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O markets in crypto-assets (MiCA):

A proposta europeia para regular o mercado de criptoativos

18/05/2023 às 16:24
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Uma vez em vigor, o MiCA e o TFR se tornarão a legislação mais completa sobre criptoativos no mundo, colocando a Europa, mais uma vez, numa posição de vanguarda na regulação de temas relacionados com a utilização de novas tecnologias.

Os membros do Parlamento Europeu aprovaram[1] (no dia 20.4.23) o Markets in Crypto Assets (MiCA), como se convencionou chamar a proposta de regulamento para o mercado de criptoativos[2]. A proposta eleva o grau de proteção a consumidores e investidores e traz estabilidade e segurança jurídica para as transações realizadas por meio desses instrumentos financeiros. A nova legislação objetiva garantir que os serviços financeiros na Europa estejam adequados à era digital e preparar a economia do bloco europeu para utilização de tecnologias inovadoras. A UE tem interesse em desenvolver e promover a adoção de tecnologias transformadoras no setor financeiro, sobretudo a tecnologia de contabilidade distribuída (Decentralized Ledger Technology - DLT), cujo exemplo mais conhecido é a blockchain[3]. Espera-se que muitas aplicações da tecnologia de contabilidade distribuída, ainda não totalmente estudadas, continuem a resultar em novos tipos de atividades e modelos de negócios que, com o próprio setor de criptoativos, levarão crescimento à economia e novas oportunidades de emprego para os cidadãos europeus.

O texto originário do MiCA foi proposto em setembro de 2020 e faz parte da “Estratégia Financeira Digital” da Comissão Europeia,  que ressalta a importância de legislar sobre serviços financeiros para adequar o continente europeu à era digital, criando oportunidades para inovação e desenvolvimento de tecnologias baseadas em blockchain. A inexistência de regras claras sobre a economia dos criptoativos deixa os consumidores à exposição de riscos, daí a importância de legislar em matéria de serviços financeiros digitais.

O MiCA não é uma iniciativa normativa isolada, mas parte de um pacote legislativo mais amplo, voltado a regular as finanças digitais, que inclui o Digital Operational Resilience Act (DORA) e o Pilot Regime on Distributed Ledger Technology. A esse conjunto de leis ainda se soma outra proposta de regulamento aprovada na mesma data, o Transfer of Funds Regulation (TFR)[4].     

Criptoativos são uma das principais aplicações da tecnologia de contabilidade distribuída (DLT). Quando usados ​​como meio de pagamento, os criptoativos podem apresentar vantagens em termos de transações mais baratas, rápidas e eficientes, em particular porque limita o número de intermediários. O texto do regulamento define criptoativo como “uma representação digital de valor ou direitos que podem ser transferidos e armazenados eletronicamente, usando tecnologia de contabilidade distribuída ou tecnologia similar”[5]. Faz distinção com as criptomoedas (crypto-currencies), estabelecendo estas como uma das espécies de criptoativos. Inclui no âmbito de sua regulamentação outros tipos de criptoativos, a exemplo dos tokens[6], desde que não estejam submetidos à regulamentação já existente. Em síntese, o MiCA estabelece sua disciplina sobre todos os criptoativos que ainda não são regulados pela legislação existente de serviços financeiros[7].  

As criptomoedas, conhecidas como moedas virtuais, fazem parte do gênero de criptoativos. São instrumentos financeiros totalmente digitais, utilizadas para pagamentos e transações no ambiente virtual, assim como o dinheiro. Entretanto, diferentemente do dinheiro, as criptomoedas não são emitidas por governos e não são reguladas por bancos centrais.  

Da mesma forma que as criptomoedas, os tokens são a representação digital de um ativo – dinheiro, propriedade ou investimento – em uma blockchain. Estão abrangidos pela MiCA: tokens referenciados a ativos (Asset-referenced tokens - ARTs), tokens de dinheiro eletrônico (Electronic money tokens - EMT) e tokens utilitários (utility tokens)[8].

O MiCA exclui de sua abrangência os tokens não fungíveis (Non-fungible tokensNFTs)[9] e os Security tokens[10]. Essas variáveis ​​ou já possuem regulamentação própria[11] de acordo com sua natureza - como no caso dos security tokens - ou possuem características tão específicas que os legisladores precisariam realizar análises mais aprofundadas para elaborar um marco regulatório que trate adequadamente dos riscos de cada uma dessas espécies.

