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O pós positivismo e a supralegalidade dos tratados no âmbito do STF

16/12/2015 às 16:08
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Apresentam-se as influências do pós-positivismo nas decisões judiciais, especialmente no julgamento do RE 466.343, que precedeu a edição da Súmula Vinculante n. 25 pelo STF.

Ao final do século XIX, o positivismo jurídico consolidou-se como teoria jurídica que concebia o direito como produto exclusivo da autoridade e não da razão ou da natureza, retirando a aura metafísica que pairava sobre a prática jurídica influenciada pelos jusnaturalistas.

Neste contexto, a separação do direito e a moral era vista como virtuosa, vez que o objeto da teoria do direito era exclusivamente o direito positivo.

Kelsen, ilustre representante desta corrente de pensamento, afirmava que a teoria do direito é pura, e quer “única e exclusivamente conhecer o seu próprio objeto”, sem se importar com a “questão de saber como deve ser o direito”[1].

Todavia, nem o jusnaturalismo nem o positivismo jurídico foram capazes de solucionar a determinação do direito no caso concreto, nem o poder discricionário que envolve o julgador.

 Diante de tal cenário, surge o pós- positivismo com o intuito de garantir, à luz da concepção de juridicidade, a reconstrução do direito de acordo com o seu propósito fundamental, tornando-o melhor possível por meio de interpretações construtivas.

Essa nova corrente de pensamento busca harmonizar a relação entre direito e ética, valoriza os princípios e sua inserção nos diversos textos constitucionais para que haja o reconhecimento de sua normatividade pela ordem jurídica.

Tecidas breves considerações sobre as teorias contemporâneas do direito, é possível verificar quão grande é a influência do pós – positivismo nos processos judiciais atuais.

Com efeito, a título de exemplo, cabe trazer à baila o voto do Voto do Ministro Gilmar Mendes, no julgamento do RE 466.343 que precedeu a edição da Súmula Vinculante n. 25.

"Se não existem maiores controvérsias sobre a legitimidade constitucional da prisão civil do devedor de alimentos, assim não ocorre em relação à prisão do depositário infiel. As legislações mais avançadas em matérias de Direitos Humanos proíbem expressamente qualquer tipo de prisão civil decorrente do descumprimento de obrigações contratuais, excepcionando apenas o caso do alimentante inadimplente. O art. 7º (n.º 7) da Convenção Americana sobre Direitos Humanos 'Pacto de San José da Costa Rica, de 1969, dispõe desta forma: 'Ninguém deve ser detido por dívidas. Este princípio não limita os mandados de autoridade judiciária competente expedidos em virtude de inadimplemento de obrigação alimentar.' Com a adesão do Brasil a essa convenção, assim como ao Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, sem qualquer reserva, ambos no ano de 1992, iniciou-se um amplo debate sobre a possibilidade de revogação, por tais diplomas internacionais, da parte final do inciso LXVII do art. 5º da Constituição brasileira de 1988, especificamente, da expressão 'depositário infiel', e, por consequência, de toda a legislação infraconstitucional que nele possui fundamento direto ou indireto. (...) Portanto, diante do inequívoco caráter especial dos tratados internacionais que cuidam da proteção dos direitos humanos, não é difícil entender que a sua internalização no ordenamento jurídico, por meio do procedimento de ratificação previsto na Constituição, tem o condão de paralisar a eficácia jurídica de toda e qualquer disciplina normativa infraconstitucional com ela conflitante. Nesse sentido, é possível concluir que, diante da supremacia da Constituição sobre os atos normativos internacionais, a previsão constitucional da prisão civil do depositário infiel (...) deixou de ter aplicabilidade diante do efeito paralisante desses tratados em relação à legislação infraconstitucional que disciplina a matéria (...). Tendo em vista o caráter supralegal desses diplomas normativos internacionais, a legislação infraconstitucional posterior que com eles seja conflitante também tem sua eficácia paralisada. (...) Enfim, desde a adesão do Brasil, no ano de 1992, ao Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (art. 11) e à Convenção Americana sobre Direitos Humanos 'Pacto de San José da Costa Rica (art. 7º, 7), não há base legal par aplicação da parte final do art.5º, inciso LXVII, da Constituição, ou seja, para a prisão civil do depositário infiel." RE 466.343, Voto do Ministro Gilmar Mendes, Tribunal Pleno, julgamento em 3.12.2008, DJe de 5.6.2009.

Na oportunidade, ao afirmar que a prisão civil do depositário infiel não mais se coaduna com os valores supremos assegurados pelo Estado nacional e internacional, o Ministro Gilmar Mendes deixa clara a interferência do jusmoralismo defendido por Dworkin na aplicação do direito.

Não por outra razão, argumenta detalhadamente em sua decisão que a prisão civil do depositário infiel viola o Princípio Constitucional da Proporcionalidade, que veda medidas extremas de coerção ao devedor inadimplente.

