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A figura do juiz das garantias no contexto internacional e nacional

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18/01/2022 às 22:22
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É inegável que a figura do juiz das garantias representa enorme e evidente avanço civilizatório no processo penal mundo afora.

O atual cenário político demonstra um anseio da sociedade para que o sentimento de impunidade não vença. Nesse sentido, as autoridades são cobradas pela população e, por vezes, pela mídia, para que seja desenvolvida uma investigação de forma célere e eficaz.

Por outro lado, a promulgação da Constituição Federal de 1988 introduz a concepção do Estado Democrático de Direito, no qual princípios como da presunção de inocência e do contraditório são basilares na visão do garantismo penal, de forma que, nesse contexto, a atuação moderna do magistrado é, antes de tudo, como verdadeiro garantidor da observância de direitos fundamentais.

Visando concretizar tais premissas constitucionais, surge a figura do juiz das garantias, peça fundamental no controle de legalidade das investigações. Embora seja instituto recente no Brasil, ainda em fase preambular acerca de sua constitucionalidade, conforme será abordado na presente pesquisa, o alvissareiro modelo, no contexto internacional, ocupa posição de destaque em países europeus e da América Latina.

Isso porque, conforme leciona Gimenes (2019), a figura do juiz das garantias foi pensada e aplicada em algumas nações europeias num período pós-segunda guerra, no qual os direitos fundamentais ganharam um papel notório em seus ordenamentos jurídicos. Assim, buscou-se aplicar, de forma universal, o princípio da imparcialidade, por meio de regras expressas com objetivo de separar os órgãos jurisdicionais de controle de investigação preliminar e de julgamento da ação penal.

1.1 Breves comentários acerca da Lei n° 13.964/2019 (Pacote Anticrime)

No Brasil, o modelo adotado por meio da Lei n.º 13.964/19, conhecida como Pacote Anticrime, dá destaque e enfoque ao sistema penal acusatório, de acordo com o que disciplina o art. 3º-A do Código de Processo Penal (CPP)[1], conforme trabalha a Constituição Federal de 1988, e se distancia de forma muito nítida da figura do juiz de instrução, na forma em que a legislação modificante traz vedação à iniciativa de ofício do juiz na fase de investigação e à substituição da atuação probatória do órgão de acusação pelo julgador.

Isso porque é sabido que o vigente Código de Processo Penal brasileiro, cuja entrada em vigor consta na data de 1° de janeiro de 1942, prevê no seu escopo distintas disposições legais em comparação à Carta Magna, por guardar resquícios de um sistema penal inquisitório, ou seja, marcado pela oralidade, sigilo processual, sem direito ao contraditório e ampla defesa, no qual o acusado era tratado como objeto do processo, consoante ensina Pacelli (2021, p. 165).

Referido código, tendo sua vigência em plena ditadura militar, guarda diferenciações quanto à Constituição Federal que, ao outorgar ao Ministério Público a função institucional de promover a ação penal pública[2], na forma da lei, consagrou, no o sistema acusatório como organizador e estruturante do processo penal pátrio. Trata-se o sistema acusatório como imperativo do moderno processo penal, conforme aduz Júnior (2019). Ademais, conforme ainda prossegue o autor: em última análise, é a separação de funções (e, por decorrência, a gestão de prova na mão das partes e não do juiz) que cria as condições de possibilidade para que a imparcialidade se efetive. Somente no processo acusatório-democrático, em que o juiz se mantém afastado da esfera de atividade das partes, é que podemos ter a figura do juiz imparcial, fundante da própria estrutura processual.

Nesse sentido, objetivando esclarecer qual sistema foi adotado no ordenamento jurídico brasileiro, tornou-se latente a necessidade de modificação da legislação infraconstitucional para que a estrutura do processo penal fosse finalmente adaptada à ordem constitucional. Assim, destaca Pacelli que um dos maiores passos dados pela Lei n.º 13.964/19 foi justamente a elucidação do legislativo em torno da estrutura acusatória.

1.2. O que é o juiz das garantias?

Basicamente, pode-se afirmar que se trata de um magistrado que atuará na fase de investigação dentro da persecução criminal. O juiz das garantias apresenta, como objetivo precípuo, o controle da legalidade da investigação, além de garantir os direitos individuais aos investigados, bem como fazer as considerações e decisões em relação às reservas de jurisdição, tais como prisão preventiva, quebra de sigilo bancário e fiscal, interceptação telefônica, próprias desse momento processual que é o inquérito policial, anterior à fase da ação penal.

