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A internação compulsória e o conflito entre os direitos fundamentais do dependente químico

A internação compulsória e o conflito entre os direitos fundamentais do dependente químico

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A Lei nº 13.840/2019 facilita a internação involuntária sem autorização judicial, em conflito com os direitos fundamentais do dependente químico.

Resumo: O presente artigo tem como objetivo analisar, pelo método hipotético dedutivo, como a internação compulsória funciona atualmente no Brasil, também, como é tratado o indivíduo que possui algum tipo de transtorno mental pela sociedade e pelo ordenamento jurídico brasileiro. Este artigo procura demonstrar e verificar a colisão de direitos fundamentais assegurados constitucionalmente, sendo, o direito à liberdade e o direito à saúde, para que por meio da ponderação de interesses possa haver uma solução que seja eficaz para todas as partes envolvidas. É finalidade deste artigo também a análise da nova lei nº 13.840 de 2019 que retirou o livre arbítrio e facilitou com que o subordinado fosse internado compulsoriamente. Por fim, o presente artigo, relatará sobre os aspectos positivos e negativos desse novo método de internação compulsória para então concluir qual aspecto é mais significativo e qual a medida de segurança é considerada adequada para o dependente químico, através do método dedutivo, por meio de entrevista com especialista do assunto, pesquisa bibliográfica e artigos científicos.

Palavras-chave: Internação Compulsória, Dependência Química, Direitos Fundamentais, Direitos Humanos, Direito Constitucional.


INTRODUÇÃO

O dependente químico já existia no meio social desde os primórdios da humanidade, entretanto, apenas no século XX foi definido pela Organização Mundial de Saúde (OMS) o conceito de dependência química como uma doença de transtorno mental, que é causada por alterações no funcionamento do cérebro. Com isso, os indivíduos passaram a ser isolados quando a segurança e ordem da sociedade era comprometida, autorizado pelo decreto da época de nº 1.132/1903 onde era outorgado apenas pela autoridade pública ou particular a internação do indivíduo, sem o consentimento dos familiares.

O abuso de drogas vem sendo debatido por muito tempo porque gerou e ainda gera discussões sobre várias áreas do conhecimento, principalmente sobre o ser humano e sobre como lidar com a dependência química, como tratar de forma benéfica para que o dependente químico possa ser reiterado ao meio social de forma saudável.

O objetivo desse artigo é analisar e mostrar de acordo com o ordenamento jurídico brasileiro, como há conflitos entre os direitos fundamentais para casos específicos, como o do presente tema vem trazendo, também têm como finalidade, buscar uma solução que seja viável e legal para que possa surtir os efeitos desejados tanto para o convívio social quanto para o subordinado.

O artigo se delimita em um questionamento específico: até onde vai o direito à liberdade do indivíduo e até onde se prioriza o direito à saúde do dependente químico?

Para isso, é necessário entender um pouco sobre o início da internação compulsória no Brasil; mais tarde, analisar a nova lei vigente nº 13.840 de 2019 e se existe um retrocesso por sua omissão em relação à internação compulsória. Abordam-se alguns dos aspectos positivos e negativos ao dependente químico, seja durante ou após o processo, tendo em vista que muitas das vezes o usuário abandona o tratamento, retornando ao mundo das drogas quando é internado voluntariamente. Por último, comenta-se a medida de segurança cabível para o dependente químico.


1. INTERNAÇÃO COMPULSÓRIA

A priori, é necessário entender sobre o dependente químico, que tem como definição uma pessoa que abusa de substâncias psicoativas. A dependência química já se fazia presente desde o início da humanidade e em diversas culturas. Os entorpecentes muita das vezes tinham como finalidade a religião, a cultura, servia para medicamentos, para a cura, tratamentos, relaxantes e também o para uso recreativo, onde o indivíduo buscava por prazeres e distanciamento do seu estado sóbrio e são. Relatos1:

Há cerca de 5 mil anos, uma tribo de pigmeus do centro da África saiu para caçar. Alguns deles notaram o estranho comportamento de javalis que comiam uma certa planta. Os animais ficavam mansos ou andavam desorientados. Um pigmeu, então, resolveu provar aquele arbusto. Comeu e gostou. Recomendou para outros na tribo, que também adoraram a sensação de entorpecimento. Logo, um curandeiro avisou: havia uma divindade dentro da planta. E os nativos passaram a venerar o arbusto. Começaram a fazer rituais que se espalharam por outras tribos. E são feitos até hoje. A árvore Tabernanthe iboga, conhecida por iboga, é usada para fins lisérgicos em cerimônias com adeptos no Gabão, Angola, Guiné e Camarões. Há milênios o homem conhece plantas como a iboga, uma droga vegetal. O historiador grego Heródoto anotou, em 450 a.C., que a Cannabis sativa, planta da maconha, era queimada em saunas para dar barato em frequentadores. O banho de vapor dava um gozo tão intenso que arrancava gritos de alegria. No fim do século 19, muitos desses produtos viraram, em laboratórios, drogas sintetizadas. Foram estudadas por cientistas e médicos, como Sigmund Freud(...).

Quando se fala em tratamento médico específico para o transtorno mental, podemos perceber que o valor dado para essa problemática foi muito tardio, como por exemplo, no Brasil, onde o primeiro hospital psiquiátrico deu início a suas atividades em 1841 (NOVAES, 2014, p. 343).

Nessa época ainda deixava muito a desejar tanto para a sociedade quanto para o próprio indivíduo que necessitava de tratamentos e especialistas que soubessem medicar, tratar e até mesmo explicar para a família o que acontecia com o paciente, qual era o diagnóstico e o fato gerador, porque se hoje ainda existem algumas pessoas, e principalmente os familiares, que ignoram a existência de transtornos mentais, antigamente era bem mais comum que não fosse levado a sério o tratamento do subordinado.

