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Propriedade industrial e trade dress

09/10/2022 às 14:35
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Comentamos o alcance do trade dress a partir do caso grand gatêau, envolvendo disputa entre duas empresas que ofereciam um produto com receita semelhante em seu cardápio.

Introdução    

A Propriedade Industrial é tema reconhecido pelo ordenamento jurídico brasileiro, tendo seus fundamentos no artigo 5º, inciso XXIX, da Constituição Federal, que garante privilégio temporário de utilização de inventos industriais aos seus autores. Outrossim, referido dispositivo abarca, ainda, proteção a marcas e empresas, com vistas à proteção ao desenvolvimento tecnológico do país.

Os direitos e obrigações relativos à propriedade industrial estão disciplinados, em nosso país, pela lei 9279/96, bem como encontram respaldo em diferentes Tratados Internacionais ratificados pelo Brasil, tais como o Acordo sobre aspectos dos direitos de propriedade intelectual relacionados ao comércio (Decreto 1355/94) e o Tratado de cooperação de matéria de patentes (decreto 81742/78), entre outros.

Trata-se, portanto, de temática relevante, ensejando esforços legislativos no sentido de assegurar direitos decorrentes das criações e inovações tecnológicas pelos brasileiros, com vistas ao desenvolvimento econômico do país.

Patentes, marcas e trade dress

Nesta seara, merece destaque a proteção legal às patentes, dada pela lei 9279/96,  sendo este um instrumento que garante ao seu titular o direito exclusivo de explorar sua invenção por um prazo determinado (VENOSA & RODRIGUES, 2018). O pedido de concessão de patente deve ser feito ao INPI (Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI), que julgará sua pertinência e validade a partir das disposições legais. Referida legislação prevê, ainda, a adoção de medidas jurídicas contra os que violarem referido direito de uso do objeto patenteado.

 Outro bem jurídico tutelado pela lei 9279/96 é a marca, considerada como elemento de identificação de bens e produtos. Possui natureza imaterial e valor econômico, exercendo a função de distinguir entre os produtos que apresentem semelhança mútua (NEGRÃO, 2020).

Para alguns doutrinadores, a marca pode ser considerada uma espécie de assinatura do empresário, estando ligada à imagem dos produtos ou serviços no mercado e, portanto, à sua reputação. Tem, portanto, importância destacada no campo da propriedade industrial (VENOSA & RODRIGUES, 2018).

 Conforme postula a doutrina (NEGRÃO, 2020), há alguns princípios ligados à proteção jurídica das marcas, tais como territorialidade (os direitos decorrentes são válidos em todo o território nacional), especialidade (a proteção recai apenas sobre aquela atividade específica) e sistema atributivo (depende de registro válido).

Há, no entanto, exceções a referidos princípios das marcas, tal como ocorre com o fenômeno da marca notoriamente conhecida, que recebe proteção ainda que não registrada, bem como quanto às chamadas marcas de alto renome, que recebem proteção em mercados para além do seu próprio segmento (NEGRÃO, 2020).

No campo da identificação e reconhecimento das marcas e produtos pelo mercado, merece atenção o conceito de trade dress. Trata-se, conforme Martins e Ibañez (2018), da roupagem com a qual o produto ou estabelecimento são apresentados ao mercado, identificando-o e diferenciando-o dos demais. Referido elemento imaterial não recebe registro no INPI, tampouco existe previsão legal específica que preveja como ato ilícito a violação do mesmo, motivos pelos quais alguns autores consideram ser sua proteção frágil em nosso ordenamento jurídico.

Como alternativa para reprimir violações ao trade dress, destaca-se o fato do Brasil ser signatário da Convenção da União de Paris (1880), que prevê o comprometimento do país no combate a formas de concorrência desleal e contrárias à boa-fé nas relações comerciais (MARTINS & IBAÑEZ, 2018). Com isso, para pleitear a proteção de seu bem, o empresário necessitará recorrer à Justiça e dotar o julgador de convencimento de que há deslealdade comercial.

Em se tratando especificamente da repressão à concorrência desleal, observa-se que, em nosso ordenamento jurídico, não é um dos ramos da Propriedade Industrial nem gera direito real (BALDISSERA, 2015). Conforme referida autora, é um princípio geral que remete ao Direito Penal e Civil, e para que haja seu reconhecimento, é preciso que estejam presentes elementos como: as partes precisam ser concorrentes entre si, o ato questionado deve ter o condão de provocar confusão entre os produtos, serviços ou estabelecimentos, prejudicar a imagem ou causar desvio de clientela do concorrente, entre outros.

Neste sentido, os artigos 207 e 209 da lei 9279/96 podem ser mobilizados para demandar ação judicial em âmbito civil, com vista ao ressarcimento de prejuízos (BALDISSERA, 2015).

No campo da proteção da Propriedade Industrial, não raro, ocorrem embates jurídicos, inclusive havendo temas bastante polêmicos, tais como os retratados no caso a seguir.

O caso do Grand Gatêau

PROPRIEDADE INDUSTRIAL  Ação declaratória cumulada com pedido de indenização  Sentença que julgou parcialmente procedente a demanda, para declarar a inexistência de obrigação da autora de se abster de utilizar a palavra gateau em sua sobremesa denominada Freddie Gateau, e de servir tal produto com o visual e utensílios especificados na inicial, bem como para julgar improcedente a reconvenção  Insurgências de ambas as partes que não merecem prosperar  Requerida que, mediante pedido de registro de marcas mistas e nominativas com as expressões Grand Gâteau Paris 6 e Grand Gâteau P6 buscou, de maneira oblíqua, obter a exclusividade de um invento, consistente em receita culinária  Receita que não se enquadra nessa categoria, nem atende aos requisitos legais exigíveis  Inexistência, ademais, de trade dress ou conjunto de imagem na sobremesa da ré passível de proteção  Simples colocação de sorvete e creme sobre um petit gateau não é dotado de originalidade e nem pode ter exclusividade  Pedido de indenização por danos morais formulado pelos autores que tampouco merece acolhida  Imputação, pela ré, das práticas de violação de direito marcário e concorrência desleal que consistiu em mero exercício regular de direito  Sentença mantida  Recursos não providos. 