Como forma de demonstrar a sua atuação, pode-se mencionar aqui a possibilidade de análise da prisão em flagrante, isto é, se há ou não o elemento da legalidade, bem como acerca do uso de algemas em audiência de custódia, em atenção à súmula vinculante n.º 11 do Supremo Tribunal Federal (STF)[3]

Nesse sentido, segundo Viana, 2021, referido magistrado vai zelar para que as garantias e direitos esculpidos na Constituição Federal sejam preservados em relação ao sujeito que está sendo investigado. Conforme prossegue a autora, basicamente se inverterá o olhar que existe do investigado como objeto, transformando-o em sujeito de direitos. Assim, o juiz das garantias, que atua na fase de investigação, não será o mesmo juiz que atuará na fase de instrução e que irá julgar a lide, resultando, portanto, em dois juízes atuantes.

Com efeito, como ilustra Renato de Lima (2020, p. 114):

Consiste, pois, na outorga exclusiva, a um determinado órgão jurisdicional, da competência para o exercício da função de garantidor dos direitos fundamentais na fase investigatória da persecução penal, o qual ficará, na sequência, impedido de funcionar no processo judicial desse mesmo caso penal. Cuida-se de verdadeira espécie de competência funcional por fase do processo [...].

Acerca da necessidade de dois juízes, Aury Lopes Junior (2020, p. 188) leciona que é fundamental tal sistemática, pois a matriz acusatória constitucional depreende não haver imparcialidade do juiz, tampouco estrutura dialética ou contraditório em um sistema inquisitório, cuja aglutinação de funções está na mão de único magistrado. Além do mais, baseia-se na garantia da originalidade cognitiva, a qual o juiz deve formar sua convicção a partir da prova colhida originariamente no contraditório judicial.

Consoante explica Oliveira (2020), desde o início da vigência da Constituição Federal procura-se um processo penal cujo o sistema acusatório seja adotado em sua totalidade, deixando no passado o sistema inquisitorial de um código, o qual atribuía poderes instrutórios ao juiz - verdadeiro protagonista do processo -, cujas determinações foram estabelecidas em pleno período de Estado Novo (1930-1945).

Como evidencia André Nicolitt (2019, p. 47):

O Código de Processo Penal, instituído pelo Dec.-Lei 3.689/1941 é inspirado na legislação italiana de 1930, com cariz autoritário em razão da influência do regime fascista que imperou no referido período. Essa cultura impregnou-se de tal forma que nem mesmo a recente reforma processual de 2008 foi capaz de purificar o Código de toda influência inquisitória e autoritária, incompatível com a ordem constitucional democrática.

É triste notar que, infelizmente, a construção legislativa italiana desde 1930 até o presente momento não fora acompanhada pelo Brasil, principalmente no tocante a influência do sistema acusatório e a imparcialidade da figura do juiz além da dissonância cognitiva[4], fundamental e necessária para formar seu convencimento acerca do fato sob julgamento.

Nesse aspecto, como aduz Junior e Ritter (2017), a teoria da dissonância cognitiva passou a ser conhecida em 1957, através da obra A Theory Cognitive Dissonance de Leon Festinger e se apresenta, essencialmente, de um estudo acerca da cognição e do comportamento humano. Basicamente, podemos afirmar que o ser humano tem ideias ou cognições que são consonantes (coerentes e compatíveis), porém existe a possiblidade de apresentar convicções ou opiniões dissonantes (incoerentes ou incompatíveis). Ou seja, o indivíduo está sempre buscando esse estado de coerência, melhor dizendo, a consonância. No entanto, há casos que ocorre o rompimento desse estado e o indivíduo se encontra em situação de incoerência, ou melhor falando, de dissonância entre seus próprios pensamentos, ou ainda entre a sua ação e razão.

Isso pode se apresentar de diversos fatores, como o hábito de fumar (ação) e o sujeito passa a ter conhecimento que esse costume pode apresentar problemas para a saúde (razão) e permanece com o hábito, sem que queira se matar ou adoecer, por exemplo. Trata-se então verdadeiramente de uma forma de tensão ou angústia psicológica que um ser humano passa a sentir ao ter conhecimento que possui crenças ou pensamentos contraditórios e dissonantes sobre determinado elemento. Em bem da verdade, é um anseio básico e natural do ser humano, tendo em vista que ele sempre irá querer diminuir ou eliminar esse estado de dissonância para um estado de congruência.

