Capa da publicação Dispensa de empregado público precisa de motivação?
Artigo Destaque dos editores

A necessidade de motivação para dispensa de empregado público

Exibindo página 1 de 4
28/02/2023 às 16:55
Leia nesta página:

É viável a aplicação, como regra, de processo demissional com amplas garantias também aos empregados públicos.

Resumo: De maneira genérica, a expressão “agente público” designa todos os sujeitos que exercem, de alguma forma, a função pública. Contudo, a depender da maneira com que o vínculo desse agente se dá com o Estado, diferente também é o fim do relacionamento entre Administração Pública e o indivíduo. Isso ocorre justamente por conta das diversas formas de contratação que os sistemas constitucional e administrativo admitem atualmente. O escopo do presente trabalho é defender que independente da modalidade da contratação, deve ser assegurada àquele empregado celetista o direito de contraditório e ampla defesa no processo demissional, com as formalidades de rigor. A partir da definição dos conceitos de agente público, funcionário público e empregado público, demonstradas as peculiaridades e semelhanças de cada uma das carreiras, ao final, considerando paradigmáticas decisões sobre o tema, com vistas aos dispositivos da Constituição Federal de 1988, pretende-se demonstrar a viabilidade de aplicação, como regra, de processo demissional com amplas garantias também aos empregados públicos.

Palavras-chave: empregado público; dispensa motivada; direito administrativo.


INTRODUÇÃO

A Administração Pública, para a consecução de seus interesses, adota modalidades de contratação diferenciada em decorrência das regras constitucionais. Atualmente, é possível que os agentes públicos, pessoas físicas que atuam dentro da Administração Pública Direta e da Administração Pública Indireta, componham os quadros de pessoal sob três modalidades: agentes políticos, agentes em colaboração e servidores estatais.

Logo no primeiro capítulo após a introdução do presente trabalho, serão dissecadas as formas em que os agentes públicos se apresentam perante a Administração e quais são os pontos de intersecção dos regimes jurídicos existentes. Nesse ponto, então, são descritas as qualidades de todos os agentes públicos, partindo das regras da legislação federal sobre o tema e do paradigmático julgamento de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade que tratou sobre o Regime Único de contratação e suas consequências.

Nos dois capítulos seguintes, o estudo se debruçará especialmente sobre as formas de ingresso no serviço público e as consequências daí advindas, notadamente no ato de dispensa dos empregados públicos celetistas das empresas públicas e da sociedade de economia mista. São analisadas as causas e consequências de ambos os atos e do porquê do posicionamento adotado.

Ao final, será feita análise dos casos emblemáticos e da virada jurisprudencial, cujos contornos finais ainda não foram definidos.

Desse modo, na busca por compreender o assunto a partir de três perspectivas diferentes, isto é, legislação, doutrina e jurisprudência, pretende-se, ao final do estudo, defender que os agentes celetistas da Administração têm direito à dispensa motivada, assegurada a ampla defesa e o contraditório, em decorrência dos princípios constitucionais e do fundamento do Estado de Direito brasileiro.


1. OS AGENTES PÚBLICOS

1.1 CONCEITO

A expressão “agente público” é empregada em sentido amplo e se presta a designar todas as pessoas que atuam em nome do Estado, das pessoas jurídicas integrantes da Administração Pública Direta – União, Estados, Distrito Federal e Municípios –, bem como das entidades da Administração Pública Indireta – autarquias, fundações, sociedades de economia mista e empresas públicas –, independente do vínculo jurídico existente, da remuneração ou de eventual transitoriedade.