O dependente químico passou a ser reconhecido expressamente como doente mental em 1938, pelo Decreto-Lei nº 891, que é a Lei de fiscalização de entorpecentes. Além disso, a norma também proibiu o tratamento à domicílio, autorizando a internação forçada se caso fosse propício a favor da sociedade:

Decreto-lei nº 891/1938, art. 27: A toxicomania ou a intoxicação habitual, por substâncias entorpecentes, é considerada doença de notificação compulsória, em caráter reservado, à autoridade sanitária local.

Decreto-lei nº 891/1938, art. 28: Não é permitido o tratamento de toxicômanos em domicílio.

§ 1º A internação obrigatória se dará, nos casos de toxicomania por entorpecentes ou nos outros casos, quando provada a necessidade de tratamento adequado ao enfermo, ou for conveniente à ordem pública. Essa internação se verificará mediante representação da autoridade policial ou a requerimento do Ministério Público, só se tornando efetiva após decisão judicial.

§ 2º A internação obrigatória por determinação do Juiz se dará ainda nos seguinte; casos : (...)

Com a evolução social e psiquiátrica, passou a surgir critérios para que houvesse a internação e foi dividida em espécies. Ao entrar em vigor a lei nº 10.216 de seis de abril de 2001, que dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtorno mental, ficou classificado em três espécies de internação: internação voluntária (aquela que se dá com o consentimento do usuário), internação involuntária ( aquela que se dá sem o consentimento do usuário e a pedido de terceiro ) e internação compulsória (aquela determinada pela Justiça), atualmente, está em vigor a nova lei nº 13.840/19, que alterou os tipos de internação:

lei nº 10.216/2001 art. 6: A internação psiquiátrica somente será realizada mediante laudo médico circunstanciado que caracterize os seus motivos.

Parágrafo único. São considerados os seguintes tipos de internação psiquiátrica:

I - internação voluntária: aquela que se dá com o consentimento do usuário;

II - internação involuntária: aquela que se dá sem o consentimento do usuário e a pedido de terceiro; e

III - internação compulsória: aquela determinada pela Justiça.

Existe um longo caminho a se percorrer até que seja decidido pela internação compulsória de um indivíduo, seria este o último estágio para trazer um dependente químico de volta a sua sanidade.

Em uma entrevista para o Jornal Minas, o Presidente do conselho político de drogas de Minas Gerais e Psiquiatra especialista na área, Aloísio Andrade destacou alguns pontos fundamentais sobre a internação compulsória. Explicou que a família tem o direito de tentar outros recursos para tão somente recorrer a internação em último recurso, um dos fatores para que a internação seja feita é o risco eminente de sua própria vida ou de terceiros. Andrade ainda acrescenta que não poderá ser internado um dependente químico que a priori não foi encaminhado a um tratamento ambulatorial, e deu um exemplo: não pode internar uma pessoa que não foi tentado um tratamento ambulatorial da mesma forma que só se amputa uma pessoa quando corre o risco de vida. Se a única saída for a internação compulsória, também há um período de um mês para que seja feita a desintoxicação.

Apesar de toda a invasão e falta de liberdade do indivíduo, não há só pontos negativos, dolorosos e desumanos, existem também os pontos positivos nesse processo de recuperação.

A Internação para pessoas com dependência química é um recurso que pode tirar a liberdade por um tempo, mas pode faz com que a pessoa deixe de ser prisioneiro das drogas, principalmente aquelas pessoas que realmente tem transtornos mentais e acabam abusando na quantidade que usa pessoas que são extremamente intolerantes e sensíveis às drogas, mas não sabem, até que ao perceber, já está entregue ao vício.

A dependência química é considerada uma doença crônica que também afeta menores de idade, e a Lei nº 8.069/1990 do Estatuto da Criança e do Adolescente também prevê sobre o tema, o tratamento de internação é requerido pelo Ministério Público conforme o artigo 101, incisos V e VI da Lei:

Art. 101. Verificada qualquer das hipóteses previstas no art. 98, a autoridade competente poderá determinar, dentre outras, as seguintes medidas:

Inc. V. requisição de tratamento médico, psicológico ou psiquiátrico, em regime hospitalar ou ambulatorial;

Inc. VI. Inclusão em programa oficial ou comunitário de auxílio, orientação e tratamento a alcoólatras e toxicômanos.

O artigo 136, inciso I, ECA, traz sobre os casos inusitados sobre a internação da criança ou do adolescente, que poderá ser providenciada pelo Conselho Tutelar sem obrigatoriedade Judicial.

Outro fator que prejudica o Brasil em relação às drogas e o que elas causam para os dependentes químicos é o nível de pessoas com transtorno de ansiedade que fazem o uso dessas substâncias. De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS) O Brasil ocupa o primeiro colocado no ranking dos países mais ansiosos do mundo, com 9,3% da população. O indivíduo que não sabe por falta de laudo médico de suas limitações, acaba tornando-se dependente químico por fatores biológicos, agravando mais ainda a sua sanidade e logo seu direito de escolher, decidir ou perceber que precisa de ajuda, que mais uma vez fica destinado às decisões contra a sua vontade. A partir desse momento, o dependente químico entra em um tratamento severo para sua recuperação e junto disso existirão aspectos benéficos ou totalmente prejudiciais para a saúde mental desse indivíduo, que podem trazer o seu equilíbrio mental de volta ou gerar traumas permanentes.

1.1. O Dependente Químico

O autor Lima Barreto em um texto autobibliográfico2, contou a sua experiência com o alcoolismo e fala também sobre como foi desafiadora a sua internação no hospício, no início do século XX, que ficava localizado no Rio de Janeiro, sua obra narra sobre um espelho lúcido da loucura, explorando os limites da sanidade.