Tal tema guarda relação com o juiz de garantias e a imparcialidade do juiz, na medida que a teoria da dissonância cognitiva é usada na seara do processo penal e é empregada frontalmente  sobre a atuação do magistrado desde a fase de investigação até a formação se sua decisão, tendo em vista que este mesmo magistrado estará diante de posições antagônicas e incompatíveis (teses de acusação e defesa), além de ter que lidar com a sua opinião sobre o caso em tela. O juiz começa a ter e construir uma imagem mental sobre os fatos desde o momento em que se apresenta o inquérito policial e a denúncia, e se tem, portanto um pré-julgamento e uma opinião já quase formada, principalmente se ele já vai ter que tomar decisões preliminares como prisão preventiva e medidas cautelares.

Por ter essa imagem já concebida, ele tentará confirmá-la durante a fase de instrução criminal, a qual o juiz vai querer se afastar das teses dissonantes, superestimando as informações consonantes, haja vista que o indivíduo sempre busca o equilíbrio do seu sistema cognitivo, uma relação que não seja contraditória. Portanto, ao construir sua convicção inicial, com seu envolvimento com a investigação preliminar, maiores são os níveis de contaminação do processo e menores são as chances de um julgamento imparcial.

Portanto, conclui-se haver a importância do juiz das garantias e apresenta como seu objetivo primordial garantir o impedimento de contaminação que o órgão julgador venha a ter com circunstâncias fáticas provenientes de informações do inquérito policial, para resolver os problemas acima citados, com a finalidade de garantir a maior imparcialidade possível.

Explicado a relação da teoria da dissonância cognitiva com o juiz das garantias, conforme o trabalho de Dos Santos (2021), o estudo de campo realizado por Schunemann (APUD Lopes junior, 2020, p. 144), confirmou várias hipóteses, entre elas, a mais sabida de todos: quanto maior for o nível de conhecimento/envolvimento do juiz com a investigação preliminar e o próprio recebimento da acusação, menor será o interesse dele pelas perguntas que a defesa faz para a testemunha, portanto, haverá uma chance maior de condenação.

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Nesse sentido, isso só reafirma que a imparcialidade do juiz fica enormemente prejudicada, e, com a imparcialidade do juiz prejudicada, vidas humanas presentes no processo ficam muito prejudicadas e em eventual risco, haja vista aonde não se tem um julgamento justo, onde o sistema prisional é decrepito, é algo que é muito perigoso.

É notório o fato de que o Brasil precisa do juiz das garantias, como o ser humano precisa do ar para sobreviver. Trata-se de verdadeira inviabilidade continuar a persistir com a ideia do sistema inquisitório e, percebe-se também, que cada vez mais fica visível que se condena não para ressocializar, mas sim para punir, e não punir de forma racional, mas de forma de erradicar de toda forma a criminalidade, passando por princípios consagrados no ordenamento pátrio, além de garantias, apenas para fazer parecer para a população que tem um herói ali na figura do juiz, e ele está por você para te vingar.

O que se pode perceber é que o sistema inquisitorial no Brasil está cada dia que passa se parecendo com o velho código de Hamurabi, na qual se objetiva pelo olho por olho e o dente por dente, visando cada vez mais de certa forma uma vingança, alimentando cada vez mais esse sentimento punitivo e ignorando o princípio da imparcialidade. Atualmente, o projeto encontra-se aguardando julgamento final  pelo Supremo Tribunal Federal, em que ventilam-se diversas questões, desde jurídicas a forma de aplicação prática do instituto, alegando-se que além de um gasto extra, a proposta de dois juízes no processo veio de um partido contrário ao governo e isso é visto pelos simpatizantes e outros como algo horrendo, não constatando os benefícios a vida humana.

O juiz de garantias então, nasceu para ser mais um escudo da sociedade para protegê-la das impunidades e injustiças cometidas por diversas vezes pela já contaminação por meio das provas dos julgadores. De fato, a regulamentação no Brasil dessa figura já aplicada e com funcionamento adequado em outros países, seria de enorme valia para a justiça brasileira, haja vista que se protegeria os direitos dos investigados em meio essa sede de punir que tem o Estado.