O Estado só pode se fazer presente atuando por intermédio das pessoas físicas que em seu nome manifestam vontade, que acaba sendo imputada a ele próprio, de forma que todas essas pessoas são consideradas agentes públicos.1

Os agentes públicos, em regra, desempenham suas funções pelos órgãos da Administração Pública e são distribuídos em cargos de que são titulares. Excepcionalmente, podem existir funções sem cargo. Mas não se pode olvidar que o cargo ou a função sempre pertenceram ao Estado e não ao agente que o desempenha/exerce.2

Como bem observado por Maria Sylvia Zanella de Pietro, a Constituição Federal, no Título III – Da Organização do Estado, precisamente no Capítulo VII – Da Administração Pública e Seção I, emprega em seu texto o vocábulo “servidores públicos” para designar tanto as pessoas que prestam serviço, com vínculo empregatício, quanto a Administração Pública Direita e Indireta. Já na Seção II do mesmo capítulo o termo é utilizado apenas para designar quem presta serviço aos Entes Federados, a autarquias e fundações públicas3.

Em conclusão, a autora aponta que,

Isso significa que “servidor público” é expressão empregada ora em sentido amplo, para designar todas as pessoas físicas que prestam serviço ao Estado e às entidades da Administração Indireta, com vínculo empregatício, ora em sentido menos amplo, que exclui os que prestam serviços às entidades com personalidade jurídica de direito privado. Nenhuma vez a Constituição utiliza o vocábulo funcionário, o que não impede que seja este mantido na legislação ordinária.4

Por esse motivo, paulatinamente a alcunha “servidor público” foi substituída por “agente público”, de sentido ainda mais amplo, que designa todas as pessoas naturais que exercem função pública, com ou sem vínculo administrativo.

Inclusive, a Lei 8.429/1992 – Lei de Improbidade Administrativa – já utiliza a terminologia “agente público”, definindo como “o agente político, o servidor público e todo aquele que exerce, ainda que transitoriamente ou sem remuneração, por eleição, nomeação, designação, contratação ou qualquer outra forma de investidura ou vínculo, mandato, cargo, emprego ou função nas entidades” da Administração Pública5.

Sendo assim, com auxílio da legislação ordinária, consideram-se agentes públicos as pessoas que exercem função pública em virtude de relação trabalhista, em qualquer dos entes da Administração Pública Direita ou Indireta, bem como os servidores estatutários, os nomeados e os empregados públicos contratados pelo regime da Consolidação das Leis Trabalhistas. Incluem-se no conceito, também, os contratados para os cargos temporários.

1.2 CLASSIFICAÇÃO

Embora não unânime, prevalece na doutrina classificação dos agentes públicos baseada no regime jurídico ao qual eles se submetem e o vínculo formalizado com a Administração Pública, sendo aglutinados em três grupos diferentes: agentes políticos, particulares em colaboração com o Poder Público e servidores estatais.

1.2.1 Agentes políticos

Os agentes políticos são aqueles que atuam no exercício da função política, ocupando os cargos inerentes à organização política do Estado e exercendo mandatos eletivos. Portanto, o vínculo existente entre esses agentes e o Estado é de natureza política. Os agentes políticos cingem-se, de forma indissociável, às noções de governo e política.

Para Celso Antônio Bandeira de Mello, os agentes políticos são os titulares dos cargos estruturais à organização política do país, ou seja, são os que compõe o arcabouço constitucional do Estado e, portanto, o esquema fundamental do poder. Sua função é a de formadores da vontade superior do Estado6, ou seja, suas funções são governamentais, judiciais e quase judiciais7, exercidas com autonomia e independência, destacando-se a elaboração da legislação pátria e condução de negócios.

Por esse motivo é que lhe são contempladas certas prerrogativas necessárias para o pleno exercício de suas funções e complexas atribuições. A principal prerrogativa, sem dúvidas, é o foro por prerrogativa de função.

Integram essa categoria o Presidente da República, os Governadores, os Prefeitos e respectivos auxiliares imediatos (Ministros e Secretários das diversas pastas), os Senadores, os Deputados e os Vereadores.

