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Stealthing: quais os reflexos jurídicos decorrentes dessa prática?

Stealthing: quais os reflexos jurídicos decorrentes dessa prática?

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Stealthing é a remoção do preservativo durante a relação sexual, sem o consentimento de uma das partes.

Resumo: De plano, busca-se conceituar o que é o Stealthing e sua origem, em seguida, é feito uma análise jurídica dos seus efeitos na esfera Cível e também na Penal, comparando a prática do Stealthing com o Estupro e com o sexo mediante fraude, chegando à conclusão de que apesar de haver similitude entre tais condutas, não se trata do mesmo tipo penal, por fim, após essas digressões, nota-se que não há um tipo penal para essa conduta, ao contrário, o que há é uma omissão legislativa na seara penal e em virtude disso existe a necessidade de se punir essa prática em atenção ao Princípio da Proteção deficiente. A pesquisa baseou-se no método dedutivo através de uma abordagem qualitativa. Trata-se de uma revisão de literatura, e de uma pesquisa exploratória. A coleta de dados foi realizada através de um levantamento bibliográfico, através de livros, artigos científicos, revistas eletrônicas, jurisprudências do texto Constitucional. O autor buscou respeitar os aspectos éticos da pesquisa, comprometendo-se a referenciar devidamente toda a literatura consultada.

Palavras-Chave: Violência doméstica. Novo tipo penal. Analogia extensiva. Estupro. Efeitos jurídicos.

Sumário: INTRODUÇÃO. CAPÍTULO 1 – APLICAÇÃO DO STEALTHING NA SEARA PENAL. 1.1- O QUE É STEALTHING. 1.2 – As consequências do Stealthing. 1.3 – Qual o tipo penal se amolda a prática do stealthing. 1.3.1 – Analogia In malam partem ou interpretação analógica?. CAPÍTULO 2 – OS EFEITOS JURÍDICOS DECORRENTE DA OMISSÃO LEGISLATIVA. 2.1 – Mora legislativa (homofobia e o racismo). 2.2 - Princípio do In dúbio pro réu. 2.3 - Princípio da vedação a proteção deficiente e o Princípio da fragmentariedade. 2.3.1 – Direito Penal da Urgência ou emergência. 2.4 – Criação de um novo tipo penal. 2.5 – Reparação civil pelos danos sofridos. CAPÍTULO 3 – ASPECTOS SOCIAIS PSICOLÓGICOS DECORRENTES DO STEALTHING. 3.1 – A gravidez oriunda do stealthing. 3.2 - Os danos psicológicos causados pela transmissão do vírus HIV.. 3.3 Análise psicológica quanto a origem do stealthing. 3.4 Stealthing no Brasil. CONCLUSÃO. REFERÊNCIAS.


INTRODUÇÃO

O presente trabalho versa sobre uma nova forma de violência doméstica e sexual que se tem discutido no cenário jurídico nacional e internacional. Inicialmente é conceituado o que se entende por Stealthing e a partir desse momento analisamos os aspectos jurídicos na seara penal, dessa prática que apesar de ser corriqueira ainda pouco é discutida. Além disso, há uma abordagem dos possíveis efeitos na esfera patrimonial, moral e psicológica do indivíduo que é vítima dessa prática.

Em seguida, é abordado quais tipos penais existentes no Brasil podem se amalgamar a essa conduta e, se não houver nenhum tipo penal, qual seria a solução jurídica viável para tutelar esse bem jurídico? A criação de um novo tipo penal é a solução desse problema? Nessa toada, é discutido ainda a criação do Artigo 213 - A do Código Penal Brasileiro, que se originou de outra prática sexual existente no Brasil, mas que ao chegar aos fóruns e tribunais brasileiros não se tinha uma solução àquela prática, visto que, uma mesma conduta poderia se enquadrar em diversos tipos penais e diante dessa celeuma jurídica e omissão legislativa, a solução que foi dada como resposta aos praticantes dos atos libidinosos em transportes público foi a criação de um novo tipo penal.

Sem fugir do aspecto criminal, mas dessa vez partindo para a jurisprudência dos Tribunais Pátrios, é feito uma comparação entre o estupro e o stealthing, posto que, no caso de estupro, é plenamente possível que a vítima possa abortar, já no caso do stealthing, é possível que essa prática inicialmente comece por um tipo penal que não seja o estupro para ele. Nesse diapasão, se valendo de analogia, analisa-se a possibilidade de que a prática do aborto também possa ser estendida às vítimas dessa violência.

Sem esgotar o tema, são trazidos os efeitos jurídicos que a prática pode reverberar no ramo do Direito Civil, como por exemplo, se é possível se falar em indenização, a partir de que momento é possível aferir a lesão à bem jurídico, discutindo ainda nesse cenário, se existe a possibilidade ou não de se tratar o autor do possível delito como portador de transtorno mental, ou se é apenas um desvio de conduta.

Por fim, é feito uma análise político - social do stealthing, o que motiva o agressor a violar padrões éticos e morais/sociais para apenas satisfazer suas lascivas. A violência sexual oriunda do stealthing guarda relação com o rol de violência da Lei Maria da Penha? Essa prática merece os olhares do poder público e do legislador, com vias a sanar a omissão legislativa e proteger o direito a liberdade sexual da vítima, e assim garantir que ela tenha direito a uma saúde plena e ao direito do planejamento familiar.


CAPÍTULO 1 – APLICAÇÃO DO STEALTHING NA SEARA PENAL

1.1 - O QUE É STEALTHING

A expressão stealthing vem do inglês que traduzido para o português significa furtiva, porém, é possível entender também como dissimulação. O stealthing pode ser conceituado como a prática sexual da remoção do preservativo sem que uma das partes da relação consinta, em suma, o ato sexual foi consentido por ambas as partes, até esse momento não há dolo, fraude ou má-fé, mas sim voluntariedade de todos os envolvidos, porém, no curso do ato sexual, sem que o outro saiba ou consinta, o parceiro sexual remove o preservativo e continua a praticar o ato.

Essa expressão foi cunhada pela advogada Americana Alexandra Brodsky, que após produzir um artigo cientifico e publicar no periódico Columbia Journalof Genderand Law, pôde comprovar que além de essa prática não ser tão recente quanto pareça ser, ela é corriqueira, mas pouco falada ou discutida. Após publicação do trabalho de Alexandra houve grande repercussão internacional, pois as pessoas que foram vítimas dessa prática começaram a se manifestar e relatar os abusos que haviam sofrido, além disso, houve quem defendesse a prática alegando ser seu “direito natural de homem de espalhar sua semente”. Pôde-se notar a existência de grupos em redes sociais, geralmente composto por homens, onde uns ensinam aos outros como tirar o preservativo sem que o parceiro ou parceira perceba.

Diante dessa sucessão de fatos, apesar de absurdo, imoral e antiético, há aqueles que se valendo de falso Direito praticam essa conduta e sequer há uma repressão estatal, quer seja por as vítimas não saberem que é possível uma reprimenda civil e penal, ou pelo fato de não haver informações suficientes acerca dessa prática.

