Marinha do Brasil.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MATHIAS, Neilton Jacinto Bulcão. Impropriedades e danos do status de militar como condição de procedibilidade para a persecução penal no crime de deserção praticado por praças sem estabilidade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 27, n. 7006, 6 set. 2022. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/99882. Acesso em: 27 abr. 2024.

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