Parcela significativa da doutrina, atualmente, posiciona-se por acrescentar os membros do Ministério Público e da Magistratura, uma vez que atuam no exercício de funções essenciais do Estado, praticando atos de soberania.8

1.2.2 Particulares em colaboração com o Poder Público

Neste grupo encontram-se quem, sem perder a qualidade de particular, atuam em função pública em situações excepcionais, mesmo que em caráter temporário/ocasional, independente de vínculo jurídico. Eles não integram a estrutura da Administração Pública, exercendo suas funções apenas de forma singular.

A sua atuação pode se dar de quatro formas diferentes, embora não haja consenso doutrinário sobre o tema:

  1. designados: todos aqueles que são convocados pelo Poder Público, sendo obrigatório o exercício quando requisitados. Não possuem vínculo profissional e são livremente designados para desempenhar múnus público ou serviços relevantes, geralmente sem remuneração. São chamados por Hely Lopes Meirelles de “agentes honoríficos”9. Toma-se como exemplo os mesários e os jurados;

  2. voluntários: são aqueles que agem voluntariamente para socorrer a população em casos de calamidades públicas exercendo funções anômalas. Segundo Maria Sylvia Zanella di Pietro, são chamados de “gestores de negócios”10;

  3. delegados: são os que atuam na prestação de serviço público por delegação do Estado, por meio de emprego em empresas concessionárias e permissionárias de serviços públicos. Incluem-se entre esses os que exercem serviços notariais e de registro, os leiloeiros, tradutores e intérpretes públicos. A função pública é exercida no próprio nome dos agentes, sem vínculo empregatício, sob fiscalização do Poder Público, são remunerados diretamente pelos usuários do serviço;

  4. credenciados: atuam por intermédio de convênios com o Poder Público. O exemplo dado por Matheus Carvalho é dos médicos privados que atuam em convênio com o Sistema Único de Saúde – SUS –, para atendimento de pacientes, mediante pagamento pelos cofres públicos11.

1.2.3 Servidores estatais

Os servidores estatais, também designados servidores públicos, são as pessoas que têm vínculo com o Estado para a prestação da função administrativa.

Essa categoria inclui todos os que possuem conexão com a administração e exercem função pública, em exclusão dos agentes políticos e particulares em colaboração com o Poder Público, com dependência com a Administração Pública e de forma não eventual, decorrente de trabalho de natureza profissional remunerada pelos cofres públicos12.

São, por alguns, chamados de agentes administrativos e, por outros, de funcionários públicos. Entretanto, ambas as expressões não são as mais técnicas. A primeira porque restringe demais o conteúdo da expressão “servidor público”, já que nem todos desempenham funções administrativas do Estado. A segunda – funcionários públicos – já foi banida da Constituição Federal e abrangia também só uma parcela dos servidores estatais: aqueles vinculados com a Administração por estatuto.

Assine a nossa newsletter! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos

Embora não constante da Constituição, não se pode olvidar que algumas legislações utilizam o termo “funcionário público” para designar o agente vinculado à Administração por estatuto. Um bom exemplo é a Lei Estadual nº 10.261/68, que instituiu o Estatuto dos Funcionários Públicos Civis do Estado de São Paulo13.

São três as espécies de servidores estatais: os servidores estatutários, os servidores temporários e os empregados públicos.

1.2.3.1 Os servidores estatutários

Os servidores estatutários recebem essa nomenclatura justamente por serem submetidos ao regime jurídico estatutário, que é estabelecido essencialmente em lei por cada uma das unidades da federação. Nessa hipótese, fala-se em cargo público, que pode ser ocupado tanto a estrutura do Entre Federativo, quanto das autarquias e fundações públicas.

O regime estatutário é a relação de direitos e deveres que vinculam o servidor à pessoa de direito público. Em âmbito federal, a Lei 8.112/1990 regula as relações jurídicas da União14, das autarquias federais e das fundações com personalidade de direito público (autarquias fundacionais).