De toda maneira, a não inclusão dos NFTs sob a abrangência do MiCA despertou críticas de figuras proeminentes do mundo corporativo e financeiro, a exemplo da Presidente do Banco Central Europeu, Christine Lagarde, que já clama por uma atualização do texto da norma[12].

As moedas digitais de bancos centrais (CBDCs)[13] também estão fora do escopo do MiCA.

O novo regulamento traz uma série de obrigações para os emissores de criptoativos (cryptoassets issuers), agentes do mercado que emitem e negociam esses instrumentos financeiros. Os deveres variam conforme o tipo de criptoativo e a quantidade ofertada, mas de maneira geral os fornecedores, entre outras medidas, devem informar os clientes adequadamente sobre características do serviço, obter prévia autorização para o exercício da atividade e adotar certos protocolos de segurança. Os consumidores serão mais bem informados sobre os riscos, custos e encargos relacionados com as operações.  

O MiCA também impõe diversas obrigações aos provedores de serviços de criptoativos (crypto-asset service providers - CASPs). Nessa categoria se inclui qualquer prestador que faça custódia ou administração de criptoativos em nome de terceiros ou mesmo aquele que forneça um simples serviço de consultoria sobre esses instrumentos financeiros. Os CASPs devem obter licença prévia para poder atuar no mercado de serviços de criptoativos e adotar medidas contra lavagem de dinheiro (anti-money laundering compliance).

A Autoridade Europeia dos Valores Mobiliários e dos Mercados (European ​Securities and Markets Authority - ESMA) deverá criar um registo público para prestadores de serviços de criptoativos que operam na União Europeia sem autorização. A ESMA terá poderes para intervir, proibir ou restringir as plataformas criptográficas que não protegerem adequadamente os investidores ou ameaçarem a integridade do mercado ou a estabilidade financeira.

O MiCA também busca mitigar o impacto ambiental das criptomoedas. A mineração de criptomoedas – o processo de validação de transações e adição de novas unidades à blockchain – requer equipamentos de alta potência, os quais consomem grandes quantidades de energia que pode vir de combustíveis fósseis, como o carvão. O processo de geração de criptomoedas também demanda volume considerável de componentes de informática e produz lixo eletrônico. Com a finalidade de reduzir os efeitos da indústria das criptomoedas sobre o meio ambiente, o MiCA estabelece a obrigação de divulgar seu consumo de energia para os grandes emissores.

Na mesma sessão do dia 20.4.23, o Parlamento Europeu aprovou[14] resolução legislativa sobre outra proposta de regulamento (Transfer of Funds Regulation - TFR) que permitirá rastreabilidade das transferências de criptoativos[15].  

A regra fundamental a ser observada pelos provedores de serviços relacionados com criptoativos é a de rastrear as transferências em criptomoedas. As transferências em criptomoedas ou tokens eletrônicos de pagamento, assim como qualquer outra operação financeira, poderão ser rastreadas, e as transações suspeitas, bloqueadas. A chamada travel rule (“regra de viagem”), já utilizada no mundo das finanças tradicional, se estenderá às transferências de criptoativos[16].  

A regra impõe ao provedor de serviços de criptoativos a obrigação de coletar e tornar acessíveis certas informações sobre o originador e o beneficiário das transferências. A fim de assegurar a transmissão de informações ao longo da cadeia de pagamentos ou da cadeia de transferência de criptoativos, o Regulamento prevê um sistema que impõe aos prestadores de serviços de pagamento e aos provedores de serviços de criptoativos em geral a obrigação de acompanhar as transferências de fundos, com informações sobre o remetente e o destinatário. Isso garantirá rastreabilidade das transferências de criptoativos para permitir identificar transações suspeitas e bloqueá-las. O provedor deve adotar procedimentos eficazes baseados no risco, para determinar se deve rejeitar ou suspender uma transferência de ativos criptográficos que não contenha as informações necessárias sobre o remetente e o destinatário.

A “travel rule” alcança as operações realizadas por meio de caixas eletrônicos para criptomoedas (crypto-ATMs)[17], mas não se aplica se a transação ocorrer diretamente entre provedores de serviços de criptoativos ou se a transferência se der de uma pessoa para outra sem  envolvimento de um provedor.   