Quando, pela primeira vez, me recolheram ao Hospício, de fato a minha crise era profunda e exigia o meu afastamento do meio que me era habitual, para varrer do meu espírito de alucinações que o álcool e outros fatores lhe tinham trazido. Durou ela alguns dias seguintes; mas ao chegar ao Pavilhão, já estava quase eu mesmo e não apresentava e não me conturbava a mínima perturbação mental. Em lá chegando tiraram-me a roupa que vestia, deram-me uma da casa, como lá se diz, formei em fileira ao lado de outros loucos, numa varanda deram-me uma caneca de mate e grão e, depois de ter tomado essa refeição vesperal, meteram-me num quarto forte.3

A obra aborda uma narrativa com o objetivo de demonstrar a perspectiva do louco que se encontra em um hospício e traz o questionamento entre a proteção e a intervenção. Essa obra de Barreto foi mencionada nos trâmites da Lei de Saúde Mental.4

Não me incomodo muito com o hospício, mas o que me aborrece é essa intromissão da polícia na minha vida. De mim para mim, tenho certeza que não sou louco, mas devido ao álcool, misturado com toda espécie de apreensões que as dificuldades de minha vida material há 6 anos me assoberbam, de quando em quando dou sinais de loucura: delírio. (Lima Barreto, 1993.)

Para refletir sobre o tema abordado, é necessária que a leitura seja aberta a complexidade, para que seja compreendido o uso problemático de drogas, porque existem vários fatores para que hoje esse assunto seja tão estudado, um deles é a questão social, que se tornou um grande desafio para a saúde5, logo, causa preocupação significativa para a segurança pública.6 Uma pesquisa apurada pelo Datafolha em 2017, apontou que 80% da população paulista questiona sobre a denominada Cracolândia, e defendem a possibilidade da internação compulsória. Porém, mais de 70% afirma que as medidas tomadas pela prefeitura no local, não são suficientes para que haja o abandono do uso de drogas, pois não existe a força de vontade por parte dos usuários.7

O Conselho Federal de Medicina registrou sobre o estudo sobre crack que a estimativa de dependentes de álcool foi de 12,3%, o que corresponde à população de 5.799.005 pessoas. Já para o tabaco, estima-se o número de 4.700.635 dependentes, isto é, 10,1% da população. Essa pesquisa mostrou que entre os estudantes, o álcool e o tabaco são as drogas mais utilizadas na vida, em todas as capitais, e o índice pode variar dependendo da região do país.

Em 2007, foram realizadas 135.585 internações associadas a transtornos mentais e comportamentais decorrentes do uso de drogas em todo o Brasil, a pesquisa apontou que 69% das internações foram devido ao uso de álcool, 23% devido ao uso de múltiplas drogas e 5% devido ao uso de cocaína.

A estimativa da OMS para o Brasil é que existam 3% de usuários, o que implicaria em 6 milhões de brasileiros. O Ministério da Saúde trabalha com 2 milhões de usuários e estudo da Unifesp patrocinado pela SENAD demonstra que um terço dos usuários encontra a cura, outro terço, mantém o uso e outro terço morre.8

É necessário que haja a diferenciação entre o uso ou consumo do chamado, uso nocivo ou abusivo quando se trata de uma internação sem o consentimento de um adulto. São três níveis ou formas de relação com as drogas: o uso, abuso (ou uso nocivo) e a dependência9. O abuso envolve o dano real à saúde física ou mental do usuário10, já a dependência constitui um nível mais avançado. O Conselho Federal de Medicina definiu:

  • USO: qualquer consumo de substâncias, para experimentar, esporádico ou episódico;

  • ABUSO ou USO NOCIVO: consumo da SPA (substância psicoativa) associado a algum prejuízo (biológico, psíquico ou social);

  • DEPENDÊNCIA: Consumo sem controle, geralmente associado a problemas sérios para o usuário - diferentes graus.11

A CID-10 (Classificação Internacional de Doenças) e o DSM-V (Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders) ou Manual Diagnóstico e Estatístico de transtornos Mentais, constituem referências fundamentais sobre os diferentes níveis de uso de substâncias psicoativas. Na CID-10 é onde se identifica a categoria Transtornos mentais e comportamentais devidos ao uso de substâncias psicoativas, a qual corresponde à classificação F.10 a F.19, com subitens, dentro dessa faixa, que assinalam tipo de substância e quadro clínico.12 (Gabriel Schulman 2020, p.10). Para que sejam diferenciados os níveis de uso e a forma de se relacionar com drogas, é preciso que veja como cada organismo reage e quais são os impactos produzidos pela substância, a partir disso é caracterizado como: intoxicação aguda, uso nocivo à saúde e síndrome de dependência.13

As complicações podem ser físicas (hepatite consequente a injeções de droga pela própria pessoa) ou psíquicas (episódios depressivos secundários a grande consumo de álcool). Abuso de substância psicoativa. (OMS, 2009, p. 313)

A CID-10 ainda classifica a síndrome de abstinência, que decorre da falta de uma substância de uso prolongado juntamente com delirium que causa perturbações de consciência e da atenção, da percepção e do pensamento, da memória, do comportamento psicomotor, das emoções e do ritmo de sono, transtorno psicótico, síndrome de amnésia, transtorno psicótico residual, entre outras categorias. (OMS, 2009, p.308).

[...] se caracteriza pela presença e alucinações (tipicamente auditivas, mas frequentemente polissensoriais), de distorção das percepções, de idéias delirantes (frequentemente do tipo paranóide ou persecutório), de perturbações psicomotoras (agitação ou estupor) e de afetos anormais, podendo ir de um medo intenso ao êxtase. (OMS, 2009, p.314)

Dois aspectos marcantes são a tolerância e a abstinência. A tolerância qualifica a necessidade de doses progressivamente maiores ou a redução dos efeitos com manutenção de determinada quantidade. Já a abstinência aponta para os efeitos decorrentes da cessação de uso, como tremor, insônia, náuseas, alucinações, entre outros sintomas. (APA, DSM-V, 2014, p. 500)

De acordo com pesquisas feitas por David Nutt e Leslie King, as drogas mais danosas aos próprios usuários são nesta ordem: heroína, crack, cocaína e metanfetamina. Em relação aos impactos para terceiros, é na ordem: álcool, crack, cocaína14 e heroína. E chegaram à conclusão que as drogas mais perigosas tanto para o usuário quanto para terceiros, são, nessa ordem: álcool, heroína e crack cocaína15.


