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Os famigerados artigos de guerra

27/01/2024 às 14:27
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Os artigos de guerra importados do direito português e aplicados no Brasil propiciavam ao administrador meios para que fossem cumpridas todos os tipos de ordens, pois mitigavam o questionamento e impedia qualquer forma autônoma de interpretação, visto que as penas eram duríssimas.

Resumo: Os famigerados “Artigos de guerra” foram criados pelo Conde de Lippe para manter a ordem e a disciplina dadas às circunstâncias de formação e recrutamento das tropas Portuguesas. Os artigos 1º, 7º e 9º descreviam a forma como deviam ser obedecidas as ordens e deixavam claro que: “quando se referirem ao serviço”, mesmo que injustas, deviam ser obedecidas prontamente. As penas por recusar-se a obedecer as ordens “por palavras ou discursos” eram os trabalhos nas fortificações e, caso o militar se recusasse a obedecer valendo-se de armas ou ameaças, a pena era o arcabuzamento (morte por tiros de arcabuz). A Constituição de 1824 procurou definir as linhas gerais da estrutura militar oficial, obedecendo aos moldes coloniais que haviam estabelecido três linhas: A primeira, composta da tropa regular e paga; A segunda e a terceira compostas de milícias e ordenanças, auxiliares e gratuitas. O exército destinava-se a defender as fronteiras e nelas estacionar. Os excessos de poderes concentrados nas mãos de poucos acarretaram corrupção e desvios de recursos, que contribuíam para dificultar ainda mais o controle da disciplina e aviltavam a profissão militar, pois os Artigos de Guerra eram uma junção imperfeita de Regulamento Disciplinar e Código Penal Militar.

Palavras-chave: Disciplina. Guerra. Exército. Lippe. Histórico.

Sumário: Introdução. 1. Contexto histórico. 2. A estrutura militar oficial a partir de 1824. 3. Os Artigos de Guerra do Conde de Lippe. 4. Relatos históricos. 5. A Revolta do Batalhão de Mercenários de 1828. Conclusão. Referências.


INTRODUÇÃO

Os famigerados “Artigos de guerra” foram criados pelo Conde de Lippe para manter a ordem e a disciplina das tropas Portuguesas, dadas as circunstâncias de formação e recrutamento.

Após o ano de 1763, o Conde de Lippe ficou definitivamente encarregado de reorganizar e disciplinar o Exército Português.

Em virtude de seus serviços a Coroa Portuguesa D. José I, Rei de Portugal, elevou-o à dignidade de Príncipe de sangue, premiando-o com vários bens e títulos, inclusive o tratamento de Alteza.

A necessidade de manter a ordem e a disciplina nas lutas internas e externas que o Brasil enfrentou fez com que, durante muitos anos, o Código do Conde de Lippe vigorasse no Exército brasileiro, sendo, em alguns momentos da história, o grande responsável pelo início de algumas revoltas, devido ao seu rigor excessivo.


CONTEXTO HISTÓRICO

Para entendermos um pouco o modo como o exército brasileiro impunha a disciplina aos seus militares nos séculos XVIII e XIX recorremos aos ensinamentos de NELSON WERNECK SODRÉ, que esclarece o quanto às organizações militares podem refletir as condições das sociedades que as geravam.

Após a independência do Brasil, não era possível conservar a antiga organização, que refletia a dominação Lusa e se dividia basicamente em quatro classes, sendo que na época da Constituição de 1824 o País tinha em média quatro milhões de habitantes, dividindo-se em:

1. Os senhores de terras e de escravos, que eram a parcela mais importante das classes detentoras do poder;

2. Os senhores de terras e de servos exerciam a propriedade nas condições feudais, submetendo os trabalhadores às obrigações peculiares de um servo. Entre proprietários, parentes e aderentes, a classe senhorial, escravista ou feudal, representava, numa estimativa razoável, trezentas mil pessoas;

3. A camada média era gerada particularmente com a mineração. Era também constituída por todos aqueles que não eram senhores, mas também não eram escravos ou servos (pequenos comerciantes, pequenos proprietários de terras, funcionários, padres, militares (oficiais) e artesões de diversos ramos);

4. É entre os servos o os escravos (dentre seus elementos marginais), bem como entre as camadas médias da sociedade (constituindo-se das sobras urbanas) que o recrutamento militar vai dedicar suas atenções, salvo no que diz respeito à província de São Pedro do Rio Grande do Sul, onde todos eram soldados natos.

