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A contaminação do Estado democrático de direito pelo direito penal do inimigo: uma análise criminológica do terrorismo

A contaminação do Estado democrático de direito pelo direito penal do inimigo: uma análise criminológica do terrorismo

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Um Estado de direito não pode conduzir uma guerra ao terror. Se reduzir algumas pessoas a inimigos da sociedade, estará legitimando, de algum modo, seu ataque. O direito penal do inimigo tem consequências drásticas para o próprio ordenamento jurídico e também contamina o direito penal do cidadão.

INTRODUÇÃO

O inimigo é resultado da seletividade do poder punitivo atual, isso porque sua periculosidade fica sempre à mercê do juízo subjetivo e arbitrário do individualizador, que é sempre aquele que está no poder. A falta de confiabilidade, a fragilidade e o preconceito caracterizam essa classificação subjetiva, que castiga os inimigos mas deixa impune os amigos, é fortalecida pelo discurso midiático e que é feita muito mais para atender interesses pessoais do que visando justiça.

No entanto, a invocação das emergências justificadoras de Estados de exceção não é recente. O conceito de inimigo sempre esteve presente no âmbito do poder punitivo. Ligada a critérios políticos, a individualização de certas pessoas como entes perigosos ou daninhos fez com que, ao longo de toda a história, em menor ou maior grau, estas fossem privadas de seus direitos individuais. E foi após os ataques de 11 de setembro que a figura do terrorista – presente na sociedade há muito mais tempo do que comumente se imagina – ganhou destaque como inimigo internacional a ser fortemente combatido.

A grande questão e importância deste trabalho é refletir se as medidas excepcionais que são tomadas no âmbito do Direito Penal do Inimigo (sendo este uma vertente do expansionismo do Direito Penal em sua terceira velocidade) [1] são constitucionais e observam os princípios fundamentais do nosso ordenamento jurídico. Poderia mesmo o inimigo se “despedir” do contexto social?


2. TEORIAS FUNDANTES DO DIREITO PENAL DO INIMIGO

2.1. Bases contratualistas

A visão genérica que se tem do terrorista nos dias de hoje pode ser analisada através das teorias que tinham por base o chamado contrato social.

Difundida a partir do início do século XVII, tendo em Thomas Hobbes o grande expoente de sua fase inicial, a ideia do contrato social é destinada a explicar a origem do poder através de um ato voluntário dos indivíduos, do qual advêm obrigações jurídicas essenciais ao convívio em sociedade.

Na mesma senda, Jean Jacques Rousseau, em sua obra “O contrato social”, afirmava que a sociedade possuía um pacto soberano. Por meio dele, as pessoas abriam mão de parcela de sua liberdade individual e adotavam uma convenção que deveria ser obedecida por todos. Como a premissa de todos que “fizeram o pacto” era a capacidade de compreender e de querer, entendia-se que qualquer um que quebrasse o pacto o teria feito de livre-arbítrio. Assim, se uma pessoa cometesse um crime, quebrando o pacto firmado, deveria ser punida pelo mal voluntariamente causado à comunidade, de forma proporcional (ROUSSEAU, 1973).

 Outros famosos filósofos que compartilharam da ideia foram Hegel e Kant. Apesar de algumas divergências acerca da origem do referido pacto, os contratualistas, em síntese, acreditavam que o delinquente que infringisse o contrato social não poderia ser beneficiado por este. Já se tinha, assim, as primeiras noções do que hoje vem a ser o inimigo. Por exemplo, em Rousseau:

 (...) qualquer malfeitor, atacando o direito social pelos seus crimes, torna-se rebelde e traidor da pátria, deixa de ser um seu membro ao violar suas leis e até lhe move guerra. A conservação do Estado é então incompatível com a sua, sendo preciso que um dos dois pereça, e, quando se faz que um culpado morra, é menos como cidadão do que como inimigo. (ROSSEAU, 1973, p. 58).

Este pensamento, tantos séculos depois, serve para embasar o tratamento penal que hoje é dado ao terrorista. Por infringir o “contrato social”, perde a condição de indivíduo e, consequentemente, direitos inerentes ao cidadão e ao ser humano.

2.2. Teoria dos Sistemas de Niklas Luhmann

Essa visão estereotipada do inimigo é explicada pelo sociólogo alemão Niklas Luhmann através de sua Teoria dos Sistemas. De bases contratualistas, Luhmann vê as sociedades complexas como criadoras de expectativas, que podem ser cognitivas (o que o homem espera da natureza) ou normativas (o que o homem espera dos demais integrantes da sociedade).

As primeiras têm que ser aceitas pelo homem. Por exemplo, se uma chuva torrencial fez com que sua casa desabasse, não há nada que se possa fazer a não ser aceitar. Por outro lado, os indivíduos entendem que é possível mudar o comportamento humano, logo, voltam as expectativas normativas à manutenção do contrato social e fundamentam nesta manutenção a aplicação da sanção penal (que Luhmann denomina de “expectativa contra fática”) àqueles que o descumprem, a fim de que se continue a acreditar nas expectativas comportamentais.

A teoria dos sistemas implica no desaparecimento de uma moral válida para todas as conexões de comunicação e no surgimento de sistemas sociais diferenciados, que se baseiam nos seus próprios códigos e critérios, voltados a dar à sociedade o que ela quer, e não o que ela precisa (LUHMANN, 2002).

Chegamos assim ao cenário atual: macro criminalização, utilização extrema do Direito Penal, que em tese deveria ser mínimo, e surgimento de normas penais diferenciadas para certos indivíduos, como é o caso da aplicação do Direito Penal do aos terroristas, para atender às expectativas da sociedade.