2. O CONFLITO ENTRE DIREITOS FUNDAMENTAIS NO ORDENAMENTO JURÍDICO

No Brasil a reforma psiquiátrica deu início na década de setenta, e devido à falta de direitos básicos em várias demandas dos hospitais, sendo pela falta de cuidados básicos, como a higiene ou no tratamento incompatível, com isso, iniciou-se um movimento que questionava sobre esses direitos básicos que leva a dignidade da pessoa humana, com a finalidade de garantir esses direitos aos pacientes.

O grupo em destaque da época se denominava Movimento de Trabalhadores em Saúde Mental (MTSM), tinham o objetivo de denunciar os casos de violência e tortura nos manicômios, a corrupção do sistema e a mercantilização da loucura, com a finalidade de aumentar a rede de atendimento extra-hospitalar e reduzir os leitos psiquiátricos no Brasil, a favor de uma modificação do modelo de atendimento, (OLIVEIRA, 2013, p. 50):

Apesar dos equívocos e acertos na construção de um novo paradigma para a saúde pública, a loucura ainda é usada como justificativa para a manutenção da violência e da medicalização da vida. É como se a existência pudesse ser reduzida à sua dimensão biológica e para todos os sentimentos existisse um remédio capaz de aliviar sintomas e de transformar realidade em fuga. ARBEX, Daniela. Holocausto brasileiro.

A principal motivação dos antimanicomiais era com relação ao tratamento adequado e humano que deveria ser dado a essas pessoas que até hoje são excluídas da sociedade, porque com isso, até mesmo a sociedade evoluiria, pois existem casos que quando há um tratamento adequado intensivo, traz o dependente químico não só de volta a sanidade mas também a sociedade.

Uma das propostas dos manicômios era controlar e reprimir os trabalhadores que perderam a capacidade de atender a sociedade capitalista de produção, com a intenção de que eles voltassem a produzir da maneira satisfatória, com isso, era utilizada a camisa de força.

A criação dos hospícios tinha, em sua essência, o objetivo de controlar e reprimir trabalhadores que perderam a capacidade de atender aos interesses capitalistas de produção, daí a necessidade de utilização de camisas-de-força alienantes, visando devolver estes trabalhadores à linha de produção. A proposta de Basaglia foi então tratar os portadores de transtorno mental sem excluir, isto é, fora dos hospícios, criando núcleos de atenção psicossocial (NAPS) e centros de atenção psicossocial (CAPS), viabilizando o tratamento sem a internação. Célia Barbosa Abreu e Eduardo Manuel Val (2013, p. 10.569).

O Sistema Nacional de Políticas sobre Drogas (SISNAD) regulamentou a favor do dependente químico para que ele obtivesse respeito sobre os direitos fundamentais, principalmente sobre a autonomia e à liberdade, a partir da nova Lei Antidrogas nº 11.343, entretanto, mantendo as medidas de tratamento para o paciente, contudo, é notória que a Lei da Reforma Psiquiátrica, garantiu ao dependente químico a inviolabilidade de seus direitos fundamentais.

A dignidade da pessoa humana, no artigo 1º da Constituição Federal de 1988, é indicada como fundamento da República Federativa do Brasil. Logo em seguida, no artigo 5º, caput, a inviolabilidade do direito à vida e do direito à liberdade é garantido a todos. Além disso, o direito à saúde também é garantido à todos no artigo 6º e ainda, previsto no artigo 196 da Constituição. É previsto no artigo 23, II, a competência da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, cuidar da saúde das pessoas portadoras de deficiência, tendo em vista, que não haja limitações em relação ao tipo de deficiência, incluindo a proteção aos portadores transtorno mental em geral e especificamente, dos dependentes químicos. A competência para legislar sobre a defesa da saúde é da União, dos Estados e do Distrito Federal, previsto no artigo 24, XII, da Constituição Federal de 88:

Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

III - a dignidade da pessoa humana;

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes;

Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 90, de 2015)

Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.

Art. 23. É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios:

II - cuidar da saúde e assistência pública, da proteção e garantia das pessoas portadoras de deficiência;

Art. 24. Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre:

XII - previdência social, proteção e defesa da saúde;

Sobre esse tema polêmico que é a internação compulsória, surgem algumas opiniões de estudiosos. Como toda luta, há um lado oposto, existem pessoas que apoiam o lado mais radical, e acreditam que a internação forçada compulsoriamente seja a única alternativa viável para que o indivíduo melhore, ou apenas defendem essa tese para descartar pessoas com transtornos mentais. Essas pessoas colocam o direito à vida como superior ao direito à liberdade com reforço da ponderação. Existem ainda, pessoas que alegam que o dependente químico não se encontra em um estado onde há capacidade para usufruir do seu livre arbítrio, pois chega um momento em que o usuário de drogas está totalmente fora da realidade, fato que prejudicaria a sua escolha, ou divergência da escolha que ele tomaria se estivesse em perfeito estado de sanidade, ou perto disso, com isso, o ideal para o indivíduo seria um auxílio médico, sem tempo para saber a sua decisão. Quando se fala em menor de idade, já é dever do Estado resguardar e dar proteção integral para que o menor saia da zona de risco e vulnerabilidade, para que seja preservada a sua saúde16 e para que o mesmo seja afastado do ambiente prejudicial onde vive.