Para Nucci, 2020, p.39:

Consolida-se o Estado democrático de direito com a inserção, no campo processual penal, do juiz de garantias, que nada mais é do que um juiz especialmente designado para cuidar da fase investigatória de um crime, apurando-se o seu autor.

Outrossim, em linhas gerais, o juiz das garantias objetiva por em conformidade com o princípio da imparcialidade do juiz, princípio este que estudaremos no capítulo adiante, já que aquele responsável por lançar a sentença terá originalidade quanto às provas, haja vista que devem ser produzidas na instrução criminal, resguardado os casos de provas antecipadas produzidas. Para concluir, se tem então a não contaminação da figura do julgador.

Pode-se então afirmar que o juiz das garantias veio reforçar o sistema acusatório, já consagrado na nossa Constituição Federal, na medida em que se separa as funções de julgar e acusar. Como bem afirma Lopes (2016), trata-se o juiz das garantias do aprimoramento, e até poderia se mencionar aqui a salvação da jurisdição penal atual que, nas palavras do autor, é inválida, ilegítima e ilegal, posto se não for exercida de modo imparcial. De maneira simples, para o entendimento do leitor, é isso que deve ser levado em consideração e que, obviamente, beneficia tanto o indivíduo quanto a coletividade. A proposta tem como objetivo, reprisa-se aqui, dar condições para que haja imparcialidade e autonomia para o julgador do caso, para que este não seja um terceiro manipulado no processo.

Inclusive, basta que seja feita a leitura da exposição de motivos do Projeto do Código que se quer aprovar[5], formulada pela Comissão de Juristas responsável pela elaboração do seu anteprojeto e que já no seu primeiro parágrafo acentua a imprescindibilidade da reforma em questão para finalmente se adequar o Código de Processo Penal aos ditames da Carta da República de 1988, para se chegar a essa conclusão.

Perfeitamente ilustrada no seguinte trecho do relatório do Senador Renato Casagrande sobre o juiz das garantias no projeto de reforma do CPP:

O projeto de Código institui a figura do juiz de garantias para romper com essa lógica da prevenção. Com efeito, o juiz chamado a intervir no inquérito policial ficará impedido de julgar o caso (art. 17). Trata-se, portanto, de um giro de 180 graus. A ideia é garantir ao juiz do processo ampla liberdade crítica em relação ao material colhido na fase de investigação. O raciocínio é o seguinte: o juiz que atua no inquérito, seja mantendo o flagrante ou decretando a prisão preventiva do investigado, seja autorizando a quebra dos dados resguardados por sigilo constitucional, incluindo a interceptação das conversas telefônicas, seja permitindo técnicas invasivas como a infiltração de agentes, pois bem, esse juiz tende, cedo ou tarde, a assumir a perspectiva dos órgãos de persecução criminal (polícia e Ministério Público). Por isso, para que o processo tenha respeitado o equilíbrio de forças e assegurada a imparcialidade do magistrado, seria melhor, na ótica do PLS nº 156, de 2009, separar as duas funções. Além do mais, como teríamos um juiz voltado exclusivamente para a investigação, estima-se que isso se traduza em maior especialização e, portanto, ganho de celeridade. Com efeito, a competência do juiz das garantias cessa com a propositura da ação penal e alcança todas as infrações penais (art. 16), ressalvadas as de menor potencial ofensivo, que seguem o rito dos juizados especiais. Todavia, é preciso ter claro que o juiz das garantias difere do juiz das varas de inquérito policial, hoje instituídas em algumas capitais, como São Paulo e Belo Horizonte. É que o juiz das garantias deve ser compreendido na estrutura do modelo acusatório que se quer adotar. Por conseguinte, o juiz das garantias não será o gerente do inquérito policial, pois não lhe cabe requisitar a abertura da investigação tampouco solicitar diligências à autoridade policial. Ele agirá mediante provocação, isto é, a sua participação ficará limitada aos casos em que a investigação atinja direitos fundamentais da pessoa investigada. O inquérito tramitará diretamente entre polícia e Ministério Público. Quando houver necessidade, referidos órgão dirigir-se-ão ao juiz das garantias. Hoje, diferentemente, tudo passa pelo juiz da vara de inquéritos policiais.