2.3. Teoria da Prevenção Geral Positiva de Günter Jakobs

Admitir que o Direito Penal atual funciona muito mais como protetor das expectativas para a constituição da sociedade ideal (o que Jakobs denomina de “segurança cognitiva”) e que a pena hoje não é retribuição por um dano, nem muito menos restauração social, mas proteção à vigência da norma, é justamente a base de outra teoria imprescindível para o estudo do Direito Penal do Inimigo no âmbito da problemática do terrorismo: a Teoria da Prevenção Geral Positiva, de Günther Jakobs.

Em suas obras, o autor utiliza um interessante argumento para corroborar essa ideia: a punição que o ordenamento jurídico impõe à tentativa. Ou seja, mesmo quando não há um dano efetivo, como no caso da tentativa, se pune aquele que teve a intenção de desrespeitar alguma norma imposta.

O mandamento que impera na sociedade, para Jakobs, não é “não viole um bem” e sim “não viole o seu papel de cidadão fiel ao direito”.

“[...] aquele que violar a lei com base em seus sonhos e pretensas visões, ou nos de outrem ou, ainda, numa fantasia sobre o poder dos espíritos invisíveis, diversa da permitida pelo Estado, estará se afastando da lei natural, o que é um delito certo”. (HOBBES, 2012, p. 211)

A pena, portanto, no âmbito de proteção às expectativas sociais, seria voltada para reestabelecer a normalidade que foi desestabilizada pela negação da vigência da norma, causada pelo crime, e as pessoas seriam um “produto social”: a unidade ideal de direitos e deveres destinatária das expectativas normativas, possuindo papel fundamental na coletividade.

Aquele que delinque por princípio, de forma reiterada, não se encaixaria nesse conceito de pessoa. Seria o inimigo – um ser não ressocializável que quer “destruir o direito do cidadão” e que, por isso, deve ser neutralizado. Segundo Jakobs, o Estado não pode esperar que o inimigo aja, devendo intercepta-lo previamente e criar normas e princípios diferenciadas voltadas para ele. Explica:

(...) o Direito Penal do Cidadão é o Direito de todos; o Direito Penal do Inimigo é o Direito daqueles que se contrapõem ao inimigo; em relação ao inimigo, ele é somente coação física, chegando até a guerra (...) o Direito Penal do Cidadão mantém a vigência da norma, o Direito Penal do Inimigo combate perigos (...) (JAKOBS, 2008, P.8).

A reciprocidade contida na máxima “no Direito, todo ser humano tem direito a ser tratado como pessoa” é, na prática, substituída pelo pensamento de que “quem é fiel ao ordenamento tem direito a ser tratado como pessoa. Quem não o faz, será heterodeterminado, o que significa que não será tratado como pessoa”.

Manuel Cancio Meliá, analisando a proposta de Jakobs, esclarece:

Segundo Jakobs, o Direito Penal do Inimigo se caracteriza por três elementos: em primeiro lugar, se constata um amplo adiantamento da punibilidade, quer dizer, que neste âmbito, a perspectiva do ordenamento jurídico-penal é prospectiva (ponto de referência: o fato futuro), em lugar de – como é habitual – retrospectiva (ponto de referência: o fato cometido). Em segundo lugar, as penas previstas são desproporcionadamente altas: especialmente, a antecipação da barreira de punição não é tida em conta para reduzir em correspondência a pena ameaçada. Em terceiro lugar, determinadas garantias processuais são relativizadas ou, inclusive, suprimidas. (JAKOBS; CANCIO, 2006, p. 79-81)


3. QUEM É O INIMIGO?

3.1. Origem da palavra e antecedentes históricos

A invocação das emergências justificadoras de Estados de exceção não é recente. O conceito de inimigo sempre esteve presente no âmbito do poder punitivo. Ligada a critérios políticos, a individualização de certas pessoas como entes perigosos ou daninhos fez com que, ao longo de toda a história, em menor ou maior grau, estas fossem privadas de seus direitos individuais.

No ano 621 a. c., o estadista e legislador grego Dracón já previa a pena de morte para os crimes contra os deuses e o Estado, cometidos pelos “inimigos de Atenas”.

O Direito Romano, por sua vez, apenava os inimicus (inimigos pessoais), os hostis alienígena (todos que incomodavam o poder, os insubordinados, os indisciplinados ou simplesmente estrangeiros, estranhos) e os hostis judicatus (inimigos políticos, dissidentes). A estes últimos era imposta a pena de decapitação com um machado. O “inimigo” atual remete a uma confusa junção destes três conceitos.

Para Zaffaroni, o termo “inimigo” que temos hoje foi confusa e contraditoriamente arrastado pela modernidade e é incompatível com o Estado de Direito, devendo por isso ser eliminado:

(...) procuramos comprovar que, no plano da teoria política, é intolerável a categoria jurídica de inimigo ou estranho no direito ordinário (penal ou qualquer outro ramo) de um Estado constitucional de Direito, que só pode admiti-lo nas previsões de seu direito de guerra e com as limitações que lhe são impostas pelo direito internacional em seu ramo humanitário (legislação de Genebra), levando-se em conta que nem sequer este priva o inimigo bélico da condição de pessoa (ZAFFARONI, 2007, p. 12).

No século XV, durante a expansão do colonialismo e do cristianismo europeu, imperava o período inquisitorial e a época sombria da “caça às bruxas”. A Igreja selecionava, torturava e matava publicamente possíveis dissidentes políticos (os inimigos), utilizando a “eliminação dos aliados ao Satã” como falsa justificativa. As Ordenações Afonsinas, Manoelinas e Filipinas tinham livros específicos para os delitos praticados por feiticeiros, hereges, pederastas e contra os diversos crimes de lesa- majestade. A punição consistia na combustão precedida de tortura.