Os quadros da oficialidade surgiram da camada média da sociedade, que se realizava dessa maneira.

Os Oficiais, soldados e marinheiros eram permanentes, distinguindo-se apenas quanto à camada social onde eram recrutados, sendo que a presença dos mercenários contribuía significativamente para aviltar a profissão.

Em condições normais a classe dominante não necessitava do aparelho militar para impor sua dominação, havendo essa necessidade somente quando aconteceram as rebeliões provinciais devido às manifestações das lutas de classes destas.

A classe dominante, no tempo da autonomia, não se tornou dominante pela violência, pois não precisava desta para se manter.

A organização militar que o país vai conhecer, quando da autonomia, reflete as condições sociais e a dominação da classe senhorial, que estão presentes sob as aparências formais que a organização apresenta, imitando alguns modelos, dentre eles:

  • Ela imita modelos e padrões externos, mas essa não é a essência da organização militar;

  • Imita padrões disciplinares, mas obedece a outros, completamente diversos, que derivam da situação real e concreta da sociedade da época;

  • Imita padrões de combate, mas é forçada, em várias ocasiões, às condições que a realidade impõe e cuja aceitação é obrigatória, fugindo completamente aos regulamentos;

  • Imita tipos de formação, de paz e de combate, mas respeita apenas em certas medidas esses tipos, assumindo traços inequívocos de frouxidão entre nós.

A aliança externa dispensa os esforços no sentido da defesa militar do litoral, fazendo com que a perspectiva de um ataque por mar, vindo de um inimigo poderoso e distante, como tantas vezes acontecera no período colonial, seja remota, havendo grande tranqüilidade a esse respeito.

As forças navais, organizadas ao improviso das necessidades mais prementes, atendem ao inimigo interno, o inimigo de classe (segundo as classes dominantes), que surge por toda a parte nas rebeliões ditas provinciais, que se sucedem, que se agravam que se alastram e se prolongam.

É neste contexto que as classes dominantes são obrigadas a lançar mão de personagens estranhos ao país, aqueles almirantes ou comandantes de navios ingleses que passam a constituir uma espécie de almirantado brasileiro.


A ESTRUTURA MILITAR OFICIAL A PARTIR DE 1824

A Constituição de 1824 procurou definir as linhas gerais da estrutura militar oficial, obedecendo aos moldes coloniais que haviam estabelecido as três linhas:

A primeira, composta da tropa regular e paga;

A segunda e a terceira compostas de milícias e ordenanças simplesmente auxiliares e gratuitas. O exército destinava-se a defender as fronteiras e nelas estacionar;

As milícias incumbiam-se de manter a ordem pública nas comarcas, sendo eletivos e temporários os seus oficiais, a exceção dos majores e seus ajudantes.

As guardas policiais eram encarregadas de fornecer a segurança dos indivíduos, perseguindo e prendendo criminosos. Só em casos de rebelião ou invasão estrangeira poderia o governo desviar tais tropas de seu mister privativo, submetendo ao exame da Assembléia Geral. As deficiências dessa organização saltava aos olhos e estavam ligadas ao desejo de acomodar-se aos modelos coloniais.

Tobias Monteiro descreve que a criação de instituições administrativas profundamente centralizadoras colocavam a força militar quase fora do alcance da autoridade central, como se houvesse o propósito de cercear-lhe o poder. Tal intento levava-o ao excesso de formar um corpo de oficiais eletivos; instabilidade dos métodos de recrutamento, variável cada ano ao sabor das legislaturas e de suas inspirações políticas; a diversidade de composição e instrução da tropa, nociva à eficácia de operações militares de grande vulto.

O Decreto de 1º de dezembro de 1824 determinava a organização da tropa, repartindo-a em primeira (infantaria, cavalaria e artilharia) e segunda linhas (para operar nas comarcas, tendo fins mais políticos que militares).

Na estrutura regular só se poderia considerar, ainda assim com enormes dificuldades, a primeira linha, onde figuravam com destaque as tropas mercenárias cuja primeira unidade foi criada em 08/01/1823.

Outras foram organizadas depois, à medida que iam chegando da Europa os efetivos necessários, enviados por agenciadores, dentre os quais se destacam Schaeffer e Cotter, que prometiam futuro dourado aos que aceitassem vir para o Brasil, e cujo cumprimento sempre foi esquecido, fazendo com que a maioria admitisse vir como imigrante, seduzida por concessões de terras.