1.2 – AS CONSEQUÊNCIAS DO STEALTHING

Pode parecer simples, mas o stealthing não começa e se esgota na mera remoção do preservativo, há efeitos que desse ato decorrem tais como a transmissão de doenças sexualmente transmissíveis e, no caso da relação heterossexual, a gravidez. No primeiro caso, se a vítima tivesse consciência de que o ato sexual foi cometido sem a utilização de preservativo, ela poderia, tempestivamente, procurar um hospital ou posto de saúde para amenizar ou eliminar os riscos de contração de doença. É comum que sequer a pessoa saiba que foi vítima de stealthing e só vai tomar ciência de que é portadora da doença anos depois, quando não é mais possível a eliminação do vírus transmitido no ato sexual, mas apenas o convívio com ele.

A Empresária Luciane Santos de Souza já foi vítima dessa prática. Ela afirma que em estava em uma festa, ingeria bebida alcoólica e conheceu um indivíduo. Eles foram para casa da empresária e ao chegar ao local de forma consentida mantiveram relação sexual. Ocorre que antes do ato ela abriu o pacote do preservativo e entregou ao indivíduo, em sinal claro de que havia interesse de que só manteria relações sexuais com ele caso fosse sexo seguro.

No caso da gravidez a situação é ainda mais gravosa, vejamos: Se a vitima dessa prática tiver noção de que o indivíduo removeu o preservativo ela poderia se valer de métodos anticonceptivos para evitar uma gravidez ou gestação. Como supramencionado, há casos em que não é possível aferir a conduta dolosa do autor, desse modo, impossibilitando a prática de atos com vistas a reduzir ou eliminar efeitos deletérios, dessa forma, advindo uma gravidez indesejada. O ponto nevrálgico da discussão reside no seguinte fato, caso a vítima não queira dar a luz aquela criança, ela tem direito de abortar?

No ordenamento jurídico brasileiro, é cediça a possibilidade de uma mulher vítima de estupro abortar quando aquele feto é oriundo de um estupro, tal disposição encontra resguardo no Artigo 128, Inciso II do Código Penal brasileiro, conforme transcreve Rogério Sanches (2018, p 231):

“Art. 128 - Não se pune o aborto praticado por médico: (Vide ADPF 54)

Aborto necessário:

I - se não há outro meio de salvar a vida da gestante;

Aborto no caso de gravidez resultante de estupro.

II - se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal.”

Ocorre que não ficou decidido em qual tipo penal o stealthing é classificado. Se cogitarmos a possibilidade de o estupro ser a conduta originada dessa prática, estar-se-ia diante da possibilidade de aborto, porém, há correntes doutrinárias que afirmam que esse comportamento é a subsunção do fato contido no Artigo 215 do mesmo Diploma Legal repressivo, que é o crime de violação sexual mediante fraude.

1.3 – A QUAL O TIPO PENAL SE AMOLDA A PRÁTICA DO STEALTHING

Como visto supra, não se tem uma conclusão doutrinária acerca do tipo penal ou do crime que comete aquele que pratica essa conduta. De um lado nós temos uma corrente que defende a existência do crime de Violação sexual mediante fraude, conforme inteligência do Artigo 215 do Código Penal que traz a seguinte redação:

“Art. 215. Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com alguém, mediante fraude ou outro meio que impeça ou dificulte a livre manifestação de vontade da vítima:

Pena - reclusão, de 2 a 6 anos”.( SANCHES. 2018. p. 235)

É possível extrair desse artigo alguns elementos atinentes ao Direito Penal, a exemplo do dolo especifico, ou seja, um especial fim de agir. É necessário que a conjunção seja mediante fraude ou outro meio que impeça a dificuldade de manifestação da vontade da vítima. De fato, esse dispositivo é o que mais se assemelha a conduta daqueles que praticam o stealthing, porém, é importante lembrar que o ato libidono, inicialmente foi consentido, ou seja, não houve fraude nem outro ardil capaz de configurar tal artigo, desse modo, uma parte da doutrina entende que não se deva aplicar tal dispositivo ao caso concreto.

O doutrinador Rogério Sanches Cunha, que também é Promotor de Justiça no Estado de São Paulo, deixa bem claro que esse crime não é hediondo, sequer equiparado, diferente do que ocorre no crime de estupro, contido no Artigo 213. O exemplo hipotético que ele traz é o caso de irmãos gêmeos, um se passa pelo outro no dia da lua de mel, então a noiva não percebe que se trata do irmão do seu marido e consuma o ato sexual. Note que nesse caso a vítima queria consumar o ato sexual, porém, desde o início até o fim da execução do delito, a vítima teve uma falsa percepção de realidade, o que, nesse caso, difere do stealthing, em que o sexo era consentido, não houve fraude antes, mas sim durante o ato.

O Promotor de Justiça do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT) Valmir Soares Santos classifica o stealthing como uma relação sexual consentida que em princípio tinha uma condição especial que é o uso do preservativo e durante o ato sexual o parceiro o retira sem o consentimento da outra pessoa. Para ele se trata de um crime de abuso de confiança por envolver pessoas que em princípio tem alguma consciência capaz de que venham a praticar um ato sexual.

Há uma outra corrente que defende a possibilidade de configurar o estupro que tem como elemento do tipo a violência. Todavia, a existência do estupro só seria possível em um caso específico. O delegado de polícia civil Lúcio Fagner Chagas Valente afirma que, a tipificação de determinada conduta vai variar de acordo com o caso concreto. No primeiro momento se a pratica é consentida por pessoa de idade igual ou superior a 14 anos, havendo consentimento do ato com preservativo e o indivíduo de forma dissimulada retira o preservativo, a adequação típica melhor seria o Artigo 215 do Código Penal (Violação sexual mediante fraude/ estelionato sexual). Todavia, se a vítima perceber a ação de retirada do preservativo e ela se negar e houver o emprego de violência para que o ato sexual continue, nesse caso haveria que se falar em estupro, é o que preconiza Rogério Sanches (2018, p. 232):

“Art. 213. Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso: (Redação dada pela Lei nº 12.015, de 2009)

Pena - reclusão, de 6 (seis) a 10 (dez) anos. (Redação dada pela Lei nº 12.015, de 2009) § 1º Se da conduta resulta lesão corporal de natureza grave ou se a vítima é menor de 18 (dezoito) ou maior de 14 (catorze) anos: (Incluído pela Lei nº 12.015, de 2009)

Pena - reclusão, de 8 (oito) a 12 (doze) anos.

§ 2º Se da conduta resulta morte: (Incluído pela Lei nº 12.015, de 2009) Pena - reclusão, de 12 (doze) a 30 (trinta) anos (Incluído pela Lei nº 12.015, de 2009).”

Desse modo, é plenamente possível a afirmação de que do stealthing pode resultar o estupro, pois a violência não reside no fato da remoção do preservativo, mas sim, na percepção por parte da vítima de que houve a remoção. Ao percebê-la, ele ou ela se recusa a continuar o ato e o autor do delito pra concluir seu intento se vale de violência para imobilizar ou impossibilitar a manifestação de vontade da vítima.

Após toda essa discussão, mesmo a corrente majoritária ser a de que o stealthing pode configurar o crime de violação sexual mediante fraude, além de não haver nada pacífico há outras discussões que fogem das condutas e buscam amparos em princípios Penais e Constitucionais. De plano, é importante lembrar que o Direito Penal se vale da legalidade estrita ou restrita e esse comando não esta retido em leis esparsas ou apenas no Código Penal, ao contrário, o comando de que, os crimes e suas condutas devem estar previsto encontra amparo constitucional, ganhando, inclusive, status de Direito Fundamental, senão vejamos o que diz a doutrinadora Helly Lopes Meirelles (2013, p.59 apud MEIRELLES):

“Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

XXXIX - não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal;”

Então, é possível afirmar que a própria Constituição Federal alberga o principio da legalidade estrita ao afirmar que todo o crime precede lei e toda pena carece de expressa previsão legal, mais ainda não se pode ou se deve fazer analogia para equiparar uma conduta a um crime já previsto, a doutrina chama isso de analogia in malam partem.