1.3. Origem histórica

Consoante já retratado anteriormente, embora o juiz das garantias seja instituto novo no Brasil, a divisão que ocorre da atividade jurisdicional do Estado nas fases pré-processual e processual tem origem aplicada em outros países da Europa, caso são exemplos Portugal, França e Itália, bem como países do continente americano, dentre eles os Estados Unidos, Colômbia e Chile, todos com o objetivo de garantir o devido processo legal e assegurar, como função primordial, os direitos concernentes a partes no esboço do processo penal.

A divisão da atividade jurisdicional na figura de um novo juiz que atuará no processo para devidos fins de garantia dos direitos do investigado, segundo Dos Santos (2021), começou a ser aplicada pelo Tribunal Europeu de Direitos Humanos (TEDH), que compreendeu logo após os casos de Piersack, de 1982, e De Cubber, de 1984, em que a figura de apenas um juiz com poderes investigatórios incidiria em verdadeira incompatibilidade com a função de julgador, tendo em vista que, se uma pessoa produz o instrumento probatório e decide através da prova que ela mesma ajudou a produzir, tal quadro demonstraria um julgador comprovadamente imparcial.

Nesse sentido, é assim que se encontra a matriz do sistema acusatório brasileiro, diferentemente de outros países que tem o juiz para garantir direitos ao investigado.

Por essa análise, como relata Lopes Júnior, 2020, p. 142-143:

O Tribunal Europeu de Direitos Humanos (TEDH), especialmente nos casos Piersack, de 1º/10/1982, e De Cubber, de 26/10/1984, consagrou o entendimento de que o juiz com poderes investigatórios é incompatível com a função de julgador. ou seja, se o juiz lançou mão de seu poder investigatório na fase pré-processual, não poderá, na fase processual, ser o julgador. É uma violação do direito do juiz imparcial consagrado no art. 6.1 do Convenio para a Proteção do Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais, de 1950. Segundo o TEDH, a contaminação resultante dos pré-juízos conduz à falta de imparcialidade subjetiva ou objetiva. Desde o caso Piersack, de 1982, entende-se que a subjetiva alude à convicção pessoal do juiz concreto, que conhece de um determinado assunto e, desse modo, a sua falta de pré-juízos.

Desse modo, vê-se que a ótica por trás do juiz de garantias começou a ser aplicada e aperfeiçoada no mundo para a preservação do princípio da imparcialidade do juiz. No Brasil, os anseios da mídia e o sentimento de impunidade acabam revelando, do contrário, a figura do juiz-herói, o qual tem como parâmetro o magistrado que busca erradicar a criminalidade, desprezando, contudo, as garantias dos investigados para que se possa ter a justiça feita, embora, para os operadores do direito, sabe-se que tal concepção de justiça por vezes acaba sendo injusta.

1.4. Precedentes internacionais

De modo bem-sucedido, entre os países que adotaram o juiz das garantias, por meio de disposições institucionais e procedimentais variados, tanto países desenvolvidos como Alemanha, Itália e França, quanto países de menor desenvolvimento econômico, como é o caso de Chile e da Colômbia, adotaram a divisão da competência funcional para a etapa pré-processual.

Outrossim, conforme destaca Dos Santos (2021), na França tal magistrado é conhecido como juiz das liberdades e da detenção, sendo utilizado desde o início do século XXI, com a promulgação da Lei de Presunção de Inocência em 15 de junho de 2000. No que diz respeito a sua nomeação, o juiz das liberdades e da detenção é um juiz de direito designado pelo presidente do Tribunal de Primeiro Grau (Tribunal de Grand Instance) e especializado em poderes crescentes em matéria de violação da liberdade individual, atuando em diversas atribuições durante a fase de inquérito, dentre as quais se destacam: decidir sobre liberdade provisória, prisão provisória, prisão domiciliar e monitoramento eletrônico, bem como demandar a indisponibilidade de bens em casos de crime organizado, além de ordenar a internação psiquiátrica compulsória de uma pessoa investigada ou determinar sua liberdade.

Com efeito, dentre os países que adotaram tal modelo na estrutura acusatória, destacam-se Portugal, Itália e Chile, seja pela similitude com o modelo proposto no Brasil, seja pela diversidade na forma de tratativa da matéria, como será abordado a seguir.