Pelo exposto, vê-se que a adoção meramente descritiva do direito talvez não fosse capaz de solucionar as desavenças de interpretação inerentes à aplicação do direito. Não se deve olvidar que a conclusão do julgamento em comento é fruto da evolução da divergência de entendimentos anteriores, capazes de identificar os valores políticos-morais mais apreciados pela comunidade.

Porém, em contraponto, verifica-se que a não adoção da Teoria Pura do Direito de Kelsen pode acarretar decisões contraditórias sobre determinado tema, já que o conceito de moral não é um conceito objetivo único, podendo gerar certa insegurança jurídica.

Em outra perspectiva, também é possível verificar a influência dos valores e princípios constitucionais na adoção de diferentes critérios de hierarquia de normas a serem aplicadas.

No voto supracitado, vislumbra-se a criação de um novo método hierárquico entre normas de direito interno e internacional, visando a prevalência da proteção dos direitos humanos (hierarquia “supralegal” dos tratados de direitos humanos).

Assentou-se a posição de supralegalidade dos tratados internacionais de direitos humanos, o que implica a ineficácia da legislação infraconstitucional que lhes seja contrária. Em contrapartida, o dispositivo constitucional que contempla a possibilidade excepcional de prisão civil por descumprimento de obrigação contratual do depositário infiel, manteve-se íntegro (não revogado, mas sem aplicabilidade).

A manutenção desta regra (de aplicabilidade nula) na Constituição Federal demonstra-se anacrônica, já que conflita não só com o conteúdo desses tratados e convenções, mas também com o próprio princípio neles resguardado, não resistindo ao exame do princípio da proporcionalidade.

 Em outros termos, em que pese a Constituição permitir a atuação do legislador neste campo, em detrimento do direito protegido, os tratados internacionais (admitidos internamente na qualidade de norma supralegal) vedam essa possibilidade.

Entretanto, é necessário assinalar que seja qual for a teoria hermenêutica jurídica adotada, não há qualquer embasamento téorico-jurídico que possa legitimar que o controle de constitucionalidade inicie-se de norma inferior como ocorreu no julgado em comento.

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Vedar que o legislador regulamente norma constitucional representa um verdadeiro retrocesso ao controle de constitucionalidade, vez que se nega validade à própria Constituição.

Neste diapasão, a melhor solução para contornar as divergências subjacentes ao entendimento esposado no voto do Ministro Gilmar Mendes seria a alteração da previsão Constitucional autorizativa da prisão do depositário infiel, por meio de Emenda Constitucional, e não pela súmula vinculante 25[2], como ocorreu no caso em comento.

Dessa forma, seria possível proteger devidamente os direitos humanos sem relativizar a Supremacia da Constituição Federal vigente.

 Diante de exposto, temos que a utilização de princípios como fontes normativas do direito acolhida pelo pós-positivismo também deve ser ponderada pelo julgador, evitando-se abusos interpretativos e subjetividades, a fim de que não haja ativismos judiciais desarrazoados e enfraquecimento do texto constitucional, preservando-se a separação dos poderes e o fortalecimento das competências constitucionais.


REFERÊNCIAS:

BARROSO, Luís Roberto. Fundamentos Teóricos e Filosóficos do Novo Direito Constitucional Brasileiro (Pós-modernidade, Teoria Crítica e Pós-Positivismo). In A Nova Interpretação Constitucional: Ponderação, Direitos Fundamentais e Relações Privadas. Luís Roberto Barroso (organizador). 2ª Edição. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 27-28.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado, 1988.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Disponível em: <http://www.stf.jus.br>. Acesso em 03 nov. 2014

DWORKIN, Ronald. O Império do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2010, capítulos 6 e 7.

FERNANDES, B. G. A. Teoria da Interpretação Judicial para além do interpretativismo e do não-interpretativismo. Disponível em <http://www.publicadireito.com.br/artigos/?cod=f3173935ed8ac4bf>. Acesso em 07/11/2014.

KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Trad. João Baptista Machado. São Paulo: Martins Fontes, 1998.

POSNER, Richard. Direito, pragmatismo e democracia. Rio de Janeiro: GEN, 2010, introdução e capítulo 1.


Notas

[1] Kelsen, Hans. Teoria Pura do Direito. Trad. João Baptista Machado. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 1.

[2] Súmula Vinculante 25: ilícita a prisão civil de depositário infiel, qualquer que seja a modalidade de depósito.

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Sobre o autor
Nayana Machado Freitas Rosa

Nayana Machado Freitas Rosa<br>Procuradora Federal, lotada na Procuradoria Federal de Minas Gerais. <br>Especialista em Direito Processual pela UNIDERP. <br>Pós-graduanda em Advocacia Pública pelo IDDE.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ROSA, Nayana Machado Freitas. O pós positivismo e a supralegalidade dos tratados no âmbito do STF. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4550, 16 dez. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/33767. Acesso em: 27 abr. 2024.

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