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Multas nos processos de controle externo

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A aplicação de multas específicas, por cada irregularidade, não se mostra a posição mais adequada e razoável.

Nos processos de controle externo dos Tribunais de Contas, as multas devem ser aplicadas, em regra, com base no nível de gravidade do conjunto de irregularidades configuradas, no grau de culpabilidade dos responsáveis, na valoração das circunstâncias fáticas e jurídicas e na posição dos Tribunal de Contas em casos análogos (conforme a Carta Magna, artigo 71, caput e IX ).

Veja-se que objeto de julgamento as contas do gestor público em geral consiste numa série de atos administrativos selecionados, e não o julgamento de cada ato per si (por força de disposição da própria Constituição da República, artigo 71, caput e incisos II a IV), bem como dos princípios gerais de auditoria, notadamente planejamento e amostragem.

Não se desconsidera também, anote-se, haver previsão nas Leis Orgânicas dos Tribunais de Contas para aplicação de multas a partir da comprovação de ilícitos específicos, a exemplo do descumprimento de determinação do Tribunal, interposição de Embargos de Declaração julgados manifestamente protelatórios, pela omissão e atrasos no fornecimento de dados e documentos à fiscalização, além de outras cominações legais, como a prevista na Lei de Crimes Fiscais para gestores que não adotam medidas para reconduzir ao limite legal o quando verificado um excesso de gastos com pessoal.

Todavia, em sede de processos de contas, a exemplo de auditorias especiais, atos de admissão de pessoal, contas anuais de gestão, apreciam-se dezenas e, às vezes, centenas de atos dos agentes públicos, há de se multar levando em conta o agrupamento de atos e omissões julgados irregulares, passíveis da referida sanção, indicando-se a culpabilidade dos agentes públicos e os nexos de causalidade.

Importante frisar que a Constituição da República preceitua de modo expresso a proporcionalidade das multas, porém sem indicar critérios pré estabelecidos para a dosimetria, o que seguido pelas Leis Orgânicas dos Tribunal de Contas, destacando-se a título meramente exemplificativo a do TCU, junto com o respectivo Regimento Interno, consoante se destaca:

Lei Orgânica do TCU - Lei nº 8.443/1992.

Capítulo V - Sanções

Art. 56. O Tribunal de Contas da União poderá aplicar aos administradores ou responsáveis, na forma prevista nesta Lei e no seu Regimento Interno, as sanções previstas neste capítulo.

Seção II - Multas

Art. 57. Quando o responsável for julgado em débito, poderá ainda o Tribunal aplicar-lhe multa de até cem por cento do valor atualizado do dano causado ao Erário.

Art. 58. O Tribunal poderá aplicar multa … aos responsáveis por:

I - contas julgadas irregulares de que não resulte débito, nos termos do parágrafo único do art. 19 desta Lei;

II - ato praticado com grave infração à norma legal ou regulamentar de natureza contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial;

III - ato de gestão ilegítimo ou antieconômico de que resulte injustificado dano ao Erário;

Regimento Interno TCU - Resolução TCU nº 155/2002

“CAPÍTULO II MULTAS

Art. 268. O Tribunal poderá aplicar multa, nos termos do caput do art. 58 da Lei nº 8.443, de 1992, atualizada na forma prescrita no § 1º deste artigo, aos responsáveis por contas e atos adiante indicados, observada a seguinte gradação:

I – contas julgadas irregulares, não havendo débito, mas comprovada qualquer das ocorrências previstas nos incisos I, II e III do caput do art. 209, no valor compreendido entre cinco e cem por cento do montante definido no caput deste artigo;

II – ato praticado com grave infração à norma legal ou regulamentar de natureza contábil, financeira, orçamentária, operacional ou patrimonial, no valor compreendido entre cinco e cem por cento do montante a que se refere o caput;

III – ato de gestão ilegítimo ou antieconômico de que resulte injustificado dano ao erário, no valor compreendido entre cinco e cem por cento do montante referido no caput;

Os indicados diplomas legais do TCU contemplam gradações proporcionais às irregularidades para se apurar as multas, em geral, a serem aplicadas aos agentes públicos. Há preceitos de multas, segmentadas num intervalo percentual, de menor valor para irregularidades configuradas em um dado processo que não sejam graves, mas ensejem sanção; de valor maior destinadas a irregularidades que causem lesão ao erário; e também de valor significativo para irregularidades graves, conquanto não causem prejuízos aos cofres públicos. Profícuo se referir aos seguintes precedentes de jurisprudência pacífica:

“A dosimetria da multa aplicada pelo TCU - respeitados os limites fixados na sua Lei Orgânica e no seu Regimento Interno e observados os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade - deve ser orientada, a cada caso, por critérios como: o nível de gravidade dos ilícitos apurados; a valoração das circunstâncias fáticas e jurídicas; a materialidade envolvida; o grau de culpabilidade dos responsáveis; a isonomia de tratamento com casos análogos.” (Acórdão 1882/2021-Plenário)