Consoante trazido por Odete Medauar,

o regime estatutário é aquele em que os direitos, deveres e demais aspectos da vida funcional do servidor estão contidos basicamente numa lei denominada Estatuto. O Estatuto pode ser alterado no decorrer da vida funcional do servidor, independente de sua anuência, ressalvados os direitos adquiridos; o servidor não tem direito a que seja mantido o Estatuto que existia no momento de seu ingresso nos quadros da Administração. O Estatuto rege a vida funcional dos ocupantes de cargo efetivo e vem regendo a vida funcional de ocupantes de cargo em comissão, quanto a estes, no que for compatível com esse tipo de cargo.15

Insta consignar que o regime estatutário não tem natureza contratual, ou seja, não é negócio jurídico bilateral típico do Direito Privado. É, em verdade, relação jurídica de Direito Público, de forma que a conjugação de vontades conduz à execução da função pública segundo as regras características desse ramo de direito, como por exemplo, provimento do cargo, a nomeação e a posse.16

Essa é a primeira característica desse regime: o vínculo legal. Citando decisão do Superior Tribunal de Justiça, Rafael Carvalho Rezende de Oliveira, conclui que esse vínculo legal leva à “inalterabilidade da situação funcional, por predominar o interesse público na relação estatutária”.17

Observa-se que os servidores públicos, exceto os ocupantes de cargo em comissão, têm direito a preservação do vínculo jurídico de contratação e proteção do cargo por meio da estabilidade funcional.

Essa garantia, também chamada de estabilidade ordinária, está conjecturada no artigo 41 da Constituição Federal18, que prevê que, após três anos de exercício, o servidor só poderá perder o cargo em decorrência de sentença judicial transitada em julgado, procedimento administrativo assegurada a ampla defesa ou em decorrência de procedimento de avaliação periódica a ser formalizado por meio de lei complementar.

Há, ainda, a estabilidade extraordinária, conferida excepcionalmente por meio de textos constitucionais a servidores não ocupantes de cargos efetivo e que tenham exercido por cinco anos o serviço público anteriormente a promulgação.

Maria Sylvia Zanella di Pietro sintetiza bem o tema:

Isso significa que a Administração pública possui dois tipos de servidores estáveis: os que foram nomeados por concurso público e cumpriram o período de estágio probatório de dois anos; e os que adquiriram a estabilidade excepcional, independentemente de concurso, em decorrência concedido pelas várias Constituições. As duas categorias têm igual garantia de permanência no serviço público; só podem perder seus cargos por sentença judicial transitado em julgado ou processo administrativo em que tenham assegurada ampla defesa.19

Segundo Fernanda Marinela, a garantia de estabilidade dos servidores públicos assegura “maior segurança e conforto para o exercício de suas funções, o que representa, ao menos, na teoria, uma maior eficiência, moralidade e impessoalidade nos serviços públicos.”20

Dada a multiplicidade das legislações de direito público dos Estados e dos Municípios, não é possível estabelecer precisamente cada uma das peculiaridades desse regime. Os aspectos gerais, todavia, são definidos pela Constituição Federal. Esse sortimento de regras próprias enuncia a segunda característica desse regime: a pluralidade normativa.

1.2.3.2 Os servidores públicos temporários

Ao contrário dos servidores mencionados anteriormente, os servidores temporários se submetem a regime especial, eis que contratados por tempo determinado, em caráter excepcional, para atendimento de necessidades não permanentes dos órgãos públicos, com fundamento autorizador do artigo 37, inciso IX, da Constituição vigente.

Para que essa modalidade de contratação seja válida, é necessário o atendimento de certos requisitos:

  1. o serviço deve ser temporário: há de haver lei específica com as características do serviço, como o limite de tempo da contratação, o regime a ser aplicado e as funções a serem exercidas;

  2. é imprescindível o interesse público na contratação: dentro das hipóteses legais, a autoridade responsável pela contratação deve justificar a contratação;

  3. a contratação é sempre excepcional: os servidores temporários não podem ser contratados ordinariamente, isto é, não podem substituir a regra do concurso público e ocupação de cargos por servidores efetivos.