O nazismo foi a coroação do conceito positivista de inimigo ôntico, criado por Rafael Garófalo[2]. Ao escolher quem era digno ou não de viver, declarava os judeus e os não arianos como “perigosos inimigos, que pertenciam a uma raça não evoluída e biologicamente inferior”. O fanatismo ideológico foi levado às últimas consequências e os judeus foram dizimados.

Atualmente, com a globalização e o avanço da mídia, a informação alastra-se de maneira quase que instantânea. O pânico e o terror que um ato isolado pode causar espalham-se facilmente, e a sede social por respostas imediatas faz com que os conceitos de justiça e vingança se confundam. Todos podem vir a se tornar inimigos, o que leva à necessidade de se exercer um controle social autoritário sobre toda a população. O resultado é a limitação generalizada da liberdade (o que se nos remete a um Estado Absolutista, não ao Estado de Direito).

Neste cenário, e principalmente após os ataques de 11 de setembro, a figura do terrorista – presente na sociedade há muito mais tempo do que comumente se imagina – ganha destaque como inimigo internacional a ser fortemente combatido. Feliciano explica o problema fundamental desse combate:

Eis, pois, o que se tem: a reação militar e o discurso, como formas de impor ao delinquente internacional a justa repressão por seu ilícito. Justa repressão. Como se entender, nesse contexto injurídico (porque alheio à apreciação de uma Corte internacional permanente), o ideal de justiça? O que é justo em uma guerra de agressão? (FELICIANO, 2001, p. 538)

3.2. Características

Tomando-se por base a Teoria da Prevenção Geral Positiva de Jakobs, o inimigo pode ser caracterizado como um outsider, um não indivíduo, um ser que ameaça a segurança social de forma permanente e que, por isso, é privado de certos direitos individuais, passando a ser visto como coisa (JAKOBS apud MELIÁ, 2007).

Na mesma senda, Zaffaroni entende que o inimigo é enxergado meramente como um ente perigoso ou daninho que deve ser contido, segregado, eliminado (ZAFFARONI, 2007). Diferentemente de alguém que comete um erro pontual, o inimigo delinque por princípio, com habitualidade, reincidência, profissionalismo delitivo e através de uma organização delitiva estruturada.

Ocorre que, levando em conta essas peculiaridades, optou-se por aplicar ao inimigo um direito penal do autor e não do fato. O “não indivíduo” é combatido segundo o grau de periculosidade (e, consequentemente da necessidade de contenção) que representa, ao contrário do que ocorre com o cidadão (este, se vier a realizar um ato ilícito, deverá ser punido segundo sua culpabilidade, ou seja, o dano objetivo que causou). Não se leva em conta uma tentativa, nem muito menos uma conduta realizada, mas pressupõe-se o âmbito interno do indivíduo, o perigo de dano futuro à vigência da norma (JAKOBS apud MELIÁ, 2007).

O inimigo é resultado da seletividade do poder punitivo atual, isso porque sua periculosidade fica sempre à mercê do juízo subjetivo e arbitrário do individualizador, que é aquele que está no poder.

A falta de confiabilidade, a fragilidade e o preconceito caracterizam essa classificação subjetiva, que castiga os inimigos mas deixa impune os amigos, e que é feita muito mais para atender interesses pessoais do que visando justiça, como exemplifica Zaffaroni:

“As cúpulas policiais deterioradas (...) manipulam os delitos em certas ocasiões, permitindo ou facilitando sua comissão para gerar a reação dos meios de comunicação e os protestos públicos contra as autoridades políticas, para desprestigiar qualquer medida capaz de restabelecer garantias para a população ou para promover uma nova onda repressiva e o decorrente alargamento dos espaços de arbitrariedade. Em outras oportunidades, inventam delitos inexistentes para mostrar eficácia ou conseguir melhores estatísticas, acusando pessoas inocentes.” (ZAFFARONI, 2007, p. 75).

A consequência disso é que a aplicação da responsabilidade penal passa a ser objetiva e as penas passam a servir como mera contenção, que é o que ocorre diante da figura do inimigo, o que viola o art. 1º da Declaração dos Direitos do Homem[3] e vai totalmente contra os princípios primordiais do Direito Penal no âmbito do Estado Democrático de Direito (presunção de inocência e garantia do contraditório).

Para Zaffaroni, não é nem a quantidade de direitos de que alguém é privado que lhe retira a condição de pessoa, mas sim o próprio motivo no qual essa injusta privação se baseia. Explica:

(...) Certamente o Estado pode privá-lo de sua cidadania, porém isso não implica que esteja autorizado a privá-lo da condição de pessoa, ou seja, de sua qualidade de portador de todos os direitos que assistem a um ser humano pelo simples fato de sê-lo. O tratamento como coisa perigosa, por mais que seja oculto, incorre nessa privação. (ZAFFARONI, 2007, p. 19).

Na prática, ao estabelecer a segregação do inimigo, e como o liame de separação entre quem o é ou não se torna muito tênue, acaba que todos nós podemos ser considerados inimigos em potencial, o que põe em jogo garantias e direitos fundamentais que tanto nos são caros, como a liberdade. Para Zaffaroni, “a priorização do valor segurança como certeza da conduta futura de alguém, e mais ainda sua absolutização, acabaria na despersonalização de toda a sociedade” (ZAFFARONI, 2007).

Essa generalização, muitas vezes conjugada a outros fatores (como o preconceito étnico) é o que vem ocorrendo hoje quando se fala em terroristas, escolhidos como inimigos internacionais da sociedade atual.