Há também, quem defende o fim desse tratamento, acreditando que seja contra os direitos fundamentais o indivíduo, tendo como fator lesionado o direito de liberdade de ir e vir, e ainda alegam que o dependente químico por passar um bom tempo internado, acaba ficando alienado, levando em consideração um sentimento de mortificação.17

Segundo Dartiu Xavier da Silveira, psiquiatra e coordenador do Programa de Orientação e Atendimento a Dependentes (PROAD), apenas 2% dos pacientes que foram internados compulsoriamente, conseguiram se recuperar totalmente, sendo 98% reincidentes. (LOCCOMAN, 2012, p. 20).

Existe ainda, estudiosos que defendem que se deve existir o tratamento, sendo ele realizado dentro das normas constitucionais, pelos princípios dos direitos humanos e somente quando houver a possibilidade de um tratamento extra-hospitalar adequado, para que o paciente seja tratado da maneira correta, plena e digna.18

Baseado nesse conflito constitucional é natural que surjam vários questionamentos sobre o que seria ideal, legal e moral para o indivíduo que está excluído da sociedade, sem rumo e dependo dos entorpecentes, e que em muitos dos casos não tem um amparo familiar ou de um terceiro.

O princípio da dignidade da pessoa humana está previsto no art. 1º, III da Constituição de 1988, como já mencionado, sendo um princípio fundamental da República brasileira e norma constitucional que atravessa todo o ordenamento jurídico, abrevia bem o espírito constitucional ao elevar o princípio da dignidade da pessoa humana como fundamento da República. Sendo assim, um dos dois deverá prevalecer para que as medidas corretas sejam tomadas, para a melhor compreensão sobre esses princípios e sobre essa ciência do direito. Como descreve em sua afirmação o Jurista Miguel Reale (2002, p.303) sobre como proceder nesses casos.

Princípios são verdades fundantes de um sistema de conhecimento, como tais admitidas, por serem evidentes ou por terem sido comprovadas, mas também por motivos de ordem prática de caráter operacional, isto é, como pressupostos exigidos pelas necessidades da pesquisa e da praxis.

O que se pode notar é que não é difícil princípios jurídicos entrarem em conflito, eles estão doutrinados para serem úteis em questões práticas de casos concretos. Apesar disso, deve-se mostrar eficiência ao resolver pendências entre os seres humanos, pois cada um está amparado por um princípio jurídico de forma divergente. De acordo com Humberto Ávila19 (2012 p. 139), os princípios são estados ideais a serem promovidos ou conservados o que significa que apesar das incompatibilidades, um princípio não poderá anular o outro. Luís Roberto Barroso20 (2001, p. 27) também se pronuncia sobre as colisões constitucionais:

Princípios e direitos previstos na Constituição entram muitas vezes em linha de colisão, por abrigarem valores contrapostos e igualmente relevantes, como por exemplo: livre iniciativa e proteção do consumidor, direito de propriedade e função social da propriedade, segurança pública e liberdades individuais, direitos da personalidade e liberdade de expressão.

O que comprova que os princípios constitucionais não são absolutos, mas todos têm a sua valoração. O tema fica ainda mais delicado, tendo em vista que ao internar um dependente químico não há um consentimento do indivíduo, gerando o conflito entre os dois direitos do ser humano, pois nem todos os princípios exercem a mesma função, já dizia Humberto Ávila (2012 p.13321).

Em primeiro lugar, nem todos os princípios exercem a mesma função: há princípios que prescrevem o âmbito e o modo da atuação estatal, como os princípios republicano, federativo, democrático, do Estado de Direito, e há princípios que conforma o conteúdo e os fins da autuação estatal, como os princípios do Estado Social, da Liberdade e da propriedade. Se os princípios dizem respeito a diferentes aspectos da atuação estatal, a relação entre eles não é de concorrência, mas de complementação. Metaforicamente eles não se ombreiam uns com os outros, mas se imbricam em relações diversas de forma-conteúdo e gênero-espécie. Não se pode, pois falar em oposição ou em conflito, mas apenas em complementariedade. Em segundo lugar, nem todos os princípios se situam no mesmo nível: há princípios que se igualam por serem objeto de aplicação, mas se diferenciam por se situarem numa relação de subordinação, como é o caso dos sobreprincípios do Estado de Direito relativamente aos princípios da separação dos poderes, da legalidade e da irretroatividade. Se um princípio é uma norma de execução ou concretização de outra, a relação entre elas não é de concorrência, mas de subordinação. Em terceiro lugar, nem todos os princípios têm a mesma eficácia: os princípios exercem várias funções eficaciais, como a interpretativa, em que um princípio será interpretado de acordo com outro, a integrativa, em que um princípio atuará diretamente suprindo lacuna legal, e a bloqueadora, em que um princípio afastará uma norma legal com ele incompatível. Nesses casos, também não se pode falar em conflito horizontal, mas apenas em vínculos de conformidade de um princípio em relação a outro, ou em atuação direta de um princípio sem a interferência de outro princípio.

Desta maneira, é certo que uma regra não irá anular a outra, pois existe uma diversidade de casos, de situações que são um tanto singulares, e elas precisam de uma atenção especial para que se possa usar o princípio mais conveniente, porque como é demonstrado por Ávila, os princípios se complementam, mesmo que seja em um longo espaço de tempo, e existem meios de ponderar esses conflitos entre as normas constitucionais, afinal, todas as pessoas necessitam e de seus direitos individuais e coletivos, a liberdade é uma conquista dos homens, há um longo caminho até que se chegue a liberdade, a privacidade e a dignidade.

