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O mercado tupiniquim de eventos e a MP 948/2020

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Critica-se a delegação do encargo macroeconômico às pequenas e médias empresas do setor de eventos pelo Governo Federal. Atécnicos, Presidente e legislador sacrificam a sobrevida das PME e do mercado de eventos como um todo.

Resumo. O presente ensaio tem por objetivo lançar um olhar investigativo, e não superficial, à proposta de redação definitiva da Medida Provisória número 948/2020 aprovada pela Câmara dos Deputados em 30/07/2020 e encaminhada para tramitação no Senado Federal. Objetiva-se uma análise de política econômica e de direito financeiro, vez que os contratos comutativos de prestação de serviços do mercado de eventos parecerem ter sido transformados em contratos aleatórios de caráter essencialmente financeiro.

Palavras-chave: MP 948/2020; mercado de Eventos; voucher; título de crédito. 


Essência arlequinal

Dizer uma expressão arlequinal foi, por vezes, positivo. O modernismo paulistano na literatura é um exemplo disso: a justaposição de elementos aparentemente dissociados e contraditórios gerava uma experiência única e, indiscutivelmente, positiva.

O título do presente artigo, no entanto, simboliza o caráter arlequinal conferido por falta de perícia. O mercado de eventos, pouco visto como mercado ou indústria, se junta a uma apressada política macroeconômica travestida de regra benéfica aos fornecedores; aquela sacrifica as pequenas e médias empresas, impondo-lhes um risco financeiro não suportável, em prol de uma inadmissibilidade de fluxo inverso de capital (sair o dinheiro da empresa e retornar para o consumidor).

Por desígnio divino ou coincidência irônica do destino, o presente artigo é publicado no Dia do Sacrifício, data islâmica. Eid Mubarak!

Bem-vindo, fique à vontade. Pode até fazer as regras.

 A pandemia do novo coronavírus no Brasil revelou uma fissura antiga no mercado de eventos: apesar de sua elevada participação econômica em abrangência macro, no turismo, nos trabalhos intermitentes e na geração e distribuição de renda, os legisladores, de forma contumaz, insistem em negligenciar legislar sobre o mercado de eventos.

Não se sabe, pasme, o que é o mercado de eventos e seria inócuo procurar sua definição em nossos códigos e leis esparsas. A loja de vestido de noiva está inclusa? O eletricista especializado em infraestrutura está dentro? Não se sabe. Como esmola, a Lei Federal 11.771/2008 dispõe sobre organizadoras e produtoras de eventos. Todo o resto – digo, os trabalhadores especializados, as empresas de outros segmentos do mercado – ficam à deriva e os advogados inclinados ao setor devem tão somente aplicar a analogia.

A MP 948/2020, sendo a Medida Provisória, no geral, sucessora da aberração ditatorial do decreto-lei dos anos de chumbo, dispõe sobre uma verdadeira política econômica cujo objeto maior e final é não tirar de circulação o dinheiro contraprestação nos contratos afetos aos mercados cultural, de turismo e de eventos. É uma norma referente à manutenção de uma economia lato senso cuja ruína é muito provável.

Ao arrepio do Código Civil, então se transmuta a relação jurídica contratual em potestativa: (i) quando da MP 948/2020, a questão era como manter os eventos com um reajuste pouco claro e uma sazonalidade jogada e sem conceito delineado, (ii) não bastasse o desafio do fornecedor em cobrar o reajuste no patamar legal e manter o evento em suas configurações, a proposta de redação definitiva aprovada na Câmara sob relatoria do Dep. Felipe Carreras, praticamente veda as hipóteses de cancelamento e, sem sensatez nenhuma, obriga a não cobrar multa e taxas de qualquer natureza.

Na prática, o fornecedor está atado a uma relação contratual que se comunica, inclusive, aos herdeiros em caso de falecimento da parte contratante, financeira. Entenda: não se pode dizer o objeto ser mais o evento, mas sim, o crédito (os populares vouchers europeus) e a possibilidade de um evento de configuração incerta futuro. É quase um contrato de consórcio ou seguro – que, também, lembremos estar empacado no Congresso o Projeto de Lei eminente do colega Dr. Ernesto Tzirulnik.

A falta de técnica do governo e dos legisladores espanta. Tenta-se fazer um sacrifício impossível juridicamente das relações contratuais privadas para salvar a economia. E, no fim do dia, tudo é um faroeste e não se tem nem um nem outro.

Se couber uma dica aos fornecedores do mercado de eventos: planejem-se financeiramente e entendam o dever de compor uma reserva financeira, análoga a de um debênture, para cumprir seus contratos recém financeirizados.

Dois regimes para um mercado cindido    

 O legislador, talvez por falta de técnica ou tato com o mercado, investiu no escopo geral da redação à vedação de taxas e multa, porém, na segunda parte, nomeadamente no art. 4º, §1º, permite o reajuste pelo IPCA-E para os profissionais cujos contratos – na leitura do autor – objetam direito autoral artístico ou de propriedade intelectual.

O DJ, o decorador, a banda, dentre outros, fazem parte de um seleto grupo que continua contemplado pelo Código Civil.

Emissão de títulos de crédito (voucher) em favor do consumidor

 A emissão de voucher é, aparentemente, simples, porque, vulgarmente, consiste na mera declaração de existência de crédito líquido (determinado) e não liquidável, pois já foi liquidado.

Juridicamente, porém, não é simples. O fornecedor do mercado de eventos, ao emitir um voucher, precisa garantir, financeiramente, a existência daquele montante sem depreciação (mantendo o mesmo valor) durante 18 meses. Implica, necessariamente, (i) na constituição de um fundo no valor total das emissões e aplicado em CDB renda fixa, prevenindo, assim, impactos financeiros de ordem macro, (ii) na emissão de títulos cujo risco de não existência e de não execução do serviço contratado é transportado para apólice securitária de garantia, ou, para empresas de maior porte, (iii) na emissão de debêntures privados com banco garantidor e, se não bastante, com cobertura residual securitária.

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A problemática reside na transmutação de um contrato comutativo líquido de prestação de serviço para uma avença financeira com álea. Não é possível, porém, a mudança da natureza do contrato conforme requerido pelo legislador: a álea (risco) deve ser segurado por condutas financeiras ou de seguro.

O que parece uma vantagem fácil para o fornecedor, na verdade, é um sacrifício das pequenas e médias empresas em prol da política macroeconômica protecionista malfeita de retenção de capital pelo terceiro setor.

Em suma, os fornecedores devem se preparar para uma atuação essencialmente financeira: se antes forneciam produtos e serviços para o mercado de eventos, agora emitem crédito com vigência de 18 meses. É um desafio e tanto para o mercado. O Estado outorga sua política econômica aos renegados de incentivo e apoio. Triste.

Essa é a análise preliminar e, também, uma resposta pública a todos os clientes e colegas que procuraram informação.

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Sobre o autor
Arthur Dartagnan Chaves dos Santos

Coordenador legal claims, conformidade e operações. Pós-graduando em Finanças e Controladoria pela USP. Em extensão em questões urbanas em Harvard. Pesquisador em análise do discurso (UFF, Linguisticscience).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SANTOS, Arthur Dartagnan Chaves. O mercado tupiniquim de eventos e a MP 948/2020. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6240, 1 ago. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/84375. Acesso em: 30 abr. 2024.

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