Samuel Guimarães Costa descreve quem eram esses mercenários:

“Refugos de tropas dissolvidas, nobres arruinados, aldeões simplórios formavam a leva que o Dr. Schaeffer enviava para servir no Exército Brasileiro.

A permanência dos mercenários nos corpos de tropa era um tanto arbitrária, sem prazo certo, de maneira que os reengajamentos se sucediam e a ocasião de obter terras e praticar a lavoura nunca chegava.

Além de muitos desses estrangeiros estranharem o clima, o serviço era pesado e os regulamentos extremamente rigorosos, sendo freqüentes e ignóbeis os castigos corporais”.


OS ARTIGOS DE GUERRA DO CONDE DE LIPPE

O entendimento do contexto histórico que vivia o Brasil dos séculos XVIII e XIX, bem como a formação da sociedade e do Exército, nos permitirá estudar todos os aspectos relativos a aplicação dos Códigos do Conde de Lippe no Brasil.

Os artigos 1º, 7º e 9º descreviam a forma como deviam ser obedecidas as ordens e deixavam claro que:

quando se referirem ao serviço”, mesmo que pareçam injustas, as ordens devem ser obedecidas prontamente, facultando ao militar, quando entender que lhe fizeram “injustiça”, “queixar-se” com moderação.

A obediência e respeito a todos os Oficiais (Art. 7º) é um elemento intrínseco na carreira militar, reforçada no Código apenas para que se buscasse a idéia de um exército uno, mesmo que na época houvesse Oficiais de diversas nacionalidades.

As penas por recusar-se a obedecer as ordens “por palavras ou discursos” eram os trabalhos nas fortificações e caso o militar se recusasse a obedecer valendo-se de armas ou ameaças a pena era o arcabuzamento ( morte por tiros de arcabuz ).

Sob o aspecto discricionário, observamos que o Código deixava uma larga possibilidade de atuação ao administrador, à medida que permitia que o militar se queixasse, mas não estabelecia qualquer atitude que o administrador teria que tomar em relação a essa reclamação.

Por outro lado, punia severamente quem se recusava a obedecer às ordens de seus superiores.

No que se referia a obediência, os Artigos de Guerra propiciavam ao administrador os meios para que fossem cumpridas todos os tipos de ordens, pois mitigavam o questionamento e impedia qualquer forma autônoma de interpretação, visto que as penas eram duríssimas se o superior entendesse que estava sendo desobedecido.

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Não sobrava ao militar qualquer margem para questionamento das ordens, mesmo que parecessem absurdas ou que pudessem trazer-lhe qualquer perigo de vida.

Acrescentamos a isso a previsão do Art. 16º, que punia com trabalho nas fortificações “falar mal do superior”, tornando ainda mais difícil qualquer questionamento, pois, caso o militar fosse discutir uma ordem com outra pessoa, o superior poderia entender como “fofoca” e o enquadraria no Regulamento.

Os artigos 2º, 3º, 4º, 5º e 14º referiam-se a situações de guerra e puniam severamente aqueles que:

  • Dessem falsa informação;

  • Desamparasse seu posto em combate;

  • Cometesse uma fraqueza perante o inimigo;

  • Cometesse atos que pudessem intimidar o moral da tropa;

  • Que desertassem.

Essas situações eram complexas para serem resolvidas por um Regulamento Disciplinar e foram novamente discutidas com a criação de um Código Penal Militar, visto que a maioria das penas era a morte e deixavam ao militar apenas a opção de morrer em combate, caso ele não fosse morto pelo primeiro Oficial que o ‘ouvisse”, durante um batalha, pronunciar frases como:

  • “o inimigo nos tem cercado”;

  • “quem puder escapar-se escape-se”;

  • “ou qualquer palavra semelhante”(art. 5º).

Nos artigos 6º e 10º estavam as previsões de respeito às sentinelas, onde estavam descritas penas de castigos rigorosos e arcabuzamento a quem desrespeitar um militar de serviço ou “causasse arruaça” próximo a uma guarda à noite.

A previsão do regulamento fazia com que, no caso concreto, o administrador aplicasse diretamente a pena, conforme o seu entendimento do ocorrido.