1.4.1. Portugal

Diferentemente do ordenamento brasileiro, o processo penal português, embora se encontre albergado pelo sistema acusatório, conforme leciona Costa (2012), estrutura-se em três fases distintas: uma preliminar e obrigatória, chamada de inquérito, que tem como objetivo angariar provas e indícios de autoria, presidida pelo Ministério Público; uma segunda, de viés facultativo, responsável pela apuração do delito e, por fim, uma terceira, na qual se dará o julgamento, sendo, efetivamente, a ação penal. 

Nesse sentido, o Ministério Público, após uma exaustiva investigação, decidirá sobre submeter ou não o investigado a julgamento. Entre esta fase e o inquérito há uma intermediária, não-obrigatória, denominada de instrução, que tem por finalidade confirmar ou não a acusação, estando a cargo do juiz de instrução. É o que prescreve o art. 286 do Código de Processo Penal português, in verbis:

Art. 286 Finalidade e âmbito da instrução 1 - A instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento. 2-A instrução tem carácter facultativo. 3 - Não há lugar a instrução nas formas de processo especiais.

Ensinam Chalfun e Junior (2020) que, sob o nome de juiz da instrução, emerge a primeira experiência efetiva datada de 1987 do Código de Processo Penal português. Em uma análise do panorama da legislação portuguesa, nos termos do art. 17 do mesmo diploma legal, ao juiz da instrução compete "proceder à instrução, decidir quanto à pronúncia e exercer todas as funções jurisdicionais até a remessa do processo para julgamento" (PORTUGAL, 1987), estando os atos a serem por ele praticados previstos nos arts. 268 e 269 do mesmo diploma legal. Confiram-se:

"art. 268 [...] 1 - Durante o inquérito compete exclusivamente ao juiz de instrução:

a) Proceder ao primeiro interrogatório judicial de arguido detido;

b) Proceder à aplicação de uma medida de coacção ou de garantia patrimonial, à excepção da prevista no artigo 196.º, a qual pode ser aplicada pelo Ministério Público;

c) Proceder a buscas e apreensões em escritório de advogado, consultório médico ou estabelecimento bancário, nos termos do n.º 3 do artigo 177.º, do n.º 1 do artigo 180.º e do artigo 181.º;

d) Tomar conhecimento, em primeiro lugar, do conteúdo da correspondência apreendida, nos termos do n.º 3 do artigo 179.º;

e) Declarar a perda a favor do Estado de bens apreendidos, com expressa menção das disposições legais aplicadas, quando o Ministério Público proceder ao arquivamento do inquérito nos termos dos artigos 277.º, 280.º e 282.º;

f) Praticar quaisquer outros actos que a lei expressamente reservar ao juiz de instrução.

2 - O juiz pratica os actos referidos no número anterior a requerimento do Ministério Público, da autoridade de polícia criminal em caso de urgência ou de perigo na demora, do arguido ou do assistente.

3 - O requerimento, quando proveniente do Ministério Público ou de autoridade de polícia criminal, não está sujeito a quaisquer formalidades.

4 - Nos casos referidos nos números anteriores, o juiz decide, no prazo máximo de vinte e quatro horas, com base na informação que, conjuntamente com o requerimento, lhe for prestada, dispensando a apresentação dos autos sempre que a não considerar imprescindível" (PORTUGAL, 1987).

"art. 269 [...] 1 - Durante o inquérito compete exclusivamente ao juiz de instrução ordenar ou autorizar:

a) A efetivação de perícias, nos termos do n.º 3 do artigo 154.º;

b) A efectivação de exames, nos termos do n.º 2 do artigo 172.º;

c) Buscas domiciliárias, nos termos e com os limites do artigo 177.º;

d) Apreensões de correspondência, nos termos do n.º 1 do artigo 179.º;

e) Intercepção, gravação ou registo de conversações ou comunicações, nos termos dos artigos 187.º e 189.º;

f) A prática de quaisquer outros actos que a lei expressamente fizer depender de ordem ou autorização do juiz de instrução.

2 - É correspondentemente aplicável o disposto nos n.os 2, 3 e 4 do artigo anterior" (PORTUGAL, 1987).

Feita a análise do acima disposto, dúvida não há de que ao juiz da instrução cabe a função de garantidor no âmbito pré-processual, ou seja, de controle de legalidade da investigação criminal, bem como o resguardo dos direitos fundamentais dos direitos do acusado na mencionada fase, cabendo a outro magistrado dirimir a fase processual, por força do art. 17 do Código de Processo Penal Português[6].

