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Um caso em que a ADPF não é remédio adequado

17/12/2015 às 08:22
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Estudam-se as peculiaridades da ADPF protagonizada pela Confederação Nacional dos Trabalhadores no Comércio (CNTC) que questiona o não pagamento de participação de lucros e resultados aos trabalhadores da Ceagesp.

A Confederação Nacional dos Trabalhadores no Comércio (CNTC) entrou com a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF 376), no Supremo Tribunal Federal (STF), questionando o não pagamento de participação de lucros e resultados (PLR) aos trabalhadores da Companhia de Entrepostos de Armazéns Gerais e Abastecimento de Alimentos do Estado de São Paulo (Ceagesp). Para a entidade, a situação viola o artigo 7º, inciso XI, da Constituição Federal.

A CNTC argumenta que, embora a Ceagesp tenha obtido lucro atípico, em 2013, de R$ 58 milhões, a empresa pública não repassou qualquer valor aos funcionários. O histórico narrado na petição inicial indica que a Ceagesp chegou a iniciar as tratativas com o sindicato representativo dos trabalhadores, mas que o processo não foi concluído.

A ação aponta que há ato omissivo e comissivo do Poder Público devido à falta de regulamentação da Lei 10.101/2000 sobre a obrigatoriedade de pagamento da PLR. A entidade alega que a omissão legislativa, somada ao condicionamento de diversas formas para o exercício do direito, são usados para impedir a plena aplicação do texto constitucional. “A participação nos lucros ou resultados não é só um direito, é uma garantia constitucional acima de todas as demais normas jurídicas”, aponta.

Além da Lei 10.101/2000, a CNTC questiona diversos documentos da Ceagesp que resultaram na negativa de pagamento da PLR, assim como outras normas infralegais que podem impedir o exercício do direito requerido, como o artigo 1º, inciso V, do Decreto 3735/2001; a Portaria DEST/SE/MP 27/2012 e a Resolução CEE 10/1995.

A entidade pede que o STF julgue a ação procedente para reconhecer o direito dos empregados ao recebimento do pagamento de PLR referente ao exercício de 2013.

Com o devido respeito, o pleito não deve ser objeto de conhecimento por parte do Supremo Tribunal Federal.

A matéria, que pode envolver discussão de existência ou não de direito expectativo sujeito a implemento de condição ou ainda de um direito adquirido, deve ser objeto, em instância própria, uma vez que se trata de um processo que envolve partes, causa petendi e pedido.

Não se trata de um processo objetivo, em que não se discute a existência de partes legitimadas e que deve ser norteada pelas regras do processo civil comum.

De outra parte, cabe lembrar que a arguição de preceito fundamental é remédio constitucional subsidiário que só deve ser ajuizado à falta de remédio inserido no direito processual comum. É instrumento próprio do processo constitucional na defesa de preceitos fundamentais.

Pode-se entender que a arguição de descumprimento de preceito fundamental brasileira, tal como posta no texto constitucional, tem raízes na Verfassungsbeschwerd, do direito alemão, que funciona como meio de queixa jurisdicional perante o Bundesverfassungericht, almejando a tutela de direitos fundamentais e de certas situações subjetivas lesadas por um ato da autoridade pública.

A discussão que trago à colação diz respeito ao que o artigo 1º da Lei 9882/89 chama de ato do poder público.

Diz Alexandre de Moraes [1] que deve-se ver os fundamentos e objetivos fundamentais da República de forma a consagrar maior efetividade às previsões constitucionais.

 Na linha de Klaus Schlaich [2], Alexandre de Moraes observa que devem ser admitidas arguições de descumprimento de preceitos fundamentais contra atos abusivos do Executivo, Legislativo e Judiciário, desde que esgotadas as vias judiciais ordinárias, em face de seu caráter subsidiário.

Em síntese, ainda, André Ramos Tavares[3] entende que esse controle abarcaria a fiscalização e possível correção do ato normativo ou do comportamento tido como inconstititucional, inclusive o não normativo, mas oriundo do Estado, seja o Poder Público, como tal, como mais longe, como atuando como particular, quando se despe de suas prerrogativas, equiparando-se a uma entidade privada.

Não há prazo, no Brasil, de ordem decadencial, para o ajuizamento de tal medida de controle constitucional, ao contrário da Alemanha, onde deve ser ajuizada em um mês da violação dos direitos fundamentais. Tal prazo para ajuizar o recurso próprio é de 6 (seis) meses a contar da prática, na Áustria.

O Ministro Gilmar Mendes[4] dá exemplos de hipóteses de objeto e de parâmetros de controle:

a) direito pré-constitucional;

b)  lei pré-constitucional e alteração de regra constitucional de competência legislativa (incompetência legislativa superveniente)[5]

c) O controle direto da constitucionalidade do direito municipal em face da Constituição Federal;

d) Pedido de declaração de constitucionalidade (ação declaratória) do direito estadual ou municipal e arguição de descumprimento;

e) A lesão a preceito decorrente de mera interpretação judicial;

f) Contrariedade à Constituição decorrente de decisão judicial sem base legal (ou fundada em falsa base legal);

g) Omissão legislativa e controle da constitucionalidade no processo de controle abstrato de normas e na arguição de descumprimento de preceito fundamental[6];

h) Norma revogada[7];

i)  Medida Provisória rejeitada e relações jurídicas constituídas durante a sua vigência[8];

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j)  O controle do ato regulamentar.[9] 

Interessa-nos, sobremaneira, a lesão a preceito decorrente de mera interpretação judicial.