1.3.1 – Analogia In Malam Partem ou Interpretação Analógica?

Como supramencionado, o Direito Penal não admite no ordenamento jurídico brasileiro a chamada analogia in malam partem, ao contrário, admite interpretação analógica, o ponto nevrálgico desse debate é: O que difere uma coisa da outra? É necessário então conceituarmos um instituto, analisarmos o outro e, com base nessa digressão, afirmamos ser possível aplicar o disposto no Artigo 215 do Código Penal, qual seja violação sexual mediante fraude à conduta do stealthing.

Para o Professor e Doutrinador Luiz Flávio Gomes, analogia in malam é conceituado como:

“Em caso de omissão do legislador quanto à determinada conduta, aplica-se a analogia, sendo que a analogia in malam partem é aquela onde adota-se lei prejudicial ao réu, reguladora de caso semelhante.

Trata-se de medida com aplicação impossível no Direito Penal moderno, pois este é defensor do Princípio da Reserva Legal, e ademais, lei que restringe direitos não se admite analogia.” (GOMES. 2015. p 96)

Como já mencionado, é impossível a aplicação da analogia in malam partem no Direito Penal Brasileiro, porém, é admissível a interpretação analógica que tem seu conceito e aplicação trazido pelo Penalista Guilherme de Souza Nucci, vejamos:

“O Código de Processo Penal admite, expressamente, a interpretação extensiva, pouco importando se para beneficiar ou prejudicar o réu, o mesmo valendo no tocante à analogia. Pode-se, pois, concluir que, admitido o mais – que é a analogia –, cabe também a aplicação da interpretação analógica, que é o menos. Interpretação é o processo lógico para estabelecer o sentido e a vontade da lei. A interpretação extensiva é a ampliação do conteúdo da lei, efetivada pelo aplicador do direito, quando a norma disse menos do que deveria. Tem por fim dar-lhe sentido razoável, conforme os motivos para os quais foi criada. Ex.: quando se cuida das causas de suspeição do juiz (art. 254, CPP), deve-se incluir também o jurado, que não deixa de ser um magistrado, embora leigo. Onde se menciona no Código de Processo Penal a palavra réu, para o fim de obter liberdade provisória, é natural incluir-se indiciado. Amplia-se o conteúdo do termo para alcançar o autêntico sentido da norma. A interpretação analógica é um processo de interpretação, usando a semelhança indicada pela própria lei.” (NUCCI. 2017. p. 9)

Dito isso, é possível visualizar uma linha tênue entre um instituto e outro, no primeiro, a analogia é feita quando não se tem uma norma recriminadora existente e o aplicador da lei, se valendo dessa discricionariedade, aplicará uma norma ao caso concreto, diferente ocorre no caso de interpretação analógica, pois nesse contexto há a norma e ela falou menos do que deveria, elencou algumas condutas, não todas, nessa situação o operador do Direito vai alargar aquele rol de condutas para abarcar aquela que guarda semelhança com as trazidas pelo legislador ordinário, aplicando-se assim, àquela norma a uma conduta que não foi originariamente prevista.

Fato é que é impossível fazer uma distinção entre objetiva entre um instituto e outro sem que se viole o principio da legalidade estrita, pois em ambos os casos o legislador se omitiu e, havendo omissão legislativa, há outros instrumentos constitucionais capazes de elide essa mora legislativa: O Mandado de Injunção ou até mesmo a Ação Declaratória de Inconstitucionalidade por Omissão. Significa dizer que mesmo aplicando a interpretação analógica, que é admitida pelo nosso ordenamento jurídico, haveria um vício capaz de violar Direitos Humanos e fundamentais. Tal conduta, de plano, além de inconstitucional, permitiria então ao aplicador da Lei amoldar toda e qualquer conduta a um tipo penal preexistente sob a alegação de que o legislador originário admitiu que ele fizesse interpretação analógica e, com isso, além de violar o principio da reserva legal, violaria a segurança jurídica, pois o indivíduo estaria cometendo um crime sem sequer saber que aquela conduta era lesiva.


CAPÍTULO 2 – OS EFEITOS JURÍDICOS DECORRENTES DA OMISSÃO LEGISLATIVA

A Constituição da República Federativa do Brasil determina de forma expressa que, o Estado deverá legislar para proteger seus cidadãos e reprimir violências, quando o Estado não cumpre seu dever constitucional, surge para o cidadão a possibilidade de cobrar, junto ao Supremo Tribunal Federal (STF) que lhe seja dado um provimento judicial. Os mecanismos que dispomos é o Mandado de Injunção que é um remédio constitucional que tem o condão de obrigar o estado a equiparar uma lei existente há um caso que não está regulamentado, como ocorreu com o Direito de greve dos servidores públicos, que tinham o direito, mas não tinham uma norma que regulamenta.

Visando proteger o Direito da Coletividade, o Constituinte originário criou a Ação Declaratória de Inconstitucionalidade por omissão, ou seja, nessa situação não se está diante de um caso concreto, mas visando evitar celeumas jurídicas futuras, cria-se instrumentos jurídicos para que legitimados universais tutela direito difusos e coletivos, diante disso, surge a discussão, o Poder Legislativo deve criar norma no sentido de proteger as vítimas de Stealthing?

2.1 – MORA LEGISLATIVA (HOMOFOBIA E O RACISMO)

Ficou assentado que, no caso em tela, é impossível o julgador fazer analogia ou até mesmo interpretação extensiva do stealthing para amolda-lo a uma das condutas dos Artigos 213 (estupro) ou Artigo 215 (violação sexual mediante fraude), há que se concordar que, nos dois casos, é possível vislumbrar que há uma semelhança entre as condutas do tipo penal e a do stealthing. Ocorre que, o Supremo Tribunal Federal (STF), é o órgão legítimo para admitir que se aplique um tipo penal a uma conduta já prevista, nesse caso, modulando os efeitos ex nunc, ou seja, que não retroaja, que a norma passe a valer daquele momento para o futuro em homenagem ao princípio da irretroatividade da lei penal. Um exemplo recente em que o STF foi instado a manifestar-se foi o caso de equiparar a homofobia ao racismo. Ao julgar a ADO 26 o STF fez interpretação extensiva e passou a entender que os atos de homofobia deverão ser considerados como crime de racismo, previsto na Lei 7.716/1989, vejamos a tese:

“Decisão: O Tribunal, por unanimidade, conheceu parcialmente da ação direta de inconstitucionalidade por omissão. Por maioria e nessa extensão, julgou-a procedente, com eficácia geral e efeito vinculante, para: a) reconhecer o estado de mora inconstitucional do Congresso Nacional na implementação da prestação legislativa destinada a cumprir o mandado de incriminação a que se referem os incisos XLI e XLII do art. 5º da Constituição, para efeito de proteção penal aos integrantes do grupo LGBT; b) declarar, em consequência, a existência de omissão normativa inconstitucional do Poder Legislativo da União; c) cientificar o Congresso Nacional, para os fins e efeitos a que se refere o art. 103, § 2º, da Constituição c/c o art. 12-H, caput, da Lei nº 9.868/99; d) dar interpretação conforme à Constituição, em face dos mandados constitucionais de incriminação inscritos nos incisos XLI e XLII do art. 5º da Carta Política, para enquadrar a homofobia e a transfobia, qualquer que seja a forma de sua” (PORTAL STF, 2019).

Desse modo, é correto afirmar que, não pode um juiz de primeiro grau ou até mesmo um delegado de policia civil, no curso da investigação criminal, entender que o Stealthing se subsume a conduta contida em um dos vários Artigos do Código Penal e aplicá-lo indistintamente.

Fato é que temos uma conduta, um bem jurídico lesado, bem esse que não esta sendo tutelado pelo poder público legislador, há uma mora e uma discussão pujante acerca dessa matéria.

Do mesmo modo que ocorreu com a homofobia, que foi necessário que a Corte Suprema do Brasil decidisse que, até que o poder legislativo cumpra seu papel, aplicar-se-á aos casos de homofobia, a lei do crime de racismo. A Suprema Corte não legislou, apenas reconheceu a omissão legislativa e a lesão ao bem jurídico.

2.2 - PRINCÍPIO DO IN DÚBIO PRO RÉU

É comum no Direito Penal, vermos a presença do princípio do in dúbio pro réu, ou seja, nos casos em que o julgador tem dúvida, deve decidir a favor do réu. Como já mencionamos, não há como afirmar de forma categórica qual o dispositivo penal deva ser aplicado, mas, havendo uma discussão acerca disso, devemos olhar para a pena em abstrato e optar pela aplicação do disposto no Caput do Artigo 215 do Código Penal que traz as penas de 2 (dois) a 6 (seis anos) de reclusão, diverso do crime de estupro previsto no Artigo 213 que tem como pena de 6 (seis) a 10 (dez) anos.

Dito isso, surge uma nova discussão, no caso do estelionato sexual (ou violação sexual mediante fraude) a vítima queria que houvesse a relação sexual, todavia ela foi enganada, incidindo em erro de fato, pelo agente violador, se não houvesse essa fraude, esse erro em que ela incidiu, com certeza ela não teria se relacionado com aquele indivíduo, no stealthing é o outro lado do espectro, a vítima queria ter a relação sexual com aquele indivíduo, não houve fraude e sequer ela se equivocou quanto a realidade dos fatos, o que houve é que, no curso da conjunção carnal, o autor, se valendo e ardil, sem que a vitima percebesse, remove o preservativo. Percebemos então que a vítima não teve sua vontade viciada. Diante dessa situação, é acertado afirmar que são tipos penais distintos que merecem reprimendas distintas.

O réu goza ainda, em seu favor do Artigo 21, Caput do Código Penal que é categórico ao afirmar que o desconhecimento da lei é inescusável, ou seja, não pode ser usado como argumento, vejamos o que diz tal dispositivo, nas palavras do Doutrinador Cleber Masson:

“Art. 21 - O desconhecimento da lei é inescusável. O erro sobre a ilicitude do fato, se inevitável, isenta de pena; se evitável, poderá diminuí-la de um sexto a um terço. (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)

Parágrafo único - Considera-se evitável o erro se o agente atua ou se omite sem a consciência da ilicitude do fato, quando lhe era possível, nas circunstâncias, ter ou atingir essa consciência.” (MASSON. 2018 p. 322)

Significa dizer que, se o indivíduo pratica o stealthing, ele poderá dizer que não sabia que aquela conduta era criminosa e esse argumento será válido. Sua validade decorre do próprio Artigo 21, que diz que o desconhecimento da lei é inescusável, ora, se não há lei, não há crime. Fazer analogia ou interpretação analógica é reconhecer que não há lei sobre aquela matéria.

Quanto a tese de defesa, é possível alegar ausência de culpa ou de dolo, que são elementos essenciais do tipo penal, conforme leciona a doutrina de Masson:

“Dolo é a vontade consciente dirigida a realizar (ou aceitar realizar) a conduta prevista no tipo penal incriminador. De acordo com a maioria, trata-se de elemento subjetivo implícito da conduta.

O crime culposo consiste numa conduta voluntária que realiza um fato ilícito não querido pelo agente, mas que foi por ele previsto (culpa consciente) ou lhe era previsível (culpa inconsciente) e que podia ser evitado se o agente atuasse com o devido cuidado. Percebe-se que o agente viola dever de cuidado objetivo.” (MASSON. 2018. P 236)

O crime, no Brasil, adota a teoria tripartite: fato típico, ilícito e culpável. Não havendo dolo e nem culpa, o último elemento do tipo penal estará ausente, estando ausente, não há que se falar em crime.

Mesmo diante de todas essas teses defensivas, subsiste ainda a omissão legislativa, a lesão a bem jurídico e a necessidade de legislar sobre a matéria, pois apesar de pouco falado a prática é recorrente e as vítimas desse delito não sabem a quem e nem como buscar auxílio jurídico, o que faz com que os autores dessa prática se sintam protegidos e livres para cometer esse ilícito, que por mais que não seja penal, certamente ele reverbera na esfera civil do ofendido.

2.3 - PRINCÍPIO DA VEDAÇÃO À PROTEÇÃO DEFICIENTE E O PRINCÍPIO DA FRAGMENTARIEDADE

Falando de princípios, há o principio da vedação a proteção deficiente e concomitante a isso, no ramo do Direito Penal, há o princípio da fragmentariedade. No primeiro caso, é princípio geral de Direito e se aplica a todos os ramos do nosso ordenamento jurídico, ele visa, de forma resumida, que todos os comandos constitucionais que prevêem ou determinam que o legislador crie normas para proteger determinado bem ou coibir outras práticas, deva ser uma proteção efetiva, não basta que o legislador crie a lei, mas sim que a lei seja efetiva e tutela os bens previstos na nossa constituição. De modo semelhante, o princípio da fragmentariedade aduz que, todos os bens jurídicos devam ser protegidos, porém, o Direito Penal só vai se preocupar com aqueles bens de maior valor para a sociedade. Em suma, não se deve legislar por legislar, não se pode criminalizar por criminalizar. Nessa esteira a vedação da proteção deficiente é conceituada pelo Ministro do Supremo Tribunal Federal, Luiz Roberto Barroso da seguinte forma:

“A proibição deficiente consiste em não se permitir uma deficiência na prestação legislativa, de modo a desproteger bens jurídicos fundamentais. Nessa medida, seria patentemente inconstitucional, por afronta à proporcionalidade, lei que pretendesse descriminalizar o aborto. Portanto, em linhas gerais, percebe-se que a inconstitucionalidade pode ser decorrente de excesso do Estado ou por falta deste.” (BARROSO, 2017. P 69).

Em contrapartida, no outro lado do espectro temos o princípio da proibição do excesso que é consubstanciado com o princípio da fragmentariedade. O primeiro veda que se legisle tipificando condutas criminosas de toda e qualquer ação, o segundo que serve de freio, o da fragmentariedade do Direito Penal, aduz que o Direito Penal só deve se preocupar, de fato, com aquelas condutas que os demais ramos do Direito abandona, por esse motivo também é chamada de subsidiariedade, ou seja, o Direito Penal só prevê e recrimina condutas, assim é entendido por Cezar Roberto Bittencourt, como:

“O Direito Penal só se aplica em último caso, isto é, só se recorre ao Direito Penal quando os outros ramos do Direito não consigam proteger um determinado bem jurídico. É uma questão lógica e – além de ligada às garantias individuais – decorrente da idéia de eficiência do Estado: não se justifica aplicar um meio mais pesado se para proteger o bem jurídico um menos grave tem a mesma ou melhor repercussão.” (BITTENCOURT, 2012. P 44)

Percebe-se desse modo que o legislador está vinculado a valores e princípios axiológicos que vedam a criação indistinta de tipos penais de forma desnecessária, então exsurge pro legislador a necessidade de observar alguns requisitos para que ele possa legislar, são eles:

  • a) Lesão a bem jurídico;

  • b) Ausência de proteção por outros ramos do Direito;

  • c) Princípio programático ou mandamental previsto na constituição;

  • d) Interesse público ou social.

Sem um desses requisitos, não é necessário que o poder legislativo desperte, pois para que determinada conduta careça de proteção legal, a constituição deve prever, ainda que de forma implícita, tem que haver a lesão a um bem jurídico e, desde que essa lesão não já encontre reprimenda sob pena de configura o bis in idem, ou seja, punir o mesmo indivíduo, duas vezes, pelo mesmo fato.

2.3.1 – Direito Penal da Urgência ou Emergência

Não é incomum, numa sociedade que tem como fito, o encarceramento em massa, quando surge uma conduta que não esta prevista em lei, o legislador, ao invés de buscar soluções para coibir aquelas práticas, ele cria lei punitivas, a isso, é dado o nome de Direito Penal da emergência, vejamos o conceito:

“O direito de emergência é utilizado para emplacar tudo aquilo que gerar medo e pânico nas pessoas, contra o inimigo do momento, como por exemplo o terrorismo, fica dever do estado dar um parecer e apresentar planos nos casos necessários para afastar e punir o terror gerado. Isto ocorre em casos muitos específicos, algo passageiro, acidental, algo fora daquilo que é corrente, corriqueiro que exige uma atuação imediata.” (MOCCIA, p. 62)

Trocando em miúdos, o Estado - Legislador não se preocupa em implementar políticas públicas capazes de reduzir ou coibir as más práticas, ao contrário, tipifica aquelas condutas como crime e joga na mão da sociedade. Seria mais fácil a criação e implementação de um programa de educação dos efeitos colaterais que essa prática pode trazer e os prejuízos que dela advém, tanto para quem pratica quanto para quem é vítima.

Um exemplo de grande repercussão acerca do Direito Penal da emergência, no Brasil, foi o caso de homens que dentro de transportes coletivos praticavam ato libidinoso de ejacular em passageiras. Naquela circunstância, o motorista do ônibus chamou a polícia e o infrator foi preso, porém, foi posto em liberdade logo em seguida, uma vez que o juiz da causa entendeu que aquela conduta se tratava da contravenção penal de importunação ofensiva ao pudor, previsto no Artigo 61 do Decreto 3.688/1941 que traz a seguinte redação:

“Art. 61. Importunar alguém, em lugar público ou acessível ao público, de modo ofensivo ao pudor:

Pena – multa.”

Nessa situação, discutiu-se no mundo jurídico se o ato ali praticado poderia ser o tipo penal do Artigo 213 do Código Penal, qual seja, o estupro. Essa corrente foi rechaçada de plano em razão de, naquele caso, não haver violência e, mesmo que houvesse violência, feriria o princípio da proporcionalidade. Porém, outra linha defendia que a infração penal ali praticada seria o do Artigo 146 que aduz o crime de constrangimento ilegal com a seguinte redação extraída do Código Penal, vejamos a transcrição do Código Penal:

“Art. 146 - Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, ou depois de lhe haver reduzido, por qualquer outro meio, a capacidade de resistência, a não fazer o que a lei permite, ou a fazer o que ela não manda:

Pena - detenção, de três meses a um ano, ou multa.

Aumento de pena

§ 1º - As penas aplicam-se cumulativamente e em dobro, quando, para a execução do crime, se reúnem mais de três pessoas, ou há emprego de armas.

§ 2º - Além das penas cominadas, aplicam-se as correspondentes à violência.

§ 3º - Não se compreendem na disposição deste artigo:

I - a intervenção médica ou cirúrgica, sem o consentimento do paciente ou de seu representante legal, se justificada por iminente perigo de vida;

II - a coação exercida para impedir suicídio.”

Diferentemente do que ocorreu no estupro, no caso de constrangimento ilegal, cujas penas variam de três meses a um ano, houve uma aceitação posto que, diferente da contravenção de importunação ofensiva ao pudor que previa apenas pena de multa. Desse modo, haveria uma proporcionalidade entre a conduta e o resultado obtido.

A discussão sob qual crime estaria ali previsto não se encerrou ali. Diziam que não poderia aplicar o Artigo 146 pelos seguintes motivos:

  • a) Não se pode fazer analogia in malam partem;

  • b) O fato é atípico por ausência de previsão legal

Desse modo, buscou-se então a tentar encontrar outro tipo penal para aquela conduta, exsurgindo assim uma nova corrente, dessa vez, falou-se em aplicação do Artigo 233 do Código Penal que reproduz o delito de ato obsceno:

“Art. 233 - Praticar ato obsceno em lugar público, ou aberto ou exposto ao público:

Pena - detenção, de três meses a um ano, ou multa.”

Mesmo com toda essa discussão, não se chegou a lugar algum, aquela conduta não tinha um tipo penal especifico a ser aplicado. Para quem defende seu cliente, a tese mais adequada seria o de contravenção que sequer traz uma pena, mas apenas determina a aplicação de multa, o que gera uma revolta social, aplicar a contravenção de importunação ofensiva ao pudor seria admitir que o infrator pago uma multa, sequer seja preso e volte a delinquir, do outro lado do espectro, aplicar o crime de constrangimento ilegal ou até mesmo de ato obsceno em público seria ferir o princípio da legalidade estrita ou da tipicidade, com tudo isso, o legislador foi obrigado a criar um novo tipo penal.

2.4 – CRIAÇÃO DE UM NOVO TIPO PENAL

Como externado, o Direito Penal da urgência tem como escopo criminalizar condutas que o poder público não foi capaz de reprimir, atendendo a anseios sociais e dando a população a falsa sensação de que os bens jurídicos mais valorosos estão sendo tutelados.

Criou-se então um novo tipo penal através da Lei 13.718/2018, que inseriu no Código Penal o Artigo 215 - A que prevê o crime de importunação sexual. Coincidentemente ou não, é o Artigo 215 do mesmo Código repressor que, quem defende que o stealthing é crime, entende ser aplicado. Com a criação desse novo delito, houve a revogação do crime previsto na Lei de Contravenções no Artigo 61, qual seja, o crime de importunação ofensiva ao pudor e, com isso, encerrou-se a celeuma jurídica a cerca de qual crime àqueles indivíduos cometeriam.

Dito isso, diante da semelhança entre o caso da importunação sexual e do stealthing, sendo que ambas as situações guardam situações fáticas idênticas e, com vistas a evitar uma punição mais gravosa ao agente ou, uma proteção deficiente a vítima, é patente a necessidade de o legislador normatizar essa conduta no Código Penal e, na sua ausência, visando dar maior segurança jurídica, que o Supremo Tribunal Federal, através de uma Ação Declaratória de Inconstitucionalidade por omissão, pacifique qual o delito é aplicável ao caso concreto e determine um prazo para que o poder legislativo cumpra seu mister, seu dever de legislar.

2.5 – REPARAÇÃO CIVIL PELOS DANOS SOFRIDOS

Superados a discussão da matéria acerca da aplicação ou não do Direito Penal, passa-se agora a discussão acerca da responsabilidade civil pelos eventuais danos oriundos de tal prática. É necessário dizer que a doutrina e a jurisprudência é remansosa quando separa as instâncias, isso é, a responsabilidade penal independente da responsabilidade civil, significa dizer que, mesmo aquele fato não sendo definido como crime, é plenamente possível responsabilizar civilmente aquele indivíduo que se ache violado em sua esfera, quer seja moral, quer seja patrimonial.

Posto isto, analisemos a conduta, os efeitos ou resultados e como o poder judiciário deve se portar diante disso, analisemos então situações hipotéticas para que possamos, desse modo, em tese, aplicar ou não a responsabilização civil: No primeiro momento, olhemos então para um casal homossexual que não gozam de um relacionamento duradouro, tenham uma relação casual, durante o ato sexual, o parceiro remove o preservativo sem que o outro perceba, estamos diante da prática do stealthing, note então que o stealthing independe de uma das partes perceberem ou não, o fato se consuma com a mera remoção sem autorização. No caso hipotético, o indivíduo não se deu conta de que houve a remoção, passados alguns anos, ele vai doar sangue e descobre ser portador do vírus da imunodeficiência humana (HIV), nesse caso, a ele só resta se valer do uso constante e periódico dos medicamentos retrovirais que são capazes de controlar a doença, mas não elimina-la, esse ônus, será imposto àquele indivíduo enquanto ele viver.

Por outro giro, se o praticante de stealthing avisasse da remoção do preservativo, subsistiria ainda o ilícito civil porém, o indivíduo que foi prejudicado conta ainda com outro recurso, nas 72 horas seguintes ao ato, é possível eliminar a possibilidade de adquirir aquele vírus, há um tratamento denominado profilaxia pós - exposição que, iniciado nas 72 horas após o ato, elimina a chance de aquela pessoa contrair o vírus, lhe sendo imposto apenas a obrigação de continuar o tratamento por 4 meses.

Então, esse dispêndio de tempo, o abalo moral e psicológico de saber que pode ter contraído o vírus, ou pior, a certeza da contração, gera um abalo jurídico na personalidade da vítima capaz de exsurgir o direito de indenização, quiçá, uma pensão vitalícia em razão do preconceito que o portador do vírus sofre, nesse sentido, convém trazer à baila o que aduz Silvio de Salvo Venoso acerca do dano moral:

“Há consenso na doutrina e na jurisprudência que o dano moral seria a violação a um dos direitos da personalidade previstos no artigo 11 do Código Civil, como por exemplo, a violação do direito ao nome, à imagem, a privacidade, à honra, à boa fama, à dignidade etc., sendo dever do juiz que aprecia o caso concreto verificar cuidadosamente se determinada conduta ilícita, dolosa ou culposa, causou prejuízo moral a alguém, provocando sofrimento psicológico que supere meros aborrecimentos da vida cotidiana a que todos nós estamos sujeitos.”

Assim, mesmo a conduta não encontrando correspondência no âmbito do Direito penal, o Código Civil admite que se arbitra uma indenização por violação direta ou indireta de um dos Direitos da personalidade. No caso em comento, essa indenização sofrerá uma gradação de acordo com os danos sofridos, se a vitima percebesse ou tivesse ciência de que sofreu abuso e, desse modo, nas 72 horas seguintes ao ato, buscasse um órgão de saúde para que lhe concedesse o kit de profilaxia pós-exposição e, após os 4 meses, que é orientado, não houvesse transmissão do vírus HIV, haveria sim indenização, não só pela prática do ato, mas também pelo constrangimento e pânico causado a vítima; ocorrendo de outro modo, ou seja, houvesse a transmissão do vírus ou, o indivíduo só tivesse conhecimento da contaminação, meses depois nesse caso, a indenização civil deveria ser arbitrada em maior quantum.

Falando sobre a transmissão do vírus da AIDS, de forma voluntária, ou seja, nessa situação, o indivíduo que é portador tem consciência de sua condição soropositiva, se nesse caso, ele omite a informação do parceiro o Supremo Tribunal Federal (STF) tem entendimento pacífico que estará configurado o crime previsto no Artigo 131 do Código Penal:

“O Supremo Tribunal Federal, no entanto, de acordo com o relator do writ, o Ministro Março Aurélio, repudiou as razões ministeriais, fazendo prevalecer o entendimento de que não há que se falar em dolo eventual no caso específico, já que há para a hipótese previsão expressa em tipo penal. Logo, houve sim dolo específico de praticar o crime de perigo de contágio de moléstia grave: Art. 131. Praticar, com o fim de transmitir a outrem moléstia grave de que está contaminado, ato capaz de produzir o contágio: Pena - reclusão, de um a quatro anos, e multa.” ( HC 98.712 de São Paulo)

A tese acima, defendida pelo STF não é uníssona, pois é plenamente possível que se aplique ao caso concreto a conduta tipificada no crime de lesão corporal gravíssima, pois diferentemente do que entende o STF, o Superior Tribunal de Justiça tem entendimento diverso:

“Para a 5ª Turma do STJ, trata-se de lesão corporal grave a transmissão consciente da síndrome da imunodeficiência adquirida (vírus HIV).

A decisão foi unânime, acompanhando o voto da Min. Laurita Vaz, de acordo com quem a AIDS enquadra-se perfeitamente no conceito de doença incurável, como previsto no artigo 129, § 2º, II, do CP. Não havendo, assim, que se cogitar de tipificar a conduta como sendo crime de perigo de contágio venéreo (art. 130, CP) ou perigo de contágio de moléstia grave (art. 131, CP).

A Ministra ainda acrescentou que o fato de a vítima ainda não ter manifestado sintomas não exclui o delito, pois é notório que a doença requer constante tratamento com remédios específicos para aumentar a expectativa de vida, mas não para cura.”

No caso esposado acima, também se admite a propositura de uma ação civil ex-delicto, que é a propositura de demanda jurídica que tem o condão de buscar indenização por danos sofridos em razão da prática de ato ilícito conforme se depreende do Artigo 91, I do Código Penal Brasileiro.

Nessa mesma esteira, ainda sobre a indenização advinda da pratica de atos ilícitos, o Código Civil de 2002 declarou de forma expressa que o causador de dano, ainda que o ilícito não seja penal, mas meramente extracontratual, tem o dever de reparar o dano, a essa responsabilidade a doutrina atribui o nome de aquiliana, pois independente de acordo prévio ou de contrato.

Pode se afirmar que, se dois indivíduos, de forma consensual e voluntária, decidem ter conjunção carnal e um dele, sem o consentimento do outro, viola essa cláusula, fato é que estará a incidir sobre o Artigo 186 ou o 187 do Código Civil que tem a seguinte redação:

“a) O artigo 186,CC, (“Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito”), trata daquilo que chamamos de ATO ILÍCITO PURO.

Conforme aduzido, este instituto é a regra no Brasil, pois decorre de uma conduta humana (comitiva ou omissiva), eivada de culpa (lato sensu), a qual se faz contrária ao ordenamento jurídico (ilicitude), e que causou danoà outrem.

b) O artigo 187, CC, dispõe: “Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes”, ou seja, diferentemente da responsabilidade “pura”, lecionada no artigo anterior, este trata-se do chamado ATO ILÍCITO EQUIPARADO, ou simplesmente “Abuso de Direito”.

Diferentemente do ato ilícito puro, onde a conduta adotada já nasce ilícita, no ato ilícito equiparado o causador do dano seria sujeito de direito, e via de regra, poderia exercer o ato sem qualquer empecilho, já que o mesmo se encontra amparado pelas normas jurídicas.”

Nesse contexto é possível afirmar que a vítima de stealthing poderá se valer do poder judiciário para pleitear uma indenização pecuniária, ainda que isso signifique dizer que ela precisará demonstrar no curso do processo alguns elementos que também estão presentes quando o assunto é direito penal, são eles:

  • a) Conduta - Que nada mais que a pratica do ato;

  • b) Resultado – São os danos decorrentes da prática do ilícito civil;

  • c) Nexo Causal – A relação ou liame subjetivo entre a conduta do autor e os resultados que lhes foram causados.

Demonstrado isso, teremos configurado o dano e, por conseguinte, o dever de repará-lo, quer seja, de forma pecuniária através de uma condenação judicial, quer seja, custeando despesas e gastos oriundos de tratamento com medicamentos, transportes, lucros cessantes (que é a perda em dinheiro que a vítima deixou de receber em razão do evento) ou ainda, danos emergentes que, no caso esposado, não se vislumbra, posto que, é inviável falar em perda patrimonial em razão de um ato sexual consentido, todavia, praticado de modo diverso daquele originariamente previsto.


CAPÍTULO 3 – ASPECTOS SOCIAIS PSICOLÓGICOS DECORRENTES DO STEALTHING

Mesmo já tendo falado de que o dano moral, pode ser comprovado em razão de abalo psicológico, o que resultaria em uma condenação pecuniária do autor, esse dano não se restringe apenas e tão somente a uma indenização, uma vez que mesmo diante de uma condenação a vítima sofrerá danos irreversíveis ao longo de sua vida, em razão disso, passa-se a discutir, de forma jurídica, como que autor e vítima são, ou deverão ser tratados, em nosso ordenamento jurídico.

3.1 – A GRAVIDEZ ORIUNDA DO STEALTHING

Já falamos acerca do tratamento jurídico que deve ser dado pelo nosso ordenamento jurídico em razão da transmissão do vírus HIV, mas como já dito, em razão do stealthing, pode-se falar também na gravidez e, por isso, no direito a autodeterminação do corpo, no direito de ter ou não filho (e aqui não se está a falar de aborto mas, de planejamento familiar) e, mais ainda, na possibilidade ou não de tomar a pílula do dia seguinte, direito esse inerente à mulher que, em razão de não saber ser vítima do stealthing, lhe seria cerceado pelo autor. A vítima dessa prática terá sua vida marcada por uma cicatriz eterna, terá que conviver com um filho que não era esperado, que não foi planejado e cujo pai não era uma pessoa com quem a vítima pretendesse constituir familiar.

Em tempo, é valido ressaltar que mesmo nos casos em que a vítima mantém uma relação perene com o autor, quer seja relação matrimonial, união estável ou namoro, estaria configurado o stealthing.

Pode-se então afirmar que o stealthing não decorre de uma relação sexual consentida com preservativo consumada com pessoa com quem ela não estabeleceu laços afetivos, mas sim a mera remoção da proteção sem o consentimento de uma das partes. É muito comum que casais recém formados ou até mesmo que já mantenham uma relação duradoura, mas que ou por ausência de confiança em seu par ou por preferir não usar outros métodos anticonceptivos, utilizam do preservativo como instrumento cautelar da gravidez ou da transmissão de doença.

A discussão vai além, não se sabe ao certo qual Artigo do Código Penal deva ser aplicado no caso concreto, mas o que se sabe é que o próprio Código Penal, em seu Artigo 128, II traz uma excludente de ilicitude quando nos referimos ao aborto:

“Art. 128 - Não se pune o aborto praticado por médico: (Vide ADPF 54)

Aborto necessário

I - se não há outro meio de salvar a vida da gestante;

Aborto no caso de gravidez resultante de estupro

II - se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal.”

Como já fora dito, é plenamente possível que o stealthing seja convolado em estupro, nos casos em que, durante o ato sexual, a vítima perceba que houve a remoção e, ao tentar interromper o ato, o autor da agressão, visando concluir o ato, se valha de violência ou grave ameaça, nesse cenário, caso ocorra a gravidez, estar-se-ia diante da excludente supra mencionada, se no caso concreto, o juiz aplicasse as penas do Artigo 215 do Código Repressor, na situação narrada, o aborto seria juridicamente inviável, transferindo o ônus para a vítima.

É possível percebe que a violência sofrida pela vítima não se restringe a sexual, mas também a violência psicológica, conviver com um filho não querido, oriundo de uma relação cunhada na fraude ou má-fé e ter o percurso da sua vida mudado, pois é cediço que a mulher após ter filho terá que dedicar um tempo extra aos cuidados habituais de uma criança e na situação em comento, a restrição que seria imposta ao agressor seria apenas o pagamento de pensão ao filho, a mãe, vítima do stealthing, não teria como buscar uma reparação pelos danos supra.

3.2 - OS DANOS PSICOLÓGICOS CAUSADOS PELA TRANSMISSÃO DO VÍRUS HIV

Dano psicológico diverso também sofreria o indivíduo vítima do stealthing que contraísse, através daquela relação o vírus da imunodeficiência humana ( HIV). O dano não, in casu, também acompanharia àquela vítima por toda a sua vida, visto que, não se tem a cura para esse vírus. O portador do HIV é discriminado pela sociedade. É muito comum vermos notícias de pessoas que perderam seus empregos pelo simples fato de terem contraído o vírus, o indivíduo conviver com algo que está além da sua vontade. Conviver com o vírus já é um obstáculo, mas conviver com o sofrimento psicológico que decorre do preconceito social deve fazer exsurgir o dever de reparar o dano nos exatos termos do Artigo 186 do Código Civil:

Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.

Com a reparação, para a vítima surgirá a sensação de que o ato perpetrado gerou uma reprimenda, ainda que civil, e com isso, uma minoração da dor causada e para o autor do ilícito civil teremos então a figura que a doutrina elenca como “caráter pedagógico da sansão”, ou seja, se o indivíduo volta a lesionar o bem jurídico de outrem, ele deverá reparar o dano sofrido, essa reparação não é apenas material, mas também moral, dentro do gênero dano moral, temos a espécie dano psicológico.

3.3 ANÁLISE PSICOLÓGICA QUANTO A ORIGEM DO STEALTHING

Quando falamos em Direito, é necessário que se analise o autor, a vítima e o delito, a isso a doutrina denomina de criminologia, ou seja, a ciência que estuda as peculiaridades do delito perante a sociedade. Não há crime sem que haja uma razão de ser. O mesmo crime pode ter várias motivações.

Para a psicológica Bárbara S. Aguiar, o autor do stealthing trata-se de um indivíduo com a masculinidade extremamente adoecida pautada na misoginia onde o homem acredita na supremacia masculina de que ele tem aquele direito, aquele poder sobre o corpo daquela pessoa. Ou seja, vivemos em uma sociedade patriarcal. Nessa sociedade o homem é tido como o pilar, o centro, sem ele não há sociedade, esse suposto poder supremo que está contido no homem, faz com que ele creia que o corpo do outro, também lhe pertence e que em razão disso ele poderá praticar todo e qualquer ato que estes, lhe serão permitidos. O misógino em si, tem a convicção íntima de que a mulher é um ser desprovido de vontades e desejo, seu corpo só existe pois ele tem um único propósito, lhe dar prazer.

Essa relação de subjugação do outro indivíduo, trouxe para o mundo jurídico muitas outras discussões, a maior dela foi a criação da Lei Maria da Penha, tombada sob o número 11.340/2006, percebemos então que relacionamento abusivos sempre existiram e existirão. Até 2006 então, as violências sofridas pela mulher eram apenas a física e a patrimonial, com o advento dessa lei, surgiram outros tipos de violência, essas outras no campo psicológico e moral. A Lei Maria da Penha traz os seguintes tipos de violência:

  • a) física: Agressão física propriamente dita;

  • b) moral: Relaciona-se com os crimes contra a honra;

  • c) patrimonial: controla o dinheiro da vítima, destrói bens;

  • d) psicológica: perseguição, humilhação;

  • e) sexual: Obriga a ter relação sexual, impede o uso de preservativo.

Podemos perceber então que a Lei Maria da Penha trouxe outros tipos de violências além das que estávamos habituados. Merecem uma especial atenção as duas últimas que são a psicológica e sexual. Com a tipificação da violência psicológica, passou-se então a vislumbrar a seguinte situação, como se trata de um ilícito penal (e não apenas civil), o agente causador do dano está passível de indenização através da ação civil ex delicto, que é a ação reparatória da vítima de dano. O dano psicológico agora passou a ser quantificado monetariamente.

Nesse diapasão, surge a violência sexual, não se admitia, até algum tempo, a possibilidade de a mulher ser vítima de crime sexual cometido por seu marido, até porque, a conjunção carnal era dever oriundo do casamento, a partir do momento que esse tipo de violência passou a ser admitida em nosso ordenamento jurídico, indiretamente a percepção social mudou, a mulher, mesmo casada, ela tem vontades que devem ser respeitadas.

Na esteira da análise psicológica, a Juíza Theresa Karina Barbosa. Há uma relação de subjugação em que a traição de tirar o preservativo expõe a vida e a integridade física da outra pessoa e cria uma relação de subordinação dentro da relação sexual com o fim de estabelecer uma dominação e inferiorizar a mulher o que enseja violência de gênero. Nesse sentido, é possível admitir então que, estar-se-ia diante de uma das formas de violência já mencionada na Lei 11.340/2006 (Lei Maria da Penha), qual seja, a violência sexual.

Nessa miscelânia de direitos e, mesclando com a psicologia jurídica, há que falar na alteração unilateral de um pacto que fora previamente estabelecido, essa alteração unilateral esta eivada de dolo ou, no melhor dos mundos de fraude, portanto. Dessa forma, não é equivocado afirmar que o consentimento se tornou viciado a partir do momento em que o preservativo fora removido, ou seja, surge uma situação que não era esperada por que, originariamente consentiu. Como bem nos alerta Alexandra Brodsky, a conduta do stealthing, ao ser analisado por uma perspectiva jurídica, faz com que o interlocutor verifique a existência de violação à vontade e a autodeterminação em querer ou não ter relações sexuais sem preservativo e, desse modo, obrigando aquele indivíduo a consumar o ato de maneira diversa da que era originariamente pretendida e, se assim fosse, não lhe seria consentido.

Analisando o aspecto psicossocial dessa conduta, na relação sexual, o praticante do stealthing vê no sexo um ato de dominação, isso porque ele está mergulhado numa cultura machista e patriarcal onde o homem se vê detentor sobre o direito do corpo alheio, todavia, para aquele que ver no sexo um ato de prazer ou até mesmo de liberdade, pode entender que esse comportamento viola sua dignidade.

Para Tatiane Herreira Trigueiro (2017, pp. 3-4) em alguns dos casos, quando cessa a conduta ilícita, a vítima que até aquele momento estava sendo induzida em erro, toma conhecimento de que o ato fora perpetrado em desacordo com o que era desejado, ou seja, o uso do preservativo era condição indispensável para que houvesse a anuência, a partir daí, a vítima é tomada por sofrimento psicológico, um sentimento de impotência, de medo e de frustração.

Trigueiro aduz que, a prática do stealthing causa danos irreversíveis na esfera psicológica do indivíduo posto que, como consequência dessa conduta, ela se sente violada em sua dignidade humana, além de ter os outros espectros da sua personalidade violado como a dignidade sexual, física, moral e, além disso, sofre abalo nas relações interpessoais, passando, a partir daquele momento, não mais se relacionar ou relacionar-se com muitas ressalvar, a desconfiança permeará todas as suas relações vindoura. Em suma, sua qualidade de vida será esgarçada.

3.4 STEALTHING NO BRASIL

No Brasil, a prática do Stealthing já é uma realidade silenciosa. As pessoas não falam abertamente sobre isso por, apesar de terem a concepção de que essa prática é imoral e inescrupulosa, não vêem meios jurídicos de buscar uma reparação ou reprimenda.

Em pesquisa feita em campo pelo professor Pedro Pulzatto Peruzzo que é professor pesquisador da Faculdade de Direito da PUC – Campinas, realizada em março de 2018, através da plataforma Google Formulário, que se vale de mecanismos de anonimato para inquirir as pessoas que se dispõem em responder aos quesitos, os resultados foram alarmantes, na ocasião, foram entrevistas 279 mulheres das mais variadas orientações sexuais, classes sociais, raças e afins. Apesar de o termo stealthing ser oriundo dos Estados Unidos da América, 21% das mulheres que responderam entendem o caráter ilícito da conduta e, desse total, 13,6% dizem afirmar saber do que se trata tal instituo, além disso, dessas 279 entrevistadas, 9% afirmam já terem se submetidos ou sofridos a prática de stealthing, como se pode verificar no gráfico abaixo:

Gráfico 1: Conhecimento sobre o tema Stealthing

Fonte: Faculdade de Direito – PUC (2018)

Esse mesmo estudo foi realizado a posteriori, dessa vez, em abril de 2018, todavia, houve uma peculiaridade que não estava presente na primeira vez, antes de o questionário ser respondido, foi apresentado para essas mulheres o conceito e as características do stealthing, novamente através da plataforma do Google Formulário, o resultado permaneceu semelhante, 10% das 49 pessoas entrevistas afirmam já terem sido vítima dessa prática, porém, dessa vez um outro dado pôde ser extraído dessa pesquisa, 39.6% das pessoas que foram questionadas afirmam que conhecem pessoas, tanto do sexo masculino quanto do sexo feminino que já foram vítimas dessa conduta, como se pode ver no gráfico seguinte:

Gráfico 2: Questionário Sócio – Cultural

Fonte: Faculdade de Direito – PUC (2018)

Falando ainda dos aspectos sociais e culturais, os professores Daniel Cerqueira e Danilo Santa Cruz Coelho (2014, p. 2) pontuam que, da mesma foram que os demais atos de dominação sexual, o stealthing também é oriundo de uma sociedade falocêntrica, é produto de uma cultura patriarcal que impera em nossa sociedade; Há uma falsa ideia de dominação do masculino sobre o feminino e essa análise não se esgota nas relações heterossexuais, mas também, na homoafetiva; desse modo, o homem é o