“Responsabilidade. Multa. Acumulação. Dosimetria. Nos casos em que há imputação da multa proporcional ao dano causado ao erário, as irregularidades constatadas que não contribuíram para a constituição do dano podem ser consideradas na dosimetria da multa prevista no art. 57 da Lei 8.443/1992, absorvendo a multa do art. 58 e tornando dispensável a aplicação desta de forma autônoma.” (Acórdão 1497/2022-Plenário)

“O TCU não realiza dosimetria objetiva da multa, comum à aplicação de normas do Direito Penal. Não há um rol de agravantes e atenuantes legalmente reconhecidos, de modo a possibilitar a alteração objetiva da pena prevista in abstracto. … a incidência desta sanção tem por fim repreender uma conduta específica do gestor, tendo como balizadores a isonomia de tratamento de casos análogos e a valoração das circunstâncias fáticas e jurídicas envolvidas, visando uma maior adequação punitiva. A imposição de multa com base no art. 58, II, da Lei 8.443/1992 independe de dano ao erário ou dolo nas ações dos responsáveis, bastando a chamada "culpa contra a legalidade" na prática de ato com grave infração à norma legal ou regulamentar.” (Acórdão 795/2014-Plenário)

Por outra vertente, caso se aplicassem, para cada irregularidade, multas específicas - adotando-se uma dosimetria objetiva, própria de processos criminais em que se fixam parâmetros legais para definir a sanção pecuniária aplicável -, o valor total da sanção pecuniária resultaria excessivo e desproporcional em relação a casos análogos julgados de modo semelhante há décadas pelos Tribunal de Contas, em prejuízo não apenas à razoabilidade, mas também materialmente aos jurisdicionados que seriam apenados de forma desproporcional.

Assim, em geral nos processos de controle externo decidi-se com base na culpa em sentido estrito, a responsabilidade recai sobre infrator que agiu com imprudência, imperícia e negligência, e, no processo penal no Judiciário, pelos amplos procedimentos de persecução e elevado grau de reprovabilidade das condutas, também com fundamento na culpa em sentido amplo, dolo, em que a responsabilidade incide sobre infrator que age com a intenção ou assume o risco de praticar um crime, conduta típica prevista na legislação criminal e há preceitos reconhecidos para definir as multas.

Por consequência, a aplicação de multas específicas, por cada irregularidade não se mostra a posição mais adequada e razoável. A uma, por ser aplicável à esfera penal, para apuração de atos mais reprováveis descritos em condutas típicas, em que há a individualização de condutas, multas para os ilícitos em que são avaliadas circunstâncias atenuantes e agravantes estabelecidas, assim como a condição econômica do infrator. A duas, porque a aplicação no processo de controle externo, considerando a peculiaridade de se valorar uma grande quantidade de atos de gestão, tal metodologia implicaria a aplicação de múltiplas multas, num valor final ao agente público que muito provavelmente afrontará os postulados da isonomia e proporcionalidade, bem assim a vedação ao non bis in idem.

A multa por tipo de irregularidade num determinado processo, dessa maneira, pode afrontar o Devido Processo Legal, na sua concepção formal, ao adotar preceitos da esfera penal para processo administrativo de controle, que têm diferente natureza jurídica e onde prescrevem-se “tipos” abertos de irregularidades e não se define critérios objetivos para estipular sanções pecuniárias, mas também na sua concepção substancial, por contrariar a isonomia, razoabilidade e a proporcionalidade, à medida que resultar em sanções pecuniárias em montantes elevados e que superam multas aplicadas em decisões análogas.

Evidente que esse tema deve ser objeto de reflexões e se buscar o aprimoramento das deliberações do controle externo. Nada obstante, a jurisprudência construída após a Carta Política de 88, que preconiza aos TCs a competência de julgar contas dos gestores públicos e aplicar sanções pecuniárias quando cabível em cada caso concreto, demonstra a razoabilidade e proporcionalidade de se apurar a multa aplicada, em regra, em decorrência do conjunto de infrações das contas num dado processo. Por esses prismas, profícuo citar ainda a intelecção de Dios (2008):

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“De início, vale lembrar que estamos a tratar de atos de gestão do responsável. Ou seja, mesmo que sejam verificados inúmeros atos de gestão ilegais, a penalidade deverá abranger toda a gestão ou, em outras palavras, deverá ser feito um juízo de valor acerca da gestão como um todo. A quantidade de atos reprováveis deve sim servir para intensificar esse juízo de reprovação e portanto incrementar a pena a ser aplicada, mas não para gerar multiplicidade de penas, sob pena de bis in idem. Assim, mesmo que esses atos irregulares possam ser enquadrados em diversos incisos do art. 58 da LOTCU, a multa deve ser única e limitada aos valores previstos na norma pertinente. (…) as penas devem guardar proporção com o grau de culpabilidade do responsável de forma que quanto mais reprovável for a sua conduta maior deve ser a sua pena para que sejam atingidos os desideratos dessa última. Esse grau de culpabilidade deve ser individualizado por responsável e de acordo com as circunstâncias do caso concreto."