Todos estão sujeitos a serem enxergados como terrorista, o que resulta em muitos casos de pessoas interrogadas e até presas injustamente, sendo também notável que o Estado passa a agir previamente, interceptando aqueles que são considerados perigosos para evitar um fato futuro. O resultado é um forte extremismo penal e medidas excepcionais penais e processuais penais que não se encaixam no ideal de Estado Democrático de Direito, como será visto em tópico adiante.

Os problemas da aplicação prática do conceito de inimigo, e o risco aos direitos fundamentais de toda a sociedade que ela representa, já se mostram em diversos casos concretos.  No sul dos Estados Unidos, por exemplo, um adolescente muçulmano de 14 anos foi interrogado por que levou para a escola um relógio digital que orgulhosamente fabricara; a polícia o acusou de ter produzido uma suposta bomba[4].

Na Inglaterra, um erro ortográfico cometido por uma criança mulçumana de apenas 10 anos ensejou um problema policial: durante uma aula de inglês, o menino escreveu que morava em uma “terrorist house” (casa de terroristas), ao invés de “terraced house” (estilo arquitetônico de casas típicas do Reino Unido). Os professores não entenderam o erro e, antes de questionar o aluno ou os pais, decidiram acionar a polícia, aplicando as novas disposições de segurança contra o terrorismo, introduzidas pelo governo do premier David Cameron. O menino chegou a ser interrogado pela polícia do condado de Lancashire[5].

Diante do que foi exposto, é notório que o conceito de inimigo (e também de terrorista), que é baseado em um critério arbitrário e autoritário de periculosidade, não se encaixa no Estado de direito já que

(...) leva necessariamente ao Estado absoluto, porque o único critério objetivo para medir a periculosidade e o dano do infrator só pode ser o da periculosidade e do dano (real e concreto) de seus próprios atos, isto é, de seus delitos, pelos quais deve ser julgado e, se for o caso, condenado conforme o direito. Na medida em que esse critério objetivo é abandonado, entra-se no campo da subjetividade arbitrária do individualizador do inimigo, que sempre invoca uma necessidade que nunca tem limites (...) (ZAFFARONI, 2007, p. 25).

3.3. O terrorista como o grande inimigo mundial da atualidade

3.3.1. Etiquetamento social (o labelling approach)

Sob a ótica criminológica do terrorismo, uma grande problemática se impõe, turvando a visão do mundo acerca do fenômeno e impedindo sua fiel conceituação e seu efetivo enfrentamento: a construção do estereótipo do terrorista.  A teoria do Etiquetamento Social, ou labeling approach consiste na proposta de que as noções de crime e de criminoso são construídas socialmente, através de definições legais, de ações de controle social pelas instâncias oficiais e da uma estigmatização que contamina o senso comum e que é fortemente sustentada pelo discurso midiático.

Tal reação social confere o status de delinquente a determinados indivíduos, enquanto não adquire esse status aquele que, apesar de ter realizado a mesma conduta punível, não é alcançado pela ação das instâncias oficiais, tornando variável a definição do delito. Explica Alessandro Baratta que

“a mais importante consequência da aplicação de sanções consiste em uma decisiva mudança da identidade social do indivíduo; uma mudança que ocorre logo no momento em que é introduzido no status de desviante” (BARATTA, 2011).

O ato de rotular indivíduos evoluiu para um tipo de direito de exceção (em contraposição ao direito do cidadão), o Direito Penal do Inimigo. Luis Gracia Martín sintetiza a diferença entre “cidadão” e “inimigo”:

Os inimigos são indivíduos cuja atitude, na vida econômica, mediante sua incorporação a uma organização, reflete seu distanciamento, presumivelmente duradouro e não apenas incidental, em relação ao Direito, e que, por isso, não garantem a segurança cognitiva mínima de um comportamento pessoal, demonstrando esse déficit por meio de sua atitude. (apud ZAZMIERCZACK, 2007, p.82).  

Estes “não cidadãos”, desde seu aparecimento na história, são vistos como uma categoria específica de criminosos, principais adversários do ordenamento jurídico e alvos do poder punitivo, que por este devem ser combatidos, tendo suas garantias processuais limitadas.

3.3.2. A influência da mídia völkisch

Tal ideologia, que se olvida dos direitos e garantias individuais, é fomentada por diversos fatores, entre eles a “criminologia midiática”, que possui inegável força na formação da opinião pública.

A análise criminológica feita pelos meios de comunicação de massa diante da cobertura de atentados terroristas nada tem de científica. Pelo contrário, constrói um estereótipo forjado de terrorista (e os afasta do restante da sociedade) através do sensacionalismo, da subinformação e da islamofobia. Essa ação incute o ódio e estimula o combate a um novo “inimigo global”, representado pela figura do árabe, principalmente a partir dos atentados de 11 de setembro de 2001, e com a posterior perseguição a Osama Bin Laden. Sobre esse tema, Zaffaroni explica que

(...) a comunicação de massa, de formidável poder técnico, está empenhada numa propaganda völkisch e vingativa sem precedentes (...) guerras são declaradas de modo unilateral e com fins claramente econômicos; e, para culminar, o poder planetário fabrica inimigos e emergências – com os consequentes Estados de exceção – em série e em alta velocidade. (ZAFFARONI, 2007, p. 16)

O mesmo autor, ainda, critica a nebulosa expressão jurídica “terrorismo”, empregada pejorativa e vulgarmente pela propaganda midiática, preferindo a expressão “crimes de destruição maciça e indiscriminada” ao se referir, por exemplo, aos acontecimentos de 11 de setembro de 2001 e de 11 de março de 2004[6]. Estes seriam, para os internacionalistas, “crimes de lesa- humanidade”: respostas a outras violências (e assim poderíamos continuar até Adão e Eva ou até o primeiro golpe que um hominídeo deferiu contra outro, sem chegar a uma solução com vistas a uma convivência racional no futuro). (ZAFFARONI, 2007)

Para Zaffaroni, “o inimigo da sociedade” no direito penal, que é e sempre foi de caráter político, atualmente é fabricado por um contexto mundial onde os Estados nacionais são débeis e incapazes de prover reformas estruturais, o que gera uma grande capacidade técnica de destruição e permite que a comunicação de massa esteja empenhada em uma propaganda vingativa, völkisch.