No âmbito federal, a contratação dos servidores temporários é regulada pela Lei 8.745/9321, que “dispõe sobre a contratação por tempo determinado de excepcional interesse público, nos termos do inciso IX do art. 37 da Constituição Federal”,

A referida legislação define que os servidores não podem receber quaisquer atribuições, funções ou encargos que não estejam expressamente previstos no contrato, bem como veda a nomeação ou designação, ainda que a título precário ou para substituição, para cargo em comissão ou função de confiança.

Esse regime, que não é regido pelas regras da Consolidação das Leis Trabalhistas, é, em verdade, Regime Especial de Direito Administrativo, decorrente de lei específica que ampara a contratação. Por se submeterem a regras administrativas, a competência para eventual litígio entre contratado e contratante é de competência da Justiça Comum, conforme jurisprudência uníssona das Cortes do país.

1.2.3.3 Os servidores celetistas

Em algumas hipóteses, há a contratação de empregados sob o regime da Consolidação das Leis do Trabalho para a prestação de serviços na Administração Pública Indireta, a saber, em empresas públicas, sociedades de economia mista e fundações públicas, quais são regidas pelo regime de Direito Privado.

O vínculo desses agentes com a Administração Pública é permanente, feito com prazo indeterminado, por vínculo celetista, ou seja, contratual, aplicando-se apenas de forma subsidiária as normas de lei específica. No âmbito federal, a lei que rege essa modalidade de contratação é a Lei 9.962/0022.

Alguma parte da doutrina, destacando o entendimento de Celso Antônio Bandeira de Mello, defende que, embora a lei em questão tenha sido editada para vigência no âmbito federal, é aplicável a todos os níveis da Administração Pública e esferas de Governo. 23

Outra parcela dos juristas, entre eles Rafael Carvalho Rezende Oliveira, contrariando a primeira corrente, assegura que a Lei 9.962/00 é de nível de federal e não nacional, dada a competência da União para editar matérias sobre o tema – decorrente igualmente do artigo 22, inciso I, da Constituição Federal. O destaque dessa segunda linha de pensamento é que a lei é categórica em restringir o alcance da norma aos entes integrantes da Administração Federal. Por conseguinte, não se admite a aplicação do regime de emprego público da Lei supracitada aos agentes estaduais e municipais, que se submetem à lei trabalhista.24

Logo, competiria ao Chefe do Poder Executivo a iniciativa para editar a legislação pertinente em cada esfera de Governo, nos termos da determinação de atribuição prevista, a ser observada em simetria, do artigo 61, §1º, inciso II, alínea c, da Constituição Federal, com as especificidades do regime.25

De todo modo, por serem contratados pelo Regime da Consolidação das Leis do Trabalho, é impossível que normas regionais e locais – estaduais, distritais ou municipais – derroguem a legislação trabalhista, já que os entes federativos, com a exceção da União, são vedados, por força do artigo 22, inciso I, da Constituição Federal, de legislar sobre o Direito do Trabalho.

No mais, ainda que sujeitos à Consolidação das Leis do Trabalho, a eles são impostas todas as limitações de ordem constitucional referentes a requisitos de investidura, acumulação de cargos, vencimentos e outras do Capítulo VII, do Título III, da Carta Magna.

Dado esse cenário de vínculo jurídico decorrente do regime celetista, a competência para solução de controvérsias entre os empregados e a Administração Pública será sempre o foro da Justiça do Trabalho.

Por fim, uma última consideração se faz importante. O mero fato do empregado público ser submetido ao regime da Consolidação das Leis do Trabalho, não lhe tira o status de servidor público. Como arremata José dos Santos Carvalho Filho,

É preciso considerar que, mesmo sob regime contratual trabalhista, o servidor não deixa de caracterizar-se como tal. Em consequência, é vedado ignorar tal situação funcional no caso de ocorrer alteração para o regime estatutário. Ocorrendo essa alteração (que não pode ser compulsoriamente imposta e, assim, deve resultar de opção do servidor), é dever do ente federativo respeitar todos os direitos funcionais adquiridos pelo servidor sob a égide do regime celetista, agregando-os, sem solução de continuidade, à nova relação funcional estatutária. Relegar os direitos já conquistados pelo servidor constitui flagrante inconstitucionalidade, como têm consignado acertadamente alguns julgados.26

1.2 REGIME ÚNICO DE CONTRATAÇÃO

Consoante ao cediço, um dos pilares da Constituição Federal é a isonomia. Em vários dispositivos legais é possível observar a influência desse princípio e nas modalidades de contratação de agentes públicos não seria diferente.