(TJ/SP, Apelação Cível no 1114716-29.2014.8.26.0100, 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, Rel. Des. Francisco Loureiro, j. 21 de setembro de 2016.)

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O caso em questão envolveu uma disputa entre dois estabelecimentos diferentes, que ofereciam um produto alimentício semelhante em seu cardápio, sendo que uma delas pleiteou o registro de marcas mistas e nominativas em relação à referida iguaria e almejava limitar o uso de um termo constante em referida marca pela concorrente.

A decisão judicial proferida foi no sentido de não reconhecer concorrência desleal no caso em tela, por não considerar ser tal iguaria uma inovação, tampouco haver conjunto de imagem a ser passível de proteção judicial neste caso.

Analisando-se o caso em questão, observa-se que o produto alvo da disputa é um prato chamado petit gâteau, uma sobremesa bastante conhecida e difundida, inclusive no Brasil, onde está presente em cardápios de muitos bares e restaurantes e, inclusive, presente na culinária doméstica de muitas famílias. Deste modo, não se trata, efetivamente, de uma criação original que se pretenda alvo de registro de patente que garanta direito exclusivo de exploração a ser requerido neste caso.

Quanto à questão do termo gâteau, alvo de disputa entre as marcas em litígio, trata-se de um termo de origem francesa, que significa bolo, e remete ao nome comumente utilizado para designar a sobremesa independente do estabelecimento que a oferece. Assim sendo, é possível ponderar que, apesar do registro da marca pretendido por uma das litigantes, não caberia exclusividade no uso de referido termo, não sendo este o elemento nominativo que o identifica em relação aos demais petits gâteaus oferecidos em outros estabelecimentos, mas sim os termos que remetem aos nomes dos respectivos restaurantes (no caso, Grand Gâteau Paris 6 e Freddie Gâteau), o que permite diferenciá-los entre si.

No entanto, quanto à questão da apresentação visual da sobremesa (trade dress), dentro do que se pode depreender a partir do que foi descrito no inteiro teor do julgado, parece haver um elemento característico que trouxe alguma originalidade. Habitualmente, serve-se, sobre o bolinho de chocolate, sorvete de creme e calda, no entanto, pela descrição feita e por buscas realizadas na internet com base no nome da mesma, é possível constatar que, ao invés de apenas sorvete, o Paris 6 acrescentou um picolé (outra iguaria, com outras características e outra apresentação visual).

Assim, não se trata da forma mais comum e habitual de servir e apresentar petits gâteaus, e sim de uma variação específica da mesma. Assim sendo, sob este aspecto, haveria espaço para questionamento jurídico acerca de uma possível confusão entre os produtos oferecidos, e, consequentemente, deslealdade comercial.

Por outro lado, uma rápida busca na internet também revelou que há diversos sites que já disponibilizam a receita e/ou maneira de execução do produto, havendo indícios de que referida sobremesa, nesta forma de apresentação, já se encontra em domínio público (GRAND GATEAU ESTILO PARIS 6, 2021).

Considerações finais

Trata-se, portanto, de tema polêmico, sobretudo dada a ausência de previsão legal expressa no que tange à violação de trade dress. Por essa razão, este tipo de decisão abre margens a elucubrações diversas, estando especialmente sujeita, portanto, à subjetividade do julgador. Alguns autores sugerem a possibilidade de adoção de critérios mais objetivos no que tange à averiguação de existência de concorrência desleal em violações de trade dress, visando disciplinar o tema em nossa legislação.

Por fim, pode-se ponderar que a questão do trade dress, enquanto bem a ser juridicamente protegido em nosso ordenamento jurídico, é tema de grande importância no campo do Direito Empresarial, relacionando-se a preceitos constitucionais tais como a livre iniciativa e a livre concorrência, merecendo, portanto, a atenção de doutrinadores e legisladores para sua adequada formalização.

Referências 

BALDISSERA, B. A concorrência desleal na violação de trade dress e de marca. Monografia de conclusão de curso, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2015, 128p.

GRAND GATEAU ESTILO PARIS 6. Ana Maria Brogui, 2018. Disponível em: < https://www.anamariabrogui.com.br/receita/grand-gateau-estilo-paris-6-0227>, acessado em: 22 de out. de 2021.

MARTINS, K. P. ; IBAÑEZ, A. P. A proteção oferecida pelo sistema de propriedade industrial ao trade dress no Brasil. Justiça & Sociedade, v. 3, n. 1, 2018, p. 83-126.

NEGRÃO, R. Curso De Direito Comercial e de empresa: teoria geral da empresa e direito societário. Volume 1 16. ed. São Paulo : Saraiva Educação, 2020.

VENOSA, S. S.; RODRIGUES, C.  Direito empresarial. 8. ed. São Paulo: Atlas, 2018.

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Sobre a autora
Nicole Medeiros Guimarães

Acadêmica de Direito pela UNAERP, psicóloga judiciária no Tribunal de Justiça de São Paulo, doutora e mestre em Psicologia pela USP-Ribeirão Preto.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GUIMARÃES , Nicole Medeiros. Propriedade industrial e trade dress. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 27, n. 7039, 9 out. 2022. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/100552. Acesso em: 27 abr. 2024.

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