Völkisch significa “popularesco”, ou seja, um discurso que subestima o povo e trata de obter sua simpatia de modo não apenas demagógico, mas também brutalmente grosseiro, mediante a reafirmação, o aprofundamento e o estímulo primitivo dos seus piores preconceitos. (ZAFFARONI, 2007, p. 15)

3.3.3 O 11 de setembro e suas consequências

Foi dentro do referido contexto, de forte influência midiática, e também reforçado pelos embates entre Ocidente e Oriente, que na manhã de 11 de setembro de 2001 o mundo parou. O terror, o medo e a sensação de insegurança causada pelos ataques terroristas às Torres Gêmeas em Nova York chegaram aos lares de pessoas de diferentes culturas ao redor do planeta de forma quase instantânea. Um inesquecível e terrível marco histórico, com inúmeras consequências práticas.

A partir daí, houve um redimensionamento do terrorismo, que se tornou um dos maiores problema globais. Não só os Estados Unidos como diversos países da Europa começaram uma verdadeira “guerra ao terror”, utilizando-se de confrontos armados, mas principalmente de um total e perigoso recrudescimento penal de suas legislações antiterror (como a aprovação do USA Patriot Act) e a adoção de medidas processuais- penais excepcionais e prévias. No avanço do Direito Penal, encontraram uma suposta solução.

Posteriormente prorrogado pelo presidente Barack Obama sob a alegação de que sem a referida legislação os americanos estariam inseguros, o Ato Patriótico,     aprovado pelo Congresso dos Estados Unidos durante o mandato de George Bush e poucos dias depois dos ataques ao World Trade Center, permite a detenção administrativa e a violação de correspondência e outros dados da intimidade sem controle judicial, além de, em caso de simples suspeita de terrorismo, autorizar a criação de Tribunais militares secretos e a suspensão de direitos fundamentais reconhecidos na Constituição (CONDE, 2013).

Pior que isso, e totalmente na contramão do Estado Democrático de Direito, a referida legislação americana passou a legitimar invasões a países suspeitos de abrigar terroristas, prisões controversas na Base de Guantánamo[7] e métodos de interrogatório que se utilizam da tortura. Na área militar, os drones, aeronaves não tripuladas, passaram a ser sistemática e fortemente utilizados. O Escritório de Investigação Jornalística (BIJ), com sede em Londres, estima que os drones aniquilaram de 2.525 a 3.613 pessoas entre os anos de 2004 e 02 de novembro 2013. Mais recentemente, a desenfreada espionagem americana deu ensejo a polêmicas revelações que tiveram como alvos inclusive seus próprios aliados, como a presidente Dilma Rousseff (no escândalo da Petrobras) e a chefe de governo da Alemanha, Angela Merkel[8].

Sobre a invasão dos EUA ao Afeganistão para derrubar o Talibã, que abrigou os terroristas da organização fundamentalista Al-Qaeda – autora dos ataques suicidas às Torres Gêmeas, têm-se:

Os militares norte-americanos pretenderam batizar a reação militar aos atentados de 11.09.2001 como “operação justiça infinita”, abandonando depois a expressão, por provocativa aos olhos da população islâmica, para adotar a denominação “operação liberdade duradoura”; a primeira expressão, contudo, reflete melhor o espírito de luta e vingança que tomou de assalto significativa fração do povo norte- americano, ferido em sua integridade e em seu orgulho [...] O quão justo é bombardear um país em escombros, economicamente debilitado e politicamente sem rumos, com reflexos nefastos – ainda que indiretos – à população civil, para homenagear a memória de outros tantos mortos nos atentados de setembro de 2001? (FELICIANO, 2001, p. 538)

Na Europa, como as legislações internas ainda não estavam aliadas à macrocriminalização transnacional, foi editada a Decisão Quadro Europeia 2002/475/JAI, em 13 de junho de 2002. A referida decisão, também diretamente ligada aos acontecimentos de 11 de setembro considerou o terrorismo “uma ameaça para a democracia, o livre exercício dos direitos humanos e o desenvolvimento econômico e social”.

Para combater o problema, visou unificar o conceito de terrorismo em todos os Estados- Membros, o que fez ao elencar um amplo rol de “infrações terroristas”, definidas em vários de seus artigos. O art. 1º, de modo generalizado, chega a mencionar que serão consideradas infrações terroristas aqueles atos que

(...) por sua natureza ou pelo contexto em que foram cometidos, sejam susceptíveis de constranger indevidamente os poderes públicos, ou uma organização internacional, a praticar ou a abster-se de praticar qualquer ato, ou desestabilizar gravemente ou destruir as estruturas fundamentais políticas, constitucionais, econômicas ou sociais de um país, ou de uma organização internacional (art. 1º da Decisão Quadro Europeia 2002/475/JAI).

Ora, a partir dessa tipificação, tomada como exemplo do expansionismo penal em matéria de combate ao terrorismo, percebe-se que a criminalização que vem ocorrendo após o 11 de setembro é instrumento ineficaz na luta contra o terrorismo (as células terroristas ganham cada vez mais adeptos e estrutura) e que causa diversos danos colaterais. Isto porque punir atos que sejam “susceptíveis de constranger indevidamente os poderes públicos” dá espaço à arbitrariedade estatal e à punição de movimentos sociais.