Nesse aspecto, observa-se que o juiz de instrução é bem diferente do juiz de garantias aplicado no Brasil, haja vista ser uma segunda fase de três, sendo esta fase facultativa, enquanto no juiz de garantias brasileiro há apenas duas fases, sendo essa primeira fase obrigatória (além da fase processual também obrigatória), de forma que se observa, em certa medida, falha do legislador português ao não aplicar o caráter obrigatório ao referido instituto, tendo em vista o seu caráter fundamental para a efetivação dos direitos do acusado.

1.4.2. Itália

Após a superação do Código Rocco, datado de 1930 e com fortes premissas do movimento fascista italiano, em que vigorava forte punibilidade pelo Estado em relação ao sujeito, segundo pontua Serrano (2012), a Itália sofreu uma reforma em seu Código de Processo Penal nos anos de 1987 a 1988, com entrada em vigor em 1989.

O novel diploma italiano, por sua vez, foi responsável por adotar o sistema acusatório, como demonstra Ferrajoli (apud Serrano, 2012), passando o processo penal a adotar uma relação trigonal entre juiz, acusação e defesa, em antítese ao processo do Código Rocco que era baseado, no tocante à fase instrutória, na confusão entre juiz e acusação e na relação diádica inquisidor/inquirido. No modelo italiano, a processualística penal é dividida em duas fases, dentre elas a fase preliminar entendida e concebida como as investigações encetadas pelo Ministério Público e pela polícia judiciária necessárias ao exercício da pretensão punitiva e a fase da ação penal propriamente dita.

Nesse aspecto, Serrano destaca que uma das principais mudanças e inovações trazidas na Itália foi a supressão da figura do juiz instrutor e a sua devida alteração pelo juiz de investigações preliminares, o qual não realiza atos instrutórios e sim prima pela legalidade da investigação.

Isso porque o Ministério Público, figura que delimita os contornos da investigação, necessita de um órgão que intervenha nos limites postulados, de forma que o juiz de investigações preliminares, também tratado como juiz garante, apresenta, como função precípua, o controle da adoção e realização das medidas restritivas de direito, a exemplo das cautelares e interceptações telefônicas; controle da duração da investigação preliminar e a função de garantir que seja formada a prova antecipada.

Para além disso, o juiz de garantias italiano também é responsável por fazer a análise do pedido de arquivamento encaminhado pelo Ministério Pública. Feita a análise do mérito da conduta investigada, o juiz pode ou não decretar o seu arquivamento, assim como também pode determinar que se continue a investigação e, ainda, determinar que o promotor ajuíze sua acusação. Obviamente que há de se fazer uma crítica em relação a isso, haja vista que, como leciona Andrade (2011, p. 49), o juiz claramente se afasta da posição de garante para atuar como juiz instrutor e pretende ser mais acusador do que o próprio Ministério Público. Desse modo, se afasta da ideia original de se ter um sistema acusatório para se ter um indício de sistema inquisitório, em que há a confusão de acusar e julgar.

Registre-se que, de forma semelhante ao juiz das garantias brasileiro, o juiz das investigações preliminares na Itália possui como regra básica é a de que o juiz que atua na fase de investigação está terminantemente proibido de atuar na fase processual. Além do mais, como explica Lopes Júnior (2001, p. 224), alega-se que a pessoa do juiz que atua na investigação preliminar, mesmo que tenha somente decretado a prisão cautelar, está prevento[7] ou seja, sua imparcialidade está comprometida e, por isso, não pode julgar.

Conclui-se, assim, que o sistema de juiz das garantias brasileiro tem clara inspiração no juiz das investigações preliminares, em que se encontra a efetiva implementação do sistema acusatório, ainda com algumas ressalvas.

1.4.3. Chile

Antes de introduzir a discussão acerca de como é o juiz das garantias no Chile, é necessário rememorar história desse país. Assim como vários países da América Latina, o Chile vivenciou de perto uma ditadura militar através de um golpe de estado feito pelo general Augusto Pinochet, que teve como consequência a deposição e morte do então presidente eleito Salvador Allende, em 11 de setembro de 1973, de forma que a ditadura chilena se estendeu até a década de 90.

O Chile, assim como diversos países, passou por profundas transformações no âmbito processual penal. Pode-se referir, nesse mesmo viés, as reformas que aconteceram nos códigos processuais penais de países como Colômbia, Uruguai, Guatemala, Costa Rica, El Salvador, Venezuela, Paraguai, Bolívia, Honduras e das províncias argentinas (GRINOVER, 1999, p. 708-709).