Consequentemente, a Constituição, em seu texto original, previu que, em todas as esferas governamentais, em relação aos servidores públicos, fossem adotadas regras que confirmassem a isonomia prevista pelo legislador constituinte originário. Esse aspecto era observável em relação ao regime jurídico a ser adotado, à remuneração e às condições de ingresso como agente público.

Dessa forma, notadamente em relação a modalidade de contratação, a Constituição previu a adoção de regime único para ingresso de pessoal na Administração Direta, autárquica e fundacional. Esse regime permitia, a princípio, que cada Ente Federado escolhesse o regime de contratação de forma exclusiva, sem admitir, portanto, nomeação para cargos públicos estatutários e, ao mesmo tempo, no mesmo ente e para outros servidores, a contratação de empregados pelo regime celetista.

Inobstante ao texto constitucional, surgiram diversas controvérsias na doutrina pátria acerca da “unicidade” do regime jurídico a ser adotado.

A primeira corrente, encabeçada por Marçal Justen Filho, Diógenes Gasparini, Dirley da Cunha Júnior, Rafael Carvalho Rezende de Oliveira e Diogo de Figueiredo Moreira Neto, indicava que o regime deveria essencialmente ser o estatutário27.

Se segunda corrente – que é majoritária –, defendida por José dos Santos Carvalho Filho, é no sentido que os Entes Federados poderiam optar pelo regime estatutário ou celetista como o regime uniforme para a Administração Direta, autarquias e fundações de Direito Público,

Como não havia suficiente clareza (e continua não havendo) sobre o significado do “regime jurídico único” na Constituição, justificava-se a controvérsia acima apontada. De qualquer modo, pensamos que o Constituinte nem quis obrigar à adoção exclusiva do regime estatutário, nem, por outro lado, desejou admitir a cisão de regimes entre a Administração Direta, de um lado, e as autarquias e fundações de direito público, de outro. No primeiro caso, não houve expresso mandamento constitucional que conduzisse àquela conclusão; no segundo, a cisão retrataria uma ruptura na lógica criada para a unicidade do regime. Por via de consequência, reiterando pensamento que já adotávamos em edições anteriores, consideramos que a intentio do Constituinte foi a de que o regime de pessoal fosse apenas único, seja o estatutário, seja o trabalhista – tese sufragada pela segunda corrente doutrinária já mencionada – com o que se poderiam evitar os velhos confrontos entre servidores da mesma pessoa federativa, tendo por alvo normas diversas estabelecidas por cada um daqueles regimes. 28

A derradeira posição, minoritária, diga-se de passagem, e defendida por Toshio Mukai, é que o regime jurídico uniforme era dividido entre Administração Direta e outro para as autarquias e fundações autárquicas.29

A princípio, a maior parte dos entes federativos adotou o regime estatutário para seus servidores. Nesse grupo inclui-se a União, que editou a Lei 8.112/9030, que regulamenta o estatuto aplicável aos servidores civis federais, de forma a consolidar o regime jurídico estatutário para os agentes dessa esfera de governo.

Assim prevaleceu, até que em 1998, pela emenda Constitucional de nº 1931, alterou-se a redação original do artigo 39, de maneira que foi abolida a opção pelo Regime Único de contratação. Logo, foi permitida a convivência de regimes celetista e estatutário para os servidores do mesmo órgão ou entidade, a ser definida por lei de cada um dos Entes Federativos.