A Decisão Quadro supramencionada, ainda, definiu as penas e sanções aplicáveis às pessoas ou aos grupos de pessoas que cometessem ou fossem responsáveis por qualquer uma das infrações descritas como ato terrorista. O documento, por fim, determinou que os Estados- Membros, até 31 de dezembro de 2002, tomassem as medidas necessárias para a efetivação das punições que elencou.

As notícias sobre supostos atos terroristas, cada vez mais frequentes, também repercutiram no Brasil. (o que vem repercutindo inclusive no Brasil). Em 16 de março de 2016, Dilma Rousseff sancionou a lei antiterrorismo. Ficaram tipificados como sendo terrorismo atos de sabotagem, de violência ou potencialmente violentos por xenofobia, discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia e religião, quando cometidos com a finalidade de provocar terror, social ou generalizado, expondo a perigo pessoa, patrimônio, a paz pública ou a incolumidade pública.

Essa lei está inserida naquilo que Zaffaroni denomina de “legislação penal cool” (para ele, o capítulo mais triste, desrespeitoso com o cidadão e decadente da atualidade latino- americana) que consiste no fato de que políticos, intimidados pela ameaça de uma publicidade negativa e por pressões sociais e internacionais, provocam o maior caos legal autoritário – incompreensível e irracional – da história de nossas legislações penais desde a independência. Guiados por favoritismos (e não por ideias), eles sancionam leis penais e processuais inexplicáveis, autoritárias e violadoras de princípios e garantias constitucionais, penas desproporcionais, tipificações nebulosas, multiplicam tipos de perigo abstrato ou presumido, sanção de atos preparatórios, e tantos outros “folclorismos penais” (ZAFFARONI, 2007).


4. DIREITO PENAL DO INIMIGO X ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO

4.1. O prejudicial discurso da emergência e as medidas excepcionais

Dentre as medidas que são peculiares ao Direito Penal do Inimigo e que surgem para atender ao anseio social e imediatista por punição, têm-se aquelas de caráter penal, como a proliferação de crimes de risco sem lesividade, o aumento da incriminação de atos preparatórios (não se espera que o inimigo aja para poder puni-lo), a agravação das penas (sem proporcionalidade entre o ato e a punição, o que é bem comum no Brasil), e numerosas leis que são denominadas como “de luta” ou “de combate”, a exemplo da Lei de Combate ao Crime Organizado e da Lei de Combate ao Terrorismo.

Nesse contexto, perde-se a essência do Direito Penal, que existe para proteger o cidadão dos excessos do Estado, garantindo a proteção de seus direitos fundamentais (o que ocasionalmente pode ensejar penalidades àqueles que agridem estes direitos); não é meio de combate algum.

O processo penal também fica desestabilizado com o surgimento de institutos incompatíveis com os seus princípios basilares. São estes: as restrições de direitos e garantias processuais ao acusado, normas de direito penitenciário que limitam a concessão de benefícios (a Lei de Crimes Hediondos ampliou os requisitos para a obtenção do livramento condicional), o alargamento dos prazos da prisão preventiva, a ampliação dos prazos de detenção policial para fins investigatórios (a prisão temporária passa para trinta dias na Lei de Crimes Hediondos), a previsão de crimes sem motivo, os métodos especiais de investigação (interceptação telefônica, colaboração premiada e agente infiltrado, por exemplo) e até mesmo o absurdo da inversão do ônus da prova, que é tendência em países europeus. Por meio desta, a acusação exibe um grau probatório mínimo e o réu é que tem que provar que a origem dos bens é lícita, ocorrendo a previsão de ilicitude. Segundo Jakobs,

Os institutos das “penas de suspeita”, “leis de fuga”, escutas indiscriminadas, utilização de agentes disfarçados e muitos outros instrumentos, além da pena para fundação de associação terrorista medida exclusivamente conforme o quantum delitivo contra a ordem pública, esvaziam de conteúdo o direito do cidadão e sua segurança, afastando a vigência real do Direito (JAKOBS, 2008, p. 6)

Até mesmo em tratados internacionais há previsão de medidas extremistas, que se convertem em obrigação para os países que assinam o acordo, visando combater crimes de difícil solução como o terrorismo. O artigo 20 da Convenção de Palermo, por exemplo, dispõe sobre técnicas especiais de investigação:

[...] Se os princípios fundamentais do seu ordenamento jurídico nacional o permitirem, cada Estado Parte, tendo em conta as suas possibilidades e em conformidade com as condições prescritas no seu direito interno, adotará as medidas necessárias para permitir o recurso apropriado a entregas vigiadas e, quando o considere adequado, o recurso a outras técnicas especiais de investigação, como a vigilância eletrônica ou outras formas de vigilância e as operações de infiltração, por parte das autoridades competentes no seu território, a fim de combater eficazmente a criminalidade organizada [...]

A grande questão objeto deste trabalho, que é inclusive suscitada no trecho da Convenção de Palermo acima transcrito, é se essas medidas excepcionais que são tomadas no âmbito do Direito Penal do Inimigo (sendo este uma vertente do expansionismo do Direito Penal em sua terceira velocidade) [9] são constitucionais e observam os princípios fundamentais do nosso ordenamento jurídico. Poderia mesmo o inimigo se “despedir” do contexto social?