Um provedor de serviços de criptoativos não deve, em princípio, ser obrigado a verificar as informações sobre o usuário do endereço auto-hospedado, que tem sua carteira digital de criptomoedas não alojada em uma plataforma de custódia (un-hosted wallet). No entanto, no caso de uma transferência de valor superior a 1.000 euros, enviada ou recebida em nome de um cliente de um provedor ou de um endereço auto-hospedado, o provedor de serviços de criptoativos deve verificar se esse endereço auto-hospedado é efetivamente de propriedade ou controlado por esse cliente.

Ao garantir rastreabilidade das transferências de criptoativos, a introdução da “travel rule” para os provedores de serviços de criptoativos (CASPs) objetiva atribuir transparência às transações nos mercados financeiros digitais, permitindo combater a lavagem de dinheiro, o financiamento do terrorismo global e outras atividades criminosas. Os provedores de serviços de criptoativos têm a obrigação de manter registro das operações e disponibilizá-las às autoridades competentes, mediante solicitação. O objetivo é eliminar a “anonimização” característica dessas transações, que favorece a criminalidade.

Os textos ainda terão de ser formalmente aprovados pelo Conselho Europeu, antes da publicação no jornal oficial da UE, só entrando em vigor doze meses após a publicação.    

Uma vez em vigor, o MiCA e o TFR se tornarão a legislação mais completa sobre criptoativos no mundo, colocando a Europa, mais uma vez, numa posição de vanguarda na regulação de temas relacionados com a utilização de novas tecnologias. Isso ajudará a desenvolver o ecossistema das tecnologias de registro distribuído e preparar o continente para liderar os próximos passos da transformação digital trazida pela blockchain.


[1] Por 517 votos a favor, 38 contra e 18 abstenções.

[2] O texto da versão do MiCA aprovado pelo Parlamento Europeu em 20.04.23 pode ser acessado em https://www.europarl.europa.eu/doceo/document/TA-9-2023-0117_EN.html

[3] Blockchain (que traduzido para o português, seria algo como cadeia de blocos) é uma tecnologia de registro distribuído que permite registrar transações de forma segura, transparente e descentralizada. Ela serve como um livro contábil digital para transações financeiras, registros de propriedade, votações eletrônicas e outras aplicações.

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Sua principal característica é a segurança criptográfica, que impede a alteração ou fraude dos registros, além de dispensar a necessidade de intermediários, tornando as transações mais rápidas e econômicas.

Está sempre em expansão, à medida que novos blocos são adicionados quando são feitos novos conjuntos de registros. Toda vez que um bloco é concluído, um novo é gerado. Existe um número incontável de blocos na blockchain que são ligados uns aos outros, de forma encadeada, onde cada bloco contém uma referência ao bloco anterior.

É a tecnologia que serve de base para as criptomoedas (como o Bitcoin, o Ethereum  etc.) visto que todas as transações ficam registradas em blocos da rede.

[4] O DORA estabelece padrões para o desenvolvimento e manutenção de medidas de segurança em organizações do setor financeiro e terceiros que fornecem serviços relacionados, como computação em nuvem ou análise de dados.

O Regime Piloto DLT visa implementar infraestruturas de mercado piloto para a emissão, negociação e liquidação de tokens usando a tecnologia DLT, e também modifica a definição de "instrumento financeiro" sob a Diretiva MiFID II para incluir aqueles baseados na tecnologia DLT.

Por fim, o Regulamento de Transferência de Fundos (TFR) se aplica às transferências de criptoativos e garante a transparência financeira nessas transações.

[5] Na redação original do texto do MiCA em língua inglesa, critptoativo (cryptoasset) é definido como “a digital representation of value or rights which may be transferred and stored electronically, using distributed ledger technology or similar technology.”

[6] Token, em inglês, significa ficha ou símbolo. Na área da tecnologia, o nome se refere a um dispositivo eletrônico/sistema gerador de senhas bastante utilizado por bancos. No universo dos criptoativos, no entanto, a palavra ganha outra conotação, significando a representação digital de um ativo com a utilização de tecnologia de contabilidade distribuída (blockchain). Toda criptomoeda é um token, mas nem todo token é uma criptomoeda. O BTC seria o token da rede Bitcoin, enquanto o ETH seria o token da blockchain do Ethereum. Os dois criptoativos, portanto, seriam payment tokens, visto que são utilizados para transferência de capital e funcionam como dinheiro eletrônico.