Nesse sentido, também agrega Alexandre de Moraes (2003, p. 50):

A dignidade da pessoa humana: concede unidade aos direitos e garantias fundamentais, sendo inerente às personalidades humanas. Esse fundamento afasta a ideia de predomínio das concepções transpessoalistas de Estado e Nação, em detrimento da liberdade individual. A dignidade é um valor espiritual e moral inerente à pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e que traz consigo a pretensão ao respeito por parte das demais pessoas, constituindo-se um mínimo invulnerável que todo estatuto jurídico deve assegurar, de modo que, somente excepcionalmente, possam ser feitas limitações ao exercício dos direitos fundamentais, mas sempre sem sempre sem menosprezar a necessária estima que merecem todas as pessoas enquanto seres humanos.


3. A POLÊMICA DA NOVA LEI Nº 13.840/2019

Em 2019, foi sancionada, pelo Presidente da República a nova Lei de Drogas nº 13.840/2019, que transformou as espécies de internação, que antes eram divididas em três, e agora, dividida em duas, sendo elas, tão somente: a internação voluntária, que se manteve igual no conceitual, sendo consentida pelo dependente químico, e a internação involuntária, que é sem o consentimento do paciente, requerida por familiares ou terceiros, e que antes já não havia a necessidade de uma autorização judicial.

A falta de citação da internação compulsória assunto que gerou polêmica durante seu anúncio, pois agilizou para que o indivíduo seja internado com mais facilidade, já que agora a autorização judicial não é mais obrigatória e ao menos citada em alguma das espécies de internação.

Considerando a Lei nº 13.840, de 5 de junho de 2019, aprovada no Senado, sem aprofundamento do debate, desconsiderando emendas de comissões apresentadas, que acaba de retroceder décadas ao prescrever internações involuntárias como estratégia central no cuidado aos usuários de drogas, como outras medidas retrógradas com prejuízo de experiências exitosas e avanços técnico-científicos;

Considerando os vetos presidenciais à Lei nº 13.840/2019 (aprovada no Senado sem que sua versão final acolhesse as contribuições oriundas de prolongado debate e pactuações em diversas comissões do congresso nacional nos últimos anos), que descaracteriza os órgãos fiscalizadores, a participação da sociedade e reduz os recursos/estratégias direcionados a inclusão social, trabalho e geração de renda;22

Essa mudança sobre a internação na nova Lei trouxe questionamentos com relação ao retrocesso, pois a determinação Judicial legal era um fator fundamental para a classificação e diferenciação da internação compulsória, e a chegada dessa nova lei alterou bruscamente o seu conceito, pois acabou ferindo a carta magna com a retirada da internação compulsória.

Em uma análise sobre a nova lei n. 13.840/2019, o psiquiatra Rogério Wolf de Aguiar, membro da Câmara Técnica de Psiquiatria do Conselho Federal de Medicina e ex-presidente da Associação Brasileira de Psiquiatria e do CREMERS, apontou algumas mudanças que foram feitas23.

Mudanças sobre a Internação Involuntária conforme a lei: A internação involuntária dependerá de pedido de familiar ou responsável legal ou, na faltas deste, de servidor público da área da saúde, de assistência social ou de órgãos públicos integrantes do Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas (Sisnad). O texto ainda diz que, a internação involuntária deve ser realizada após a formalização da decisão por médico responsável e indicada depois da avaliação sobre o tipo de droga utilizada, o padrão de uso e na hipótese comprovada da impossibilidade de utilização de alternativas terapêuticas previstas da rede de atenção à saúde. O texto ainda menciona que o tratamento ocorrerá prioritariamente de forma ambulatorial, em unidades de saúde ou hospitais gerais, dotados de equipes multidisciplinares. O médico que autoriza a internação deve estar devidamente registrado no Conselho Regional de Medicina (CRM) do estado/unidade federativa onde se localize o estabelecimento no qual se dará a internação. O documento indica que a internação involuntária deverá ocorrer no estrito tempo necessário à desintoxicação do paciente, no prazo máximo de 90 dias, tendo seu término determinado pelo médico responsável; e que a família ou representante legal, poderá, a qualquer tempo, requerer ao médico a interrupção do tratamento. A lei prevê, ainda, que todas as internações e altas deverão ser informadas, em, no máximo, de 72 horas, ao Ministério Público, à Defensoria Pública e a outros órgãos de fiscalização, por meio de sistema informatizado único.24 Dessa forma, Wolf, resumiu algumas das novidades sobre a lei em vigor.

Mudanças sobre a Internação Voluntária conforme a lei: O acolhimento em unidades terapêuticas sempre será por adesão voluntária; Elas devem oferecer ambiente residencial propício à promoção do desenvolvimento pessoal e não poderão se isolar fisicamente a pessoa, dependendo sempre de avaliação médica para o ingresso; usuários que possuem comprometimentos de saúde ou psicológicos de natureza grave não poderão ficar nessas comunidades, pois as comunidades são instituições privadas e sem fins lucrativos.

O psiquiatra considera positiva essa mudança: A avaliação inicial e muito positiva, porque transforma em lei o que já é parte de uma Resolução do Conselho Federal de Medicina. No CFM, há uma previsão de Internações dos tipos voluntários, involuntários e compulsório. diz. No entanto, Aguiar, concorda que a medida é polêmica e que gera discussões, mas defende que essa mudança e necessária: A Internação involuntária tem causado certa polêmica, na medida em que propõe uma internação, apesar da contrariedade do paciente, afirma, ainda, que se trata de uma medida delicada e que as avaliações devem ser feitas de maneira individualizada e criteriosa. Wolf, explica:

O dispositivo certamente não seria bem aplicado se fosse realizado de modo universal, ou seja, internando indiscriminadamente qualquer pessoa com dependência de drogas. Isso tem que ser avaliado individualmente. O que a lei abre é a possibilidade legal de que sejam decididas as internações, por indicação médica, em casos de incapacidade da pessoa de decidir por si mesma. Essa medida é decidida quando a pessoa já não comanda e avalia mais seus atos. É uma ação de proteção

Um tema polêmico gera discussões e opiniões controversas, pode-se perceber como por um lado a medida é bem aceita, entretanto, por outro é chamada de retrocesso constitucional.