No artigo 8º havia a proibição de brigas entre os militares e no caso de uma luta onde um atacasse o outro a traição a pena seria o carrinho perpétuo (argolas de ferros que se adaptavam a perna do militar) ou a morte, conforme a “circunstância”.

Nesse caso, a lei deixava nas mãos do administrador uma sentença de vida e morte sobre o ato do subordinado.

Os Artigos 11º, 12º e 24º referiam-se a atos praticados por militares estando bêbados e aplicavam penas que iriam desde 50 pancadas com espada de prancha até o arcabuzamento (em tempo de guerra).

No artigo 24º novamente surgia o termo “conforme a circunstância” para a aplicação de pena dobrada ao caso concreto e deixa novamente ao juízo discricionário do administrador a aplicação de um castigo com a agravante da bebedeira.

O artigo 17º previa que o soldado devia contentar-se com o seu pagamento e seu uniforme, qualificando-o e castigando-o como amotinador caso viesse a reclamar de algum desses itens.

A própria lei descrevia castigo para quem reclamasse do salário e nada falava sobre um pagamento digno ou uniformes em condições de uso, o que deixava ao comando do administrador a possibilidade de utilizar-se desses recursos para cobrir gastos imediatos, propiciando constantes atrasos nos pagamentos e relatos de uniformes antigos sendo usados pela tropa.

Quanto às questões de furtos, extorsão, fazer passaporte falso ou usar mal sua habilidade, o código previa pena de prisão rigorosa e até a morte, conforme as circunstâncias (Artigos 18º e 22º). Mais uma vez um termo aberto “conforme as circunstâncias” possibilitava ao administrador decidir discricionariamente sobre a vida ou morte do subordinado.

O artigo 21º previa que o soldado só poderia contrair dívidas com autorização de seu oficial, mas deixava que o oficial decidisse discricionariamente sobre se devia ou não permitir a dívida, nada falando sobre a possibilidade do Oficial ser fiador do subordinado.

O artigo 25º impedia que qualquer soldado empreste dinheiro a outro soldado ou a superior, deixando poucas possibilidades de um soldado conseguir recursos, contribuindo para o aviltamento da profissão de militar.

O artigo 27º concedia ao coronel do militar o poder discricionário de permitir ou não o seu casamento.

Por fim, o Artigo 29º ressaltava a necessidade de execução exata das ordens que fossem prescritas aos militares e orientava que estes deveriam regular seus costumes pelas regras da virtude, da candura e da probidade, temendo a Deus e amando ao seu Rei.

A regulação dos costumes dos militares seguia regras totalmente abertas, pois os costumes eram analisados discricionariamente, conforme o entendimento do Oficial Superior do local, que poderia determinar uma mudança no comportamento de seus subordinados, sob pena de desobediência.


RELATOS HISTÓRICOS

Os excessos de poderes concentrados nas mãos de poucos acarretaram corrupção e desvios de recursos, que contribuíam para dificultar ainda mais o controle da disciplina:

Os Oficiais, em melhor situação do que as praças, prejudicavam estas, quanto possível, em proveito próprio.

Os de patentes mais elevadas, como o General Lecor, adiantavam aos seus subordinados, com descontos de alta porcentagem, a título de juros, algum dinheiro de que eles necessitassem.

A falta de recursos, disponibilizado pelo Estado, gerava relatos ainda piores:

1. O estado da tropa era lastimável, os homens estavam quase famintos, os uniformes em farrapos, o armamento estragado, contribuindo para tornar sem efeito os planos formulados pelo General;

Siedler confirma:

“O nosso exército, meio enfaimado, achava-se nas mais tristes condições e os soldados, quase em declarada revolta, reclamavam cada dia mais alto as roupas e os soldos devidos; as deserções, sobretudo nas milícias, cresciam tanto que atingiam às vezes 200 por mês; nem as ameaças das mais severas punições conseguiam remediar esse mal”.

Seweloh fornece o seguinte quadro:

O Exército estava cheio de fome e fadiga, deviam-lhe o soldo de 6 a 9 meses, só alguns Oficiais tinham sido pagos até aquele dia, por amizade e favor.

O Tenente-Coronel Elisário escreve ao General Rosado:

”desde muito tinham desaparecido a religião e a justiça e com elas sumiram a disciplina e a ordem”.