Consoante cita Maria Sylvia Zanella di Pietro,

com a exclusão da norma constitucional do regime único, cada esfera de governo ficou com a liberdade para adotar regimes jurídicos diversificados, seja o estatutário, seja o contratual, ressalvadas aquelas carreiras institucionalizadas em que a própria Constituição impõe, implicitamente, o regime estatutário, uma vez que exige que seus integrantes ocupem cargos organizados em carreira (magistratura, Ministério Público, Tribunal de Contas, Advocacia Pública, Defensoria Pública e Polícia), além de outros cargos efetivos, cujos ocupantes exerçam atribuições que o legislador venha a conferir como “atividades exclusivas de Estado”, conforme previsto pelo artigo 247 da Constituição, acrescido pelo artigo 32 da Emenda Constitucional nº 19/98.32

Criou-se o seguinte panorama: na União, a Lei 8.112/90 seria aplicada aos servidores estatutários aprovados mediante concurso e nomeados para cargos efetivos, mas não se aplicaria aos agentes públicos contratados para assumir emprego público, que permaneceriam regidos pela Lei 9.962/00 e, subsidiariamente, pela Consolidação das Lei do Trabalho.

A referida emenda constitucional não passou ilesa de críticas. Ao contrário, foi duramente atacada por opiniões contrárias não só pela extinção do Regime Único de Contratação, mas também por ter extinguido a regra de isonomia de vencimentos para cargos de atribuições iguais ou assemelhadas do mesmo Poder ou entre servidores dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, que constava no artigo 39, §1º.

A medida acabou, depois das severas críticas, sendo objeto de Ação Direta de Inconstitucionalidade, ajuizada com o fito de ver restaurado o regime jurídico até então vigente. O fundamento do processo objetivo era a incompatibilidade formal da nova norma com a Constituição, em razão de violação do artigo 60, §2º, da Lei Maior, uma vez que a emenda não teria sido aprovada segundo rito especial de trâmite perante as duas casas do Congresso Nacional em dois turnos, com aprovação de três quintos dos respectivos membros. O segundo argumento era a inconstitucionalidade material pela violação de cláusula pétrea.

Em 02 de agosto de 2007, o Supremo Tribunal Federal concedeu medida liminar cautelar para suspender, até que fosse proferida a decisão final, a eficácia da nova redação do dispositivo. De fato, na oportunidade, reconheceu-se que o plenário da Câmara não observou o rito necessário de aprovação, uma vez que teria rejeitado o enunciado no primeiro turno e somente aprovado no segundo. Nesse sentido,

