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Dolo Eventual x Culpa Consciente

Dolo Eventual x Culpa Consciente

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Com avanço da tecnologia, os termos jurídicos têm cada vez mais se espalhado entre a população brasileira, isso se dá pela rapidez que as informações se propagam, sendo as redes sociais, sem dúvidas, o grande percussor. A problemática, está no fato de que embora grande parte do povo esteja em direto acesso a esses termos jurídicos, raramente conhecem seus significados, o que certamente causa confusão.

O caso da Boate Kiss, ocorrido em 2013, recentemente voltou a tomar espaço nas mídias, devido a minissérie lançada pela plataforma Netflix. À época do julgamento deste caso, em 2021, muito se discutiu se aos réus deveria se aplicar "dolo eventual" ou "culpa consciente", a população naturalmente ficou perdida, pois não sabiam o que isso significava.

Sendo assim, o artigo tem como missão desmitificar os conceitos de ambos na tentativa de elucidá-los, diferenciando o dolo eventual da culpa consciente, baseando-se nas fontes do Direito, com intuito de simplificar não somente para os operadores do Direito, mas para o público geral, que cada vez mais participa e se interessa por esse tipo de discussão.

Certamente haverá uma grande dificuldade em simplificar de modo que o leitor conclua esta leitura completamente esclarecido, isso se dá devido a tênue linha que separa os conceitos, valendo-se muitas vezes da necessidade de adentrar na psique mais íntima do indivíduo para conseguir resolver o caso concreto.

Em 1948, o grande penalista Nelson Hungria já alertava sobre esse traço comum:

Sensível é a diferença entre essas duas atitudes psíquicas. Há, entre elas, é certo, um traço comum: a previsão do resultado antijurídico; mas, enquanto no dolo eventual o agente presta a anuência ao advento dêsse resultado, preferindo arriscar-se a produzi-lo, ao invés de renunciar à ação, na culpa consciente, ao contrário, o agente repele, embora inconsideradamente, a hipótese de supereminência do resultado e empreende a ação na esperança ou persuasão de que êste não ocorrerá. (HUNGRIA, 1978, p. 116)

Assim, ainda que não exaustiva, vamos a diferenciação. Nas palavras do renomado autor de obras de Direito Penal, Rogério Sanches, a culpa consciente se demonstra no momento em que:

[...] o agente prevê o resultado, mas espera que ele não ocorra, supondo poder evitá-lo com a sua habilidade (mais previsibilidade, existe previsão). (CUNHA, 2012).

Neste viés, a culpa consciente tem sua classificação analisada e caracterizada mediante análise da intenção do agente, vejamos um exemplo prático de culpa consciente:

Um motorista está dirigindo em alta velocidade. Ele vê um pedestre atravessando a rua correndo, em sua frente. Ele sabe que poderá atropelar a pessoa, mas acredita que o pedestre conseguirá atravessar. (NASCIMENTO).

Diante dessa situação, constata-se que a vontade do agente, combinado com o risco que assumiu produzir, é o que torna culposa a infração, mostrando-se que o infrator na culpa consciente:

1ºNão pretendia que o resultado ocorresse;

2ºPreviu que o resultado poderia ocorrer, porém;

3ºNão assumiu o risco de produzir o resultado.

Já no que concerne ao dolo eventual, nos ensina Damásio de Jesus, que este acontece, quando o agente quer determinado resultado, sabendo que pode atingir outro e assume o risco de que este outro resultado venha a prosperar. Clássico exemplo doutrinário, é o do agente que causa lesões corporais, sabendo que pode matar a vítima, e assume este risco. Exemplificando:

Uma pessoa achou um relógio na praia, e o pegou para si. Ela sabe que aquele relógio pode ter sido perdido, ou pode ser de um banhista que está na água, mas ela o pega mesmo assim. O agente então assume o risco desse relógio ser de alguém, aceitando a possibilidade de cometer furto, apesar de não querer que seja. (NASCIMENTO).

Dessa forma, no dolo eventual, embora não pretendesse que o resultado ocorresse, o agente previa e assumiu o risco, devendo ser responsabilizado como se o quisesse:

1ºNão pretendia que o resultado ocorresse, mas;

2ºEle previu este resultado e;

3ºAssumiu o risco de produzir este resultado.

Restou evidente o quanto é tênue a linha que os separa, sendo que o que mais diferencia o dolo eventual da culpa consciente, é que no primeiro, o sujeito aceita a possibilidade do resultado, enquanto, no segundo, o agente acredita piamente que este resultado não irá acontecer.

Com intuito de demonstrar como a configuração de um, ou outro instituto pode acarretar mudanças radicais na pena em caso de condenação, vamos utilizar de exemplo o caso da Boate Kiss.

Como foi noticiado, e é de saber público, os réus do processo da Boate Kiss foram condenados pelo Tribunal do Júri de Porto Alegre, que admitiu a tese da acusação, de que houve sim o dolo eventual, sendo as penas fixadas entre 18 e 22 anos.

Isso aconteceu porque a legislação prevê uma pena de 6 a 30 anos quando se trata do homicídio doloso. Contrapartida, se a tese da defesa fosse admitida pelos jurados, e se reconhecessem que os réus agiram com culpa, a pena imposta aos réus não poderia ser superior a três anos. É o que diz o artigo 121 do Código Penal:

Art 121. Matar alguém: Homicídio simples Pena – reclusão, de seis a vinte anos. Homicídio qualificado Pena – reclusão, de doze a trinta anos. Homicídio culposo § 3º Se o homicídio é culposo: (Vide Lei nº 4.611, de 1965) Pena – detenção, de um a três anos.

Notamos assim, que embora a popularização dos assuntos jurídicos esteja cada vez mais evidente, ao se tratar do impacto resultante na vida dos indivíduos é necessário que haja cautela.

O pré-conceito é natural da sociedade brasileira, bem como dos seres humanos, isso, em consonância com a vulgarização dos termos jurídicos e a divulgação desenfreada de informações, que condenam antes do julgamento, são dos tantos, os mais novos desafios que os operadores do Direito estão tendo que aprender a lidar.

Referências:

BRASIL. Decreto-Lei 2.848, de 07 de dezembro de 1940. Código Penal. Diário Oficial da União, Rio de Janeiro, 31 dez. 1940. Acesso em 30/01/2023. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848compilado.htm

CUNHA, Rogério Sanches. 4º dia do grupo de estudos para o MP. 2012. Acesso em 30/01/2023. Disponível em: https://rogeriosanches2.jusbrasil.com.br/artigos/121814948/4-dia-do-grupo-do-estudos-para-o-mp

HUNGRIA, Nélson. Comentários ao código penal, v. I, Tomo II. 5ª Ed. Rio de Janeiro: Forense, 1978.

JESUS, Damásio de. Direito Penal – Parte Geral. São Paulo: Saraiva, 2011.

NASCIMENTO, Raphael. Dolo direto, dolo eventual, culpa consciente e culpa inconsciente. Acesso em 30/01/2023. Disponível em: https://www.diferenca.com/dolo-direto-dolo-eventual-culpa-consciente-e-culpa-inconsciente/



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