Posto isso, configura-se que os Tribunais de Contas deliberam com o respeito ao Devido Processo Legal não apenas quanto à ampla defesa e contraditório no trâmite processual, mas também com decisões devidamente fundamentadas, descrevendo-se individualmente a responsabilidade dos agentes públicos perante irregularidades porventura caracterizadas e as sanções pecuniárias proporcionais ao conjunto de infrações.

Cabe anotar não haver jurisprudência no Judiciário no sentido de anular decisões dos TCs com fundamento de que não se segmentou multa por irregularidades em dado processo, pois vocacionados a julgar contas, em observância às atribuições conferidas pelo Constituinte Originário aos Tribunais de Contas, e não condutas típicas em modelos legais fechados próprias do Direito Penal.

Desse modo, a jurisprudência dos TCs encontra-se amparada nos princípios razoabilidade e proporcionalidade, preconizados pela própria Constituição da República e Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Lindb), especialmente no artigo 22, § 2º: “... Na aplicação de sanções, serão consideradas a natureza e a gravidade da infração cometida, os danos que dela provierem para a administração pública, as circunstâncias agravantes ou atenuantes e os antecedentes do agente.”

Assim, buscou-se evidenciar, nessas breves ponderações, a razoabilidade dos Tribunais de Contas aplicarem multas de acordo com o conjunto de irregularidades que porventura restarem caracterizadas em determinado processo, a fim de que se emitam decisões com respeito ao Devido Processo Legal e consectários isonomia, razoabilidade e proporcionalidade nos processos constitucionais de controle externo.


Referências

BRASIL, Constituição da República Federativa do Brasil, de 5 de outubro de 1998. Brasil, Congresso Nacional, [1988]. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso 03 jan 23.

BRASIL, Lei Orgânica do Tribunal de Contas da União (TCU), Lei nº 8.443, de 16 de julho de 1992. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8443.htm>. Acesso 03 jan 23.

BRASIL, Regimento Interno do TCU, de 01 de outubro de 2021. Disponível em: <https://portal.tcu.gov.br/regimento-interno-do-tribunal-de-contas-da-uniao.htm>. Acesso 05 jan 23.

BRASIL. Tribunal de Contas da União. Representação. Acórdão 1882/2021, Relator Min. Aroldo Cedraz, DO 23.08.21. Disponível em: <https://pesquisa.apps.tcu.gov.br/#/documento/jurisprudencia-selecionada/multa%2520dosimetria/%2520/DTRELEVANCIA%2520desc%252C%2520COLEGIADO%2520asc%252C%2520ANOACORDAO%2520desc%252C%2520NUMACORDAO%2520desc/4/sinonimos%253Dtrue>. Acesso em 05 jan. 2023.

BRASIL. Tribunal de Contas da União. Pedido de Reexame. Acórdão 1497/2022, Plenário, Relator Min. Benjamin Zymler, 18.07.22. Disponível em: <https://pesquisa.apps.tcu.gov.br/#/documento/jurisprudencia-selecionada/multa%2520dosimetria/%2520/DTRELEVANCIA%2520desc%252C%2520COLEGIADO%2520asc%252C%2520ANOACORDAO%2520desc%252C%2520NUMACORDAO%2520desc/1/sinonimos%253Dtrue>. Acesso em 05 jan. 2023.

BRASIL. Tribunal de Contas da União. Pedidos de Reexame. Acórdão 795/2014-Plenário, Relatora Min. Ana Arraes, DO 02/04/2014. Disponível em: <https://pesquisa.apps.tcu.gov.br/#/documento/jurisprudencia-selecionada/multa%2520dosimetria/%2520/DTRELEVANCIA%2520desc%252C%2520COLEGIADO%2520asc%252C%2520ANOACORDAO%2520desc%252C%2520NUMACORDAO%2520desc/56/sinonimos%253Dtrue>. Acesso em 05 jan. 2023.

DIOS, Lauriano Canabarro, Princípio Constitucional da Individualização da Pena no Âmbito do Tribunal de Contas da União, disponível em: <https://portal.tcu.gov.br/biblioteca-digital/principio-constitucional-da-individualizacao-da-pena-no-ambito-do-tribunal-de-contas-da-uniao.htm>. Acesso em 04 jan. 23.

BRASIL, Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Lindb), Decreto-Lei nº 4.657, de 4 de setembro de 1942. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del4657compilado.htm>. Acesso 05 jan 23.

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Sobre o autor
Alcindo Antonio Amorim Batista Belo

Bacharel em Direito e Administração pela UFPE. Pós-graduação em Administração Pública e Controle Externo pela FCAP/UPE. Advogado OAB-PE licenciado. Auditor de Controle Externo do TCE-PE.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BELO, Alcindo Antonio Amorim Batista. Multas nos processos de controle externo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 28, n. 7137, 15 jan. 2023. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/102024. Acesso em: 27 abr. 2024.

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