Aqui, o ato judicial de interpretação direta de um preceito fundamental poderá conter uma violação de norma constitucional. Nessa hipótese caberá a propositura de arguição de descumprimento de preceito fundamental para afastar a lesão a preceito fundamental resultante de ato judicial do Poder Público. Tal remédio, de lege ferenda, poderia ser ajuizado a par de eventual recurso extraordinário, questionando-se aí a subsidiariedade da medida a tomar.

No caso da contrariedade à Constituição decorrente de decisão judicial sem base legal (ou fundada em falsa base legal), trago, outrossim, a lição do Ministro  Gilmar Ferreira Mendes[10], quando diz que se se admite, como expressamente estabelecido na Constituição, que os direitos fundamentais vinculam todos os Poderes e que a decisão judicial deve observar a Constituição e a lei, considera-se que a decisão judicial desprovida de base legal afronta algum direito individual específico, pelo menos na vertente do princípio da legalidade.

Tal decisão haverá de ser insustentável, à luz do sistema jurídico vigente, afrontando direitos e garantias constitucionais.

Presta-se a arguição de descumprimento de preceito fundamental a atacar a interpretação arbitrária da norma legal.

Ainda, o Ministro Gilmar Ferreira Mendes[11], à luz do que disse Rüdiger Zuck[12],  alude que essa concepção foi estudada pela Corte Constitucional na Alemanha, levando-se à formulação de uma teoria sobre os graus ou sobre a intensidade da restrição imposta aos direitos fundamentais, que admite uma aferição de constitucionalidade tanto mais intensa quanto maior for o grau de intervenção no âmbito de proteção aos direitos fundamentais.

Será o caso de uma decisão judicial transitada em julgado, onde se desconsidere frontalmente, o estatuto constitucional do contribuinte, seja em agressão ao princípio da legalidade, da igualdade, da anualidade, não havendo possibilidade de ajuizamento de ação rescisória.

Aqui não haveria a necessidade de prequestionamento, requisito extrínseco quanto ao ajuizamento de eventual recurso extraordinário.

Tem-se pela leitura do artigo 10, § 3º, da Lei nº 9.882/99, que a decisão de mérito proferida na ADPF terá eficácia contra todos e efeito vinculante relativamente aos demais órgãos do Poder Público.

Registro que uma norma já declarada constitucional pelo Supremo Tribunal Federal, pode, posteriormente, até em sede de ADPF, ser questionada, observando-se o instituto da mutação constitucional. Isso se dá diante de mudanças das concepções jurídicas dominantes, dentro do que se tem como cláusula rebus sic stantibus.

A decisão em arguição de descumprimento de preceito fundamental é dotada de eficácia contra todos.

Realmente o Poder Judiciário não pode se omitir quando os órgãos competentes comprometerem a eficácia dos direitos fundamentais individuais e coletivos.

Há, por exemplo, uma situação de calamidade que fez com que as penitenciárias brasileiras se transformassem em “verdadeiros depósitos de pessoas”.

Não há que se falar em princípio da separação de poderes, uma vez que deve ser levado em conta o princípio da inafastabilidade da jurisdição, a teor do que se expressa no artigo 5º, XXXV, da Constituição.


Notas

[1] Comentários à Lei nº 9.882/99 – Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental, in Arguição de Descumprimento de preceito fundamental: análises à luz da Lei nº 9.882/99.

[2] Das Bundesverfassungsgericht: Stellung Verfahren, Entscheldlunggen, 1985.

[3] Tratado de Arguição de Preceito Fundamental, São Paulo, Ed. Saraiva, pág. 204.

[4] Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental, São Paulo, ed. Saraiva, 2009, 1ª edição, 2ª tiragem.

[5] A esse respeito Pontes de Miranda, Comentários ao Código de Processo Civil, Rio de Janeiro, Forense, 1975, vol. 6, pág. 66 e 67, para quem sempre que a Constituição dá a União a competência sobre certa matéria e havia legislação anterior, federal e local, em contradição, a Constituição abrogou ou derrogou a legislação federal ou local, em choque com a regra jurídica da competência. Disse ainda se havia legislação federal e estadual e a competência passou a ser, tão-só, do Estado-Membro, ou do Município, a legislação federal persiste, estadualizada ou municipalizada, respectivamente, até que o Estado-Membro ou o Município ab-rogue ou derrogue.

[6] Aqui se trata do problema da implementação de políticas púbicas, como se lê na ADPF – 45, relator Ministro Celso de Melo, DJ de 4 de maio de 2004.

[7] ADPF 33, Relator Ministro Gilmar Mendes, julgada em 7 de dezembro de 2005.

[8] ADPF 84 – AgRg, DJ de 7 de março de 2006.

[9] ADPF 87, Relator Ministro Gilmar Ferreira Mendes.

[10] Obra citada, pág. 73.

[11] Obra citada, pág. 75.

[12] Das Recht der Verfassungsbeshwerde, pág. 221.

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Sobre o autor
Rogério Tadeu Romano

Procurador Regional da República aposentado. Professor de Processo Penal e Direito Penal. Advogado.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ROMANO, Rogério Tadeu. Um caso em que a ADPF não é remédio adequado. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4551, 17 dez. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/45331. Acesso em: 1 mai. 2024.

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