 4.2. O persistente dilema da legitimação do Direito Penal do Inimigo no marco democrático

O Direito penal atual e especificamente o aplicado contra terroristas tem o objetivo de garantir segurança e não o de manter a vigência do ordenamento jurídico, como se infere da finalidade hodierna da pena e dos tipos penais correspondentes. É o Direito Penal do Inimigo em defesa ao mero risco, é a “luta contra o terrorismo” (termo já utilizado inclusive em leis positivadas), uma empreitada contra inimigos, uma verdadeira “guerra ao terror”.

Alguns podem alegar que “se nosso inimigo não cumpre as regras, devemos adotar o mesmo nível de brutalidade”. No entanto, em nenhuma hipótese devemos abandonar a decência e admitir o colapso do império da lei, a violação dos direitos humanos fundamentais ou dos princípios que regem o Direito Internacional. Além disso, lembra Zaffaroni que nunca na história da humanidade um conflito foi resolvido definitivamente pela violência já que só existem dois tipos de soluções definitivas: o genocídio (arrasa os direitos humanos) ou a negociação (conserva os direitos humanos) (ZAFFARONI, 2007).

Conforme explica Jakobs, um Estado de Direito que abarque a todos não pode conduzir uma guerra ao terror, pois deve tratar seus inimigos também como pessoas (e não como fontes de perigo). Isso inclusive o impede de ser destruído por ataques de seus rivais. O Direito Penal do Inimigo (e o risco como seu fundamento) tem uma força sistemática explosiva e consequências drásticas para o próprio ordenamento jurídico; contamina o Direito Penal do cidadão. E é por isso que o terrorismo nunca tem fim: há uma minimização do Estado, que utiliza a prática outrora proposta por Carl Schmitt de limitar-se em designar o inimigo para destruí-lo ou reduzi-lo à impotência. Assim, o poder mundial impede as negociações e caminha rumo as genocídios. Essa lógica é ainda mais forte onde as experiências de terrorismo de Estado permanecem na memória coletiva, como na Europa e na América Latina (JAKOBS, 2008).

Francisco Muñoz Conde defende que não necessitamos de um Direito especial de guerra ou de um Direito penal internacional (ou nacional) especial para castigar satisfatoriamente os ataques massivos às populações civis; apenas precisamos da aplicação do império da lei, seja no Direito penal interno ou no internacional, resguardando princípios e o essencial reconhecimento dos direitos humanos fundamentais estabelecidos nas constituições democráticas e nas convenções internacionais (CONDE, 2013).

Zaffaroni sugere uma reforma na compreensão do direito penal:

Se, na realidade, o direito penal sempre aceitou o conceito de inimigo e este é incompatível com o Estado de direito, o que na verdade seria adequado a ele seria uma renovação da doutrina penal corretora dos componentes autoritários que a acompanharam ao longo de quase todo o seu percurso [...], um ajuste do direito penal que o compatibilize com a teoria política que corresponde ao Estado constitucional de direito, depurando-o dos componentes próprios do Estado de polícia, incompatíveis com seus princípios. (ZAFFARONI, 2007, p. 25)

Um último alerta a ser feito é que a priorização do valor segurança como certeza acerca da conduta futura de alguém (que é uma das consequências da problemática do terrorismo) causa a despersonalização de toda a sociedade, que hoje tem que andar pelo mundo com a “precisão de movimento do gato doméstico em meio aos cristais” para não lesar o Fisco - por esquecer-se de registrar algum rendimento, por exemplo -, para não ser assaltado, para não comprar livros que possam ser vendidos por terroristas (ZAFFARONI, 2007).  Os meios de garantir a segurança acabam sendo um pretexto a mais para legitimar o controle social punitivo e fortalecem a sensação de medo (resultado inverso do desejado).


CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante de tudo que foi exposto, chega-se a uma conclusão a respeito do cenário atual no âmbito do combate ao terrorismo: está configurado e impregnado pela macrocriminalização (as leis antiterror tratam, na verdade, de crimes que já são tipificados pelo ordenamento jurídico, como o crime de ameaça), pela utilização extrema do Direito Penal, que em tese deveria ser mínimo, e pelo surgimento de normas penais diferenciadas para certos indivíduos, como é o caso da aplicação do Direito Penal do Inimigo a todos aqueles considerados suspeitos de terrorismo.

A impunidade para aqueles que efetivamente cometem crime contra a paz pública e causam reais danos aos seus pares não pode vigorar. No entanto, deve ser feita através da otimização de medidas que atendam aos princípios e garantias do Estado Democrático de Direito e aos princípios que regem as relações internacionais.

Percebe-se que o Direito Penal do Inimigo, que é um direito penal de exceção, infelizmente, foi incorporado com normalidade ao ordenamento jurídico mundial e, da forma que hoje é aplicado, visa, teoricamente, atender às expectativas da sociedade, como resposta ao medo e à insegurança generalizada.

Contudo, essa sistemática não funciona: as medidas de combate ao terrorismo são cada vez mais radicais, a intromissão na vida privada das pessoas, em maior ou menor grau, é fato já normalizado em diversos países, as respostas a tamanha repressão penal são cada vez mais agressivas, não há restauração social dos condenados, o ódio cresce e o número de atentados é crescente.

É preciso atentar para o fato de que as consequências da aplicação de um direito penal de exceção nunca são favoráveis. Pelo contrário, são negativamente muito profundas, fomentam o preconceito, a guerra e a segregação entre os povos, e ameaçam a democracia e a convivência justa e sadia no âmbito do Estado de Direito.

Além disso, ao se estabelecer a rotulação do inimigo, que é sempre arbitrária, como o liame de separação entre quem o é ou não se torna muito tênue, acaba que todos nós podemos ser considerados inimigos em potencial, o que põe em jogo garantias e direitos fundamentais que tanto nos são caros, como a liberdade.