Em 1844, aproximando-se do fim a campanha contra os farroupilhas, Caxias escrevia ao Ministro da Fazenda:

Achando-se o Exército em campanha com uma dívida de mais de 6 meses de seus vencimentos, em conseqüência de não ter podido a tesouraria da província alcançar, na praça de Porto Alegre, quantias suficientes para sacar, resolvi mandar o primeiro escriturário da caixa militar sacar, contra o Tesouro Nacional, a quantia necessária para fazer face ao menos à metade dessa dívida, ordenando-lhe, ao mesmo tempo, que fizesse o competente aviso ao Tesouro, declarando os valores das letras que tiver de passar;

Saiba Vossa Excelência, que os corpos de cavalaria, aqui e na fronteira do Rio Grande, estão sem cavalos para o serviço e há corpos que nenhum tem! Do meu, que possuem alguns cavalos, a metade montará mal.

Concluo ratificando o meu pedido, certo de que alcançarei da bondade de Vossa Excelência, a quem não é minha intenção tomar o tempo precioso. Deus conserve os dias de Vossa Excelência, como à Pátria é mister, e deseja o que V. Excia.

Manuel Luís Osório.

Piraí, 29 de setembro de 1846.

O recrutamento demonstrava a qualificação dos soldados e o aviltamento da profissão de militar.


AS REVOLTAS MILITARES E OS CÓDIGOS DE GUERRA

A dureza do regulamento era terreno propicio para o surgimento de revoltas:

1. Ser soldado era castigo, motivo de humilhação, destino de elementos incorrigíveis, de malfeitores mesmos. Juntava-se a isso o velho costume colonial de isentar as classes abastadas e mesmo as classes médias do serviço militar. Para preencher os quadros do Exército era preciso caçar nas ruas os desocupados, alistar a força os pretos libertos, aceitar pretos escravos cujos donos quisessem dá-los, recrutar os vagabundos que perturbavam o sono da burguesia com as suas noitadas de álcool, enfim, os parias, os egressos daquela sociedade cheia de preconceitos contra os militares.

2. O Exército era obrigado a caçar os elementos marginalizados da sociedade para constituir a tropa, enquanto recrutava nas camadas médias a oficialidade. Para manter a disciplina da tropa tornava-se necessário o tratamento pela violência. O castigo físico era outra tradição;

3. As punições de prisão e multa foram agravadas pelos castigos corporais erigidos em normas. Os mercenários alemães deixariam numerosos depoimentos a propósito da rudeza dos castigos disciplinares: “oitocentas pancadas eram impiedosamente aplicadas a todo aquele que se afastasse por mais de 24 horas do seu quartel-castigo a que poucos sobreviviam”.A portaria de 3 de setembro de 1825 mandou punir com 60 chibatadas a primeira deserção simples e com 100 a segunda.

Por volta do ano de 1873 um jornal chamado A República examinou a degradação do soldado da seguinte forma:

“O castigo corporal, ainda subsistente, é que é de per si só o testemunho vivo da degradação da classe; a manutenção do Código draconiano do Conde de Lippe, com base na legislação militar portuguesa e brasileira, código bárbaro e monstruoso que no seu próprio e excessivo rigor encontra o primeiro obstáculo à sua fiel e integra execução; a infidelidade na execução dos contratos de engajamento, infidelidade levada pelo governo imperial até o crime, sendo a má-fé do governo a mais ativa e poderosa força de desmoralização do Exército; os constantes abusos do governo com relação à liberdade pessoal dos militares e a ineficácia, quando não a compressão, dos tribunais aonde essa liberdade devia encontrar o mais forte escudo – as injustiças constantes do governo imperial, na apreciação dos serviços militares, ora graduando a covardia e a inépcia, ora preterindo a capacidade e o valor.

Finalmente, a mediocridade do salário compensador de tanto sacrifício, salário que nem corresponde às necessidades elementares do cidadão que se fez soldado nem lhe permite amparar da miséria, nem a si, nem aos seus”.

Em 27 de fevereiro de 1873, a policia imperial depredou a redação do jornal que publicou essa matéria.

A Revolta do Batalhão de Mercenários do Rio de Janeiro de 1828

O estopim da revolta dos mercenários foi o castigo imposto pelo Maj. Francisco Pedro Drago, fiscal do batalhão(sub cmt), a um soldado que trabalhava no Paço Imperial no valor de 100 pranchadas de espada.

O soldado se recusou a ser castigado!

O major mandou amarrá-lo e aplicar agora 200 pranchadas.