De todas essas reformas, uma das consideradas mais recentes, que é a do Chile, foi responsável por uma das mudanças mais profundas no seu código, que entrou em vigor a partir dos anos 2000, criando um até então inexistente Ministério Público no país. Conforme destaca Maya (2017, p. 283), é de se evidenciar o papel democrático e ativo com os direitos fundamentais dos cidadãos com a entrada em vigor do novo código de processo penal, que tem reconhecimento internacional e é considerado hoje um exemplo de modelo de privilégio ao sistema acusatório.

Segundo Gimenes (2019), na reforma introduzida pelo Chile passou-se a adotar a nova legislação apenas aos processos que nasciam sobre a sua vigência, sem alcançar os que já estavam tramitando. No tocante à adaptação da estrutura judiciária, esta ocorreu de maneira diferente no que foi posto no Brasil, começando a partir do interior, das Comarcas de entrância inicial, até alcançar, já adaptada e com todos os ajustes prontos, as Capitais do país (MORAES, 2010, p. 23).

É notório que, para seguir o modelo garantista, foi necessário uma mudança profunda na estrutura organizacional que teve o apoio financeiro dos poderes estatais, mas também ouve apoio da própria estrutura do Judiciário em alterar integralmente o modelo existente, diante da necessidade da conformidade com a demanda constitucional e garantista que passou a conviver no país.

Para Gimenes, torna-se importante observar que a figura do juiz das garantias se tornou fundamental e um instituto chave no processo penal chileno, haja vista que de fato efetiva o princípio que é norteador desse instituto, isto é, o princípio da imparcialidade, uma vez que traz a devida separação entre as funções de julgar e acusar, bem como a divisão das fases processuais, em administrativa e judicial, não confundindo suas provas. Além do mais, tal figura apresenta um elemento estruturante de um modelo oral, que tem muito mais sentido e traz razão a ideia do sistema acusatório e a devida agilidade processual, bem como à efetivação das garantias dos direitos fundamentais, a começar de uma maior facilitação do cumprimento do devido processo legal na esfera do processo penal (MAYA, 2017, p. 285).

Esse elemento da oralidade, conclui-se portanto, em verdadeiro avanço, pois traz a citada agilidade no processo e sabemos que o juiz das garantias não existe só para receber petições, sejam elas da acusação ou da defesa, mas sim se dedica à realização de audiências, estas realizadas de maneira oral e que servem para delimitar os caminhos que a investigação tomará, a qual há a tomada de depoimentos que formam a convicção do juízo para eventual admissibilidade da acusação e para o próprio ato de oferta da acusação por parte do Ministério Público.

O funcionamento é da seguinte forma: o juízo feito pelo juiz das garantias serve apenas de suporte para o juízo de admissibilidade, por isso a presença da oralidade que traz maior desenvoltura para a caminhada do processo penal. Feito o juízo de admissibilidade da acusação e início ou não da fase oral, a qual todas as provas serão reproduzidas, sob a influência do contraditório e da ampla defesa, princípios estes que norteiam o processo e servem de base para o julgamento do mérito da causa.

Trata-se esse modelo então de uma verdadeira e real tratamento de prioridade pelo princípio acusatório, garantindo a imparcialidade, o contraditório e a publicidade. (FERRAJOLI, 2006, p. 563). O elemento da oralidade se demonstra muito mais do que mera forma processual, até mesmo porque, conforme as palavras de Aury Lopes Júnior  (2006,  p.  32), a forma no processo penal não se trata de mera formalidade, mas sim de garantia aos direitos fundamentais do acusado.

É inegável que a figura do juiz das garantias representa enorme e evidente avanço civilizatório no processo penal mundo afora. Isso não restam dúvidas, haja vista o papel que o juiz das garantias tem de garantir a imparcialidade do juiz que atuará no processo, pois este não se contaminará com o que foi produzido na fase preliminar. Esse princípio, além de outros, são basilares para compreensão do instituto. É de extrema valia para que o investigado possa ter um devido processo legal e as garantias e direitos fundamentais inerentes garantidos ao cidadão.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LIMA, Walter Alves. A figura do juiz das garantias no contexto internacional e nacional. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 27, n. 6775, 18 jan. 2022. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/95989. Acesso em: 29 abr. 2024.

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