3.1. Internação Forçada Como Medida de Segurança ou Punição?

Para que ocorra a internação forçada é necessário que haja irrupção de uma força como forma de medida de segurança, pois os pacientes que são usuários problemáticos de drogas, geralmente não colaboram. A medida é determinada no curso do processo criminal, quando há acusação de prática de ato típico e punível com pena restritiva de liberdade, de pessoa considerada inimputável ou semi-imputável (Código Penal, art. 26). Havendo conduta típica, o princípio da culpabilidade25 será afastado por completo26 a possibilidade de imposição de pena27. Contudo, é denominado de absolvição imprópria. O simples ato de consumir drogas, ou mesmo o uso abusivo de drogas, não são condições para que se possa ensejar a medida de segurança, afirmativa assegurada pelo art. 28. da Lei n. 11.343/2006 (Lei Antidrogas), o consumo pessoal não se submete à pena restritiva de liberdade (prisão simples, detenção, reclusão). As penas previstas por uso pessoal são de advertência, prestação de serviços comunitários e realização de curso educativo. Quando há prática de outras condutas criminalmente tipificadas, o uso problemático de drogas integra as hipóteses de transtorno mental que podem conduzir a inimputabilidade. Ao observar as decisões judiciais, pode-se observar que na determinação de internação em sede de medida de segurança é frequente o embasamento estar ligado à intenção punitiva, o que é uma grave incoerência, configurando uma mistura perigosa. (Foucault, 2001, p.43). No art. 45. da Lei de Drogas n. 11.343/2006, o quadro denominado dependência e o efeito do uso de drogas, são previstos como prognóstico que podem facilitar a autorização do tratamento forçado:

Art. 45. É isento de pena o agente que, em razão da dependência, ou sob o efeito, proveniente de caso fortuito ou força maior, de droga, era, ao tempo da ação ou da omissão, qualquer que tenha sido a infração penal praticada, inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento.

Parágrafo único. Quando absolver o agente, reconhecendo, por força pericial, que este apresentava, à época do fato previsto neste artigo, as condições referidas no caput deste artigo, poderá determinar o juiz, na sentença, o seu encaminhamento para tratamento médico adequado.

Quanto à duração da internação, prevê o código penal no art. 97, §1º, será por tempo indeterminado, perdurando enquanto não for averiguada, mediante perícia médica, a cessação de periculosidade. O prazo mínimo deverá ser de um a três anos. Ou seja, existe um temor da prática de um novo crime com relação ao agente.

O relatório realizado pelo Conselho Federal de Psicologia28 observou que 70% dos internados em medidas de segurança, sequer passaram por um projeto terapêutico, 18% passaram, e o percentual remanescente sequer não havia dados. O STJ prevê na súmula 52729 que O tempo de duração da medida de segurança não deve ultrapassar o limite máximo da pena abstratamente cominada ao delito praticado, exemplo de que há uma confusão entre o tratamento e a punição.

Existem posicionamentos divergentes sobre como deveria ocorrer a medida de segurança. Para Paulo Queiroz, melhor seria, em atenção ao principio de igualdade, que a medida de segurança tenha uma duração máxima limitada pela pena em concreto, ao invés da pena em abstrato, por constituir uma solução mais protetiva30. Roig já defende o princípio constitucional da presunção de inocência, que exige que o prazo máximo da medida de segurança seja da pena mínima.31

A conclusão e os fundamentos do STJ e STF em síntese rejeitam um caráter punitivo na medida de segurança. O STJ ao fundamentar o HC 121.877 acenou para a distinção necessária entre punição e medida de segurança:

não há falar, no presente caso, em prescrição, mas, sim, em limite máximo de duração da medida de segurança. Isto porque a paciente encontra-se cumprinco a medida de seguranca imposta e a prescrição refere-se à pretensão estatal de punir (quando se levará em consideração a pena in abstrato) ou de executar pena ou medida imposta por sentença judicial transitada em julgado (considerando-se a pena in concreto). A discussão, neste writ, deve desenvolver-se em torno da questão da duração máxima da medida de segurança, no sentido de se fixar uma restrição à intervenção estatal em relação ao inimputável na esfera penal.32

Houve caso em que o cumprimento da medida e segurança já ultrapassa oito anos, em crime cuja pena máxima era a metade. Isto posto, consignou-se que Em razão da incerteza da duração máxima da medida de segurança, está-se claramente tratando de forma mais severa o infrator inimputável quando comparado ao imputável, para o qual a lei limita o poder de atuação do Estado, tendo como exemplo:

  1. O afastamento do inimputável ou semi-imputável por força da medida de segurança encontra fundamento que está mais próximo de razões de política criminal do que motivos de saúde,33

  2. A limitação do tempo da medida de segurança de acordo com a duração máxima prevista para o tipo revela com clareza a preocupação com subterfúgios para prisão perpétua, mas a fundamentação das decisões é reveladora de uma lógica (e/ou de uma ideologia) de matiz punitiva;

  3. Em que se pese seja possível identificar inclusive o Código Penal subsídios para distinção entre pena e tratamento, na medida de segurança se tangencia (ou entrelaçam) tais papéis. (Schulman, 2020, p. 150)

Em sentido diverso, conferindo maior atenção à saúde, o STJ concluiu, ao menos em parte com maior sintonia com os valores constitucionais:

A medida de segurança tem finalidade preventiva e assistencial, não sendo, portanto, pena, mas instrumento de defesa da sociedade, por um lado, e de recuperação social inimputável, por outro. 2. Tendo em vista o propósito curativo, destina-se a debelar o desvio psiquiátrico acometido ao inimputável, que era, ao tempo da ação, inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento.34


CONCLUSÃO

A Internação Compulsória para que não viole os direitos fundamentais, deve ser realizada após o primeiro passo, que é finalidade terapêutica, pois é a única justificativa constitucionalmente admissível para que não seja utilizada como forma punitiva, e sim da maneira como indicam as práticas nas medidas de segurança, não esquecendo que os efeitos colaterais estarão sempre presentes. É necessário também que haja uma avaliação criteriosa por uma equipe multidisciplinar, para que não ocorram equívocos sobre o laudo e individualidade de cada paciente.

