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Prisão civil por dívida: o polêmico fim de uma norma (in)justa

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O Brasil é signatário de dois importantes tratados de Direito Internacional que dispõem sobre direitos humanos. Ambos vedam expressamente a possibilidade de prisão como instrumento coercitivo de cumprimento de obrigação civil.

Em 1966, foi adotado pela Resolução n.º 2.200-A da Assembléia Geral das Nações Unidas o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos. O Brasil tornou-se signatário deste apenas em 1992, com o Decreto Presidencial n.º 592, do mesmo ano. O seu artigo 11 dispõe que "ninguém poderá ser preso apenas por não cumprir obrigação contratual".

O mais conhecido, porém, no meio jurídico pátrio (visto ser sistematicamente utilizado como suporte jurídico em quase todos os Habeas Corpus destinados a liberar depositários infiéis presos por dívida) é o Pacto de San José da Costa Rica, da Convenção Americana de Direitos Humanos de 1969, adotado, aprovado e incorporado ao nosso ordenamento jurídico pelo Brasil em 1992. Este dispõe em seu art. 7º que "ninguém será detido por dívidas: este princípio não limita os mandados de autoridade judiciária competente expedidos em virtude de inadimplemento de obrigação alimentar".

Tais dispositivos impunham que ninguém poderia ser privado de sua liberdade por dívidas, excetuados os devedores de prestação alimentícia – mesmo no caso do depositário infiel, legal ou judicial.

É bom lembrar que os tratados só produzem efeitos no ordenamento jurídico brasileiro quando celebrados pelo Presidente da República (art. 84 da CF) e posteriormente ratificados pelo Congresso, conforme dispõe o art. 49 do Texto Maior.

Desde o advento da Emenda Constitucional nº 45, de 2004, tais tratados, para adquirirem o status de Emenda Constitucional, também devem submeter-se a aprovação, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, ou seja, aprovados por maioria absoluta.

Não obstante, diferentemente da regra geral, alguns tratados internacionais não necessitam da ratificação do Congresso Nacional para produzir efeito. São os que versam sobre matéria referente a direitos e garantias fundamentais (direitos humanos). Isto ocorre por força do § 2º do art. 5º, que estende o rol dos direitos e garantias fundamentais previsto no art 5º, incluindo a estes os provenientes dos tratados internacionais. O § 1º do mesmo artigo prevê expressamente aplicação imediata a normas definidoras que versem sobre esta matéria.

Embora não fosse objeto de discussão a validade dos tratados internacionais no ordenamento jurídico pátrio, não era pacífico o posicionamento quanto ao status que essas normas adquiriam, se de norma constitucional ou se de legislaçao ordinária.

Entretanto, no último dia 03 de dezembro, o Supremo Tribunal Federal "inovou", criando uma nova hierarquia de leis, classificando os Tratados não elevados à categoria de Emendas Constitucionais, como Leis Supralegais, ou seja, estão abaixo das Emendas, mas acima das Leis Ordinárias, num patamar intermediário que as coloca automaticamente acima do Código Civil, que regulamentava tal norma.

Simplificando o entendimento, a prisão civil por dívida do depositário infiel está prevista no inciso LXVII do artigo 5º do Texto Constitucional. Entretanto, esta é uma norma de aplicabilidade contida, ou seja, para que possa ser aplicada deve existir uma lei infraconstitucional que a regulamente e lhe dê aplicabilidade. Esta incumbência era encargo do Código Civil.

Com a nova hierarquia de leis "criada" pelo STF, esta categoria supralegal ficou interposta entre a norma constitucional e a norma infraconstitucional, revogando-a.

Com essa decisão, todo depositário, seja ele legal ou judicial, não corre mais o risco de perder sua liberdade em caso de perecimento ou perda da coisa.

Fica agora ao encargo do Legislador a busca por um mecanismo tão eficiente de proteção ao credor e ao mesmo tempo de tão intensa coação ao devedor, pois tão límpido como a água, que com o perdimento deste instrumento coercitivo, as Instituições Financeiras dificultarão em muito a concessão de crédito a seus clientes, visto que estes agora ainda que se desfaçam dolosamente de bens adquiridos fiduciáriamente não mais perderão sua liberdade.

Cumpre ainda alertar os desavisados: ficou derrogada a norma que instituia a prisão civil por dívida. Os inadimplentes de pensão alimentar devem manter as "barbas de molho", pois em relação a estes o referido inciso em nada mudou.

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Sobre o autor
José Francisco Salomé Figueira

Especialista em Direito Tributário pela Universidade Estadual de Londrina e Advogado Associado do Escritório Igor Giraldi Faria – Advocacia Empresarial, Rondonópolis - MT

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FIGUEIRA, José Francisco Salomé. Prisão civil por dívida: o polêmico fim de uma norma (in)justa. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 13, n. 1989, 11 dez. 2008. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/12072. Acesso em: 4 mai. 2024.

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