[7] Alguns criptoativos, em particular aqueles que se qualificam como instrumentos financeiros, conforme definido na Diretiva 2014/65/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, enquadram-se no âmbito dos atuais atos legislativos da UE sobre serviços financeiros. Por conseguinte, um conjunto completo de regras da UE já se aplica aos emitentes desses criptoativos e às empresas que realizam atividades relacionadas com esses instrumentos financeiros.

[8] Os Utility tokens oferecem alguma utilidade, como desconto em um produto específico (cupons de desconto), acesso a um serviço exclusivo, direito a voto e outros benefícios. Somente são aceitáveis pelo próprio emissor do token. Os fan tokens, ativos digitais de clubes de futebol, são exemplos de utility tokens.

[9] Bens fungíveis, de acordo com o Código Civil brasileiro, são aqueles “que podem substituir-se por outros da mesma espécie, qualidade e quantidade”. Uma nota de R$ 100,00, por exemplo, é fungível, já que pode ser trocada por duas de R$ 50,00. Um quadro de um pintor famoso, por outro lado, não é fungível, pois é uma coisa única, sem equivalente.

NFT é a sigla em inglês para non-fungible token (token não fungível, na tradução para o português). Non-fungible tokens (tokens não-fungíveis) são representações digitais de algo único. Eles podem “espelhar” obras de arte, músicas e capas históricas de revistas. Ao adquirir um NFT, a pessoa basicamente compra um código de computador que contém o registro do objeto. Um NFT, portanto, é a representação de um item exclusivo, a exemplo de um quadro. Na prática, ter um token não fungível significa ter um certificado digital de propriedade que qualquer um pode ver e confirmar a autenticidade, mas ninguém pode alterar.

[10]Securities em inglês significa títulos, valores mobiliários e instrumentos financeiros negociáveis em Bolsa de Valores. Um security (título) é um instrumento financeiro fungível e negociável que representa algum tipo de valor financeiro, geralmente na forma de ações, obrigações ou opções. Os Security tokens representam algum valor mobiliário, como uma ação negociada na Bolsa de Valores. Como estão “ligados” a produtos regulados, eles precisam atender às regras de supervisores do mercado de capitais, como a Comissão de Valores Mobiliários (CVM), no Brasil, e a SEC (Securities and Exchange Commission), nos Estados Unidos.

[11] Os security tokens se qualificam como instrumentos financeiros segundo a Markets in Financial Instruments Directive and Regulation (MiFID).

[12] Ver notícia publicada no Yahoo! Finance, em 29.11.22, acessível em:  https://finance.yahoo.com/news/ecb-christine-lagarde-further-crypto-053017629.html

[13] CBDC é a sigla em inglês para Central Bank Digital Currency. As CBDCs têm diferenças e semelhanças com as criptomoedas. A principal diferença entre as CBDCs e moedas virtuais está relacionada com o processo de emissão. Criptomoedas não são emitidas nem controladas por um governo ou instituição central. Em outras palavras, são descentralizadas. Já as moedas digitais de bancos centrais são centralizadas no banco central do país, como o nome sugere. A criação e a implementação de CBDC não requer algum tipo de tecnologia de registro distribuído, como as blockchains usadas nas criptomoedas.

O Brasil é um dos países que está trabalhando na criação de uma CBDC, batizada de Real Digital. Atualmente em uma fase de estudos de caso, a previsão do Banco Central é que ela passe para um período de testes em 2023 e seja emitida oficialmente no ano seguinte, quando começará a ser usada pela população.

[14] Por 529 votos a favor, 29 contra e 14 abstenções.

[15] Ver comunicado à imprensa publicado no site do Parlamento Europeu no dia 20.04.23, acessível em: https://oeil.secure.europarl.europa.eu/oeil/popups/summary.do?id=1741667&t=e&l=en

[16] O texto da versão do TFR aprovado pelo Parlamento Europeu em 20.04.23 pode ser acessado em: https://www.europarl.europa.eu/doceo/document/TA-9-2023-0118_EN.html

[17] Crypto-ATMs (Automated Teller Machine) são quiosques que permitem a compra de criptomoedas usando cartão de crédito ou débito.

 

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Sobre o autor
Demócrito Reinaldo Filho

Juiz de Direito. Doutor em Direito. Ex-Presidente do IBDI - Instituto Brasileiro de Direito da Informática.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

REINALDO FILHO, Demócrito. O markets in crypto-assets (MiCA):: A proposta europeia para regular o mercado de criptoativos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 28, n. 7260, 18 mai. 2023. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/104125. Acesso em: 28 abr. 2024.

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