A sensação é de absoluta ineficiência do sistema penal, do crescimento do sentimento de insegurança e de falha no combate ao terrorismo, que, diante da forte repressão penal em detrimento de um olhar mais humanitário e inteligente sobre suas causas, hoje amedronta toda a humanidade e faz inúmeras vítimas.


REFERÊNCIAS:

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  • BASSIOUNI. M. Cherif. Terrorismo: o persistente dilema da legitimidade. Revista Liberdades, n.06, janeiro/abrill de 2011 Disponível em: http://www.revistaliberdades.org.br/site/outrasEdicoes/outrasEdicoesExibir.php?rcon_id=75. Acesso em: 29 de julho de 2016.
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  • CARVALHO, Rafael Boldt de. Mídia, legislação penal especial e direitos fundamentais. Vitória, 2009.
  • CONDE, Francisco Muñoz. Direito na guerra contra o terrorismo: o Direito na guerra, o Direito Penal Internacional e o Direito da guerra dentro do Direito penal interno (Direito Penal do Inimigo). Revista Justiça e Sistema Criminal, v.05, n.09, p. 77-100, jul/dez. 2013.
  • COSTA, Antonio Luiz M. C. O mundo vive a era dos bisbilhoteiros: Carta Capital. Disponível em: http://www.cartacapital.com.br/revista/853/a-era-dos-bisbilhoteiros-5357.html. Acesso em: 28 de outubro de 2016.
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  • HOBBES, Thomas. Leviatã. Tradução de Rosina D’ Angina. 8. ed. São Paulo: Martin Claret, 2012.
  • JAKOBS, Günter. ¿Terroristas como personas em derecho?. In: MELIÁ, Manuel Cancio/Gómez-Jara Díez [coord.]. Direcho Penal del enemigo: el discurso penal de la exclusión. Vol. 02. Madrid: EDISOFER S.L., 2006.
  •  JAKOBS, Günther. Direito Penal do Inimigo. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2008, p.8.
  • MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. 20. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2011.
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  • SILVA, Rodrigo Lima e. Mídia e a Influência no Sistema Penal. Rio de Janeiro, 2014.
  • ZAFFARONI, Eugenio Raul. O inimigo no direito penal. Tradução de Sérgio Lamarão. 2. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2007 (Coleção Pensamento Criminológico).
  • ZAZMIERCZACK. Luiz Fernando. Paradigma punitivo: um diálogo com o Direito Penal do inimigo. Disponível em: http://www.publicadireito.com.br/artigos/?cod=23ef43a8ba7034f8. Acesso em: 04 de abril de 2016.


Notas

[1] A denominação Direito Penal do Inimigo também é conhecida como direito penal de terceira velocidade, expressão adotada por Silva Sanchez, que significa a punição com base no autor e não no ato praticado. Cada vez mais utilizado, o direito penal de terceira velocidade mescla a pena privativa de liberdade (como o faz o Direito Penal de primeira velocidade) com a permissão de que se flexibilizem garantias materiais e processuais (o que ocorre no âmbito do Direito Penal de segunda velocidade).

[2] “O infrator era um prisioneiro de sua própria patologia (determinismo biológico), ou de processos causais alheios (determinismo social). Ele era um escravo de sua carga hereditária: um animal selvagem e perigoso, que tinha uma regressão atávica e que, em muitas oportunidades, havia nascido criminoso”. (SHECAIRA, 2013, p. 47).

[3] Artigo 1.º da DUDH: Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos. Dotados de razão e de consciência, devem agir uns para com os outros em espírito de fraternidade.

[4] Disponível em: http://brasil.elpais.com/brasil/2015/09/16/internacional/1442421306_154702.html. Acesso em 13 de julho de 2016.

[5] Disponível em: https://br.sputniknews.com/mundo/201601203346736-policia-terrorista-menino-muculmano-Reino-Unido/ Acesso em 13 de julho de 2016.

[6] Na manhã de 11 de março de 2004, dias antes das eleições gerais espanholas, ocorreram três explosões coordenadas, quase simultâneas, contra o sistema de trens suburbanos da Cercanías, em Madrid, Espanha. 191 pessoas morreram e 2 050 ficaram feridas.

[7] Base naval norte- americana localizada em Cuba que ocupada um território na faixa de 117 km² e, desde 2001, é utilizada para deter “combatentes inimigos” - denominação dada pelo governo dos EUA -, afastando-se assim, dos direitos garantidos pelas Convenções de Genebra, tratados assinados entre 1864 e 1949. Em Guantánamo estão centenas de prisioneiros, advindos em sua maioria do Afeganistão e do Iraque. Além disso, a ONG Centro para os Direitos Constitucionais informa que existem presos com idades que variam de 13 a 80 anos. (Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Base_Naval_da_Ba%C3%ADa_de_Guant%C3%A1namo. Acesso em 13 de setembro de 2016).

[8] Disponível em: http://zh.clicrbs.com.br/rs/noticia/2013/11/ato-patriotico-americano-ganha-nova-versao-com-barack-obama-4320844.html. Acesso em 13 de setembro de 2016.

[9] A denominação Direito Penal do Inimigo também é conhecida como direito penal de terceira velocidade, expressão adotada por Silva Sanchez, que significa a punição com base no autor e não no ato praticado. Cada vez mais utilizado, o direito penal de terceira velocidade mescla a pena privativa de liberdade (como o faz o Direito Penal de primeira velocidade) com a permissão de que se flexibilizem garantias materiais e processuais (o que ocorre no âmbito do Direito Penal de segunda velocidade).



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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SANTANA, Blenda Henriques de. A contaminação do Estado democrático de direito pelo direito penal do inimigo: uma análise criminológica do terrorismo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5396, 10 abr. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/60114. Acesso em: 9 maio 2024.