MEDIDA CAUTELAR EM AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. PODER CONSTITUINTE REFORMADOR. PROCESSO LEGISLATIVO. EMENDA CONSTITUCIONAL 19, DE 04.06.1998. ART. 39, CAPUT, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. SERVIDORES PÚBLICOS. REGIME JURÍDICO ÚNICO. PROPOSTA DE IMPLEMENTAÇÃO, DURANTE A ATIVIDADE CONSTITUINTE DERIVADA, DA FIGURA DO CONTRATO DE EMPREGO PÚBLICO. INOVAÇÃO QUE NÃO OBTEVE A APROVAÇÃO DA MAIORIA DE TRÊS QUINTOS DOS MEMBROS DA CÂMARA DOS DEPUTADOS QUANDO DA APRECIAÇÃO, EM PRIMEIRO TURNO, DO DESTAQUE PARA VOTAÇÃO EM SEPARADO (DVS) Nº 9. SUBSTITUIÇÃO, NA ELABORAÇÃO DA PROPOSTA LEVADA A SEGUNDO TURNO, DA REDAÇÃO ORIGINAL DO CAPUT DO ART. 39 PELO TEXTO INICIALMENTE PREVISTO PARA O PARÁGRAFO 2º DO MESMO DISPOSITIVO, NOS TERMOS DO SUBSTITUTIVO APROVADO. SUPRESSÃO, DO TEXTO CONSTITUCIONAL, DA EXPRESSA MENÇÃO AO SISTEMA DE REGIME JURÍDICO ÚNICO DOS SERVIDORES DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA. RECONHECIMENTO, PELA MAIORIA DO PLENÁRIO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, DA PLAUSIBILIDADE DA ALEGAÇÃO DE VÍCIO FORMAL POR OFENSA AO ART. 60, § 2º, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. RELEVÂNCIA JURÍDICA DAS DEMAIS ALEGAÇÕES DE INCONSTITUCIONALIDADE FORMAL E MATERIAL REJEITADA POR UNANIMIDADE. 1. A matéria votada em destaque na Câmara dos Deputados no DVS nº 9 não foi aprovada em primeiro turno, pois obteve apenas 298 votos e não os 308 necessários. Manteve-se, assim, o então vigente caput do art. 39, que tratava do regime jurídico único, incompatível com a figura do emprego público. 2. O deslocamento do texto do § 2º do art. 39, nos termos do substitutivo aprovado, para o caput desse mesmo dispositivo representou, assim, uma tentativa de superar a não aprovação do DVS nº 9 e evitar a permanência do regime jurídico único previsto na redação original suprimida, circunstância que permitiu a implementação do contrato de emprego público ainda que à revelia da regra constitucional que exige o quorum de três quintos para aprovação de qualquer mudança constitucional. 3. Pedido de medida cautelar deferido, dessa forma, quanto ao caput do art. 39 da Constituição Federal, ressalvando-se, em decorrência dos efeitos ex nunc da decisão, a subsistência, até o julgamento definitivo da ação, da validade dos atos anteriormente praticados com base em legislações eventualmente editadas durante a vigência do dispositivo ora suspenso. 4. Ação direta julgada prejudicada quanto ao art. 26 da EC 19/98, pelo exaurimento do prazo estipulado para sua vigência. 5. Vícios formais e materiais dos demais dispositivos constitucionais impugnados, todos oriundos da EC 19/98, aparentemente inexistentes ante a constatação de que as mudanças de redação promovidas no curso do processo legislativo não alteraram substancialmente o sentido das proposições ao final aprovadas e de que não há direito adquirido à manutenção de regime jurídico anterior. 6. Pedido de medida cautelar parcialmente deferido.33

Duas são as primordiais considerações sobre o julgamento:

  1. a decisão da Ação Direta de Inconstitucionalidade se referiu tão somente ao artigo 39 da Constituição considerando unicamente o vício formal de tramitação da Proposta de Emenda Constitucional, isto é, as demais questões acerca do tema ainda permanecem completamente abertas;

  2. a decisão tem natureza cautelar com efeitos ex nunc – retroativos. Logo, considerando que a decisão foi proferida muitos anos depois da Emenda Constitucional objeto dela, os empregados públicos contratados nesse interim continuam albergados pelo regime celetista e, na União, também pela Lei 9.962/2000.

Em consequência da decisão, a redação originária do artigo 39 foi reestabelecida, ou seja, somente um regime de contratação dos servidores dos entes da Administração Direta, autárquica e fundacional poderia ser adotado, sem a possibilidade de registros simultâneos. Em sede federal, retornou-se a obrigatoriedade da aplicação da Lei 8.112/90.

Como destaca Rafael Carvalho Rezende Oliveira, a decisão cautelar da Ação Direta de Inconstitucionalidade, ao retornar ao regime único concretizou a seguinte situação: “o regime de pessoal das pessoas jurídicas de direito público deve ser o estatutário, excepcionadas as hipóteses em que os celetistas foram contratados sob a égide do art. 39 da CRFB, com a redação da EC 19/1998.”34

Assuntos relacionados
Sobre a autora
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

OLIVEIRA, Nathalia Menezes. A necessidade de motivação para dispensa de empregado público. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 28, n. 7181, 28 fev. 2023. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/102645. Acesso em: 27 abr. 2024.

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Publique seus artigos