Foi o estopim de uma revolta que assim é sintetizada:

Um grupo foi até o Imperador em São Cristóvão queixar-se e pedir a demissão do Maj. Drago, sem resultado.

O conde do Rio Pardo, Comandante das Armas tentou sem sucesso acalmar os soldados.

E estes foram até a casa do major, na atual marechal Floriano e a depredaram e a incendiaram.

Nos dias 10 e 11 de setembro de 1828, os mercenários praticaram toda a ordem de tropelias e tomaram conta do atual Palácio Duque de Caxias de onde o conde do Rio Pardo conseguiu escapar pulando uma janela.

Munidos de pedras, as atiravam em que passasse defronte o quartel.

Arrombaram o Almoxarifado da Polícia e armaram-se e se entrincheiraram no quadro do atual Palácio Duque de Caxias.

Dia 12 setembro de 1828, o Conde do Rio Pardo reuniu os meios possíveis e, com o apoio inclusive de Artilharia, investiu à baioneta os revoltosos.

Rendidos ,eis as baixas: 12 mercenários mortos e 50 feridos.

O principal cabeça da revolta,o soldado Steinhousen foi julgado e fuzilado no Campo da Aclamação, próximo do atual Quartel General no Palácio Duque de Caxias.

Esse fato provocaria, após a Abdicação, medidas que obrigaram a dissolução deste corpos.


CONCLUSÃO

A opressão de um regulamento muito duro dificilmente perdura com o tempo.

As mudanças políticas e sociais, aliadas a falta de recursos, podem contribuir diretamente para o aviltamento da profissão militar e faziam com que as necessidades financeiras dos mais graduados se tornassem terrenos férteis para a proliferação da corrupção, da violência e da injustiça.

Salientamos que os Artigos de Guerra eram uma junção de Regulamento Disciplinar e Código Penal Militar e foram aplicados por muitos anos no Brasil.

Nosso trabalho foi apresentar ao leitor os aspectos de uma legislação que retratava o contexto histórico do meio militar dos séculos XVIII e XIX.

Cabe ao leitor usar esse conhecimento para analisar o uso de regras muito rigorosas no século XXI, considerando os exemplos e resultados que citamos.


REFERÊNCIAS

MEIRELLES,Hely Lopes, Direito Administrativo Brasileiro, 20 ed., atualizada por Eurico de Andrade Azevedo , São Paulo, Malheiros, 1995.

MELLO,Celso Antonio Bandeira de.Discricionariedade e Controle Jurisdicional.2a Ed.São Paulo.Malheiros Editores, 1993.

SODRÉ,Nelson Werneck.História militar do Brasil.3a Ed.Rio de Janeiro.Editora Civilização brasileira.1979;

MONTEIRO,Tobias.História do Império.O Primeiro Reinado. Rio de Janeiro 1939, p. 22;

DA COSTA,Samuel Guimarães.Formação democrática do Exército brasileiro. (pequena tentativa de interpretação social).Rio de Janeiro, 1957,p.124;

___________dicionário histórico de Portugal,disponível em: https://www.arqnet.pt/dicionario/schlippe.html. Acesso em 24/05/2007;

____________A revolta dos Batalhões de Mercenários ocorrida no atual palácio Duque de Caxias, Rio de Janeiro, 9 a 12 set de 1828”. Disponível em: https://www.resenet.com.br/ahimtb/brasillutint.htm#11, acesso em 09.07.07.

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Sobre o autor
João Carlos da Silva Almeida

Advogado – OAB/SP – 487.078. Mestre em Filosofia pela Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP). Formou-se em Direito pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco da Universidade de São Paulo (Turma 177), Graduou-se em Filosofia na Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), Pós-graduado em Direito da Seguridade Social pelo Centro Universitário Salesiano de São Paulo, Militar. Atuou como Conciliador da Vara do Juizado Especial Cível do Foro Regional I em São Paulo. Atualmente é pesquisador de temas relacionados à Seguridade social e História da Filosofia. Autor do livro Direito Previdenciário Militar, publicado pela Editora ALL PRINT. Tem experiência na área de Direito da Seguridade Social, com ênfase em Direito Previdenciário Militar e História da Filosofia.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ALMEIDA, João Carlos Silva. Os famigerados artigos de guerra. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 29, n. 7514, 27 jan. 2024. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/108177. Acesso em: 28 abr. 2024.

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