Os princípios constitucionais apesar de conflitarem algumas vezes, também servem de apoio um para o outro, quando utilizado no momento certo através de uma ponderação, para que um não prevaleça sobre o outro, também para que não haja uma hierarquia de princípios e muito menos um retrocesso constitucional, dando primeiramente o direito à saúde ao dependente químico legítimo que realmente necessitou de uma internação e que passou por todas as etapas, para que então, com a sanidade restabelecida, tenha condição de decidir e gozar do seu direito à liberdade.

O retrocesso constitucional ocorre quando tratam a internação compulsória como um tratamento em si, quando sem justificativas admissíveis um indivíduo é internado e sem a intenção de que essa internação seja apenas uma fase do processo, mas sim o único e por tempo indeterminado. Também há retrocesso quando utilizam a internação de forma curativa, pois para que se tenha uma melhoria ou até mesmo uma recuperação significativa, não poderia ser como acontece hoje em dia em grande parte dos casos, onde se interna para punir e sem previsão de volta do paciente ao convívio social, ou ao menos a retomada dele ao tratamento extra-hospitalar. O ideal seria o esgotamento de todos os meios cabíveis, incluindo os recursos extra-hospitalares, para que dessa forma houvesse a recuperação do dependente químico, trazendo-o de volta a sanidade e o incluindo novamente ao convívio social. O retrocesso também acontece quando se facilita de alguma forma (no presente caso, sem necessidade de autorização judicial) a internação de um indivíduo por consumo nocivo de drogas, pois esse consumo dos entorpecentes em si não justifica a internação. A liberdade de usar drogas é extraída do texto constitucional por força da proteção à vida privada, à intimidade, à liberdade. É previsto ainda que a legislação ordinária se encarregará das normas no tocante à publicidade de álcool e tabaco, no artigo 220, § 4º da Constituição Federal. Por fim, para que a internação compulsória seja mais benéfica para o dependente, deve-se respeitar o devido processo legal, em regra, a um conjunto de pressupostos protetivos, tendo como exemplo, a manifestação da pessoa que se pretende internar, a oitiva de um defensor da parte, a comunicação para a Defensoria Pública e para o Ministério Público. Contudo, a internação compulsória será legítima se houver motivação cabível, o procedimento da sua efetivação, e tempo determinado sobre a permanência da internação. Vale frisar que internar alguém fora dos parâmetros de proteção dos direitos humanos e das normas internas é crime de tortura, ou seja, fora desses requisitos só poderá trazer prejuízos ainda mais agravados para o dependente químico.


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Notas

  1. LOUVEM, Amanda. Da internação compulsória de dependentes químicos e os direitos humanos. out, 2017. pg. 10. Monografia. FACULDADE DE DIREITO DE CACHOEIRO DE ITAPEMIRIM Cachoeiro de Itapemirim- ES.

  2. Diário do Hospício aponta a vivência do autor e combina memórias e reflexões da vida no manicômio.Cemitério dos Vivos. OLIVEIRA, Ana Lúcia Machado de; GENS, Rosa Maria de Carvalho. Introdução. In. Barreto, Afonso Henrique Lima. Diário do hospício; Cemitério dos Vivos. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal e Cultural, 1993, p. 11. e 14.

  3. Barreto, Lima. O cemitério dos vivos. Brasília: Ministério da Cultura. Disponível em <https://objdigital.bn.br/Acervo_Digital/Livros_eletronicos/o_cemiterio_dos_vivos.pdf> Acesso em 15 abr. 2020

  4. BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de lei N. 3.657/1989. Parecer da comissão de Seguridade Social e Família. 05. jun. 1990.

  5. CRACK chama atenção para dependência química. Revista de Audiências Públicas do Senado Federal, Brasília: Senado Federal, ano 2, n. 8, p. 7, ago. 2011.

  6. HISAYASU, Alexandre. 10. anos dos ataques do PCC. O Estado de São Paulo, Caderno Especial: Domínios do Crime, 2015.

  7. QUATRO em cada cinco em SP defende à internação a força de usuários de crack. Folha de S. Paulo. Caderno Cotidiano, 3 jun. 2017. Por fim, 22% consideram que a culpa do problema do crack é dos usuários quase em empate com 29% para responsáveis pelo tráfico. Em 2012, a posição era de que 9 em cada 10 pessoas admitiam a internação. MARINHEIRO, Vaguinaldo. 90% aprovam internação involuntária. Folha de S. Paulo. Caderno Cotidiano, 25 jan. 2012.


COMPULSORY ADMISSION AND THE CONFLICT WITH THE CHEMICAL DEPENDENTS FUNDAMENTAL RIGHTS

Abstract: The article main objective is to analyze using the hypothetical deductive method how the compulsory admission works in Brazil and how the citizen who suffers of mental illness is treated by the society and Brazilian judicial system. We demonstrate the clash of this type of intervention with the individual constitutional rights, in particular personal freedom and the right to healthcare, and how this affects reaching reasonable solution for the interested parties. The law number 13,840 signed in 2019 made easier the compulsory admission of individuals with mental illness by the state. Finally, we will address positive and negatives aspects of this law with intent of finding which measure is more effective in dealing with drug addiction. The deductive method was used, through an interview with a specialist in the subject, bibliographic research, scientific articles and the federal constitution.

Key words: Compulsory hospitalization, chemical addiction, fundamental rights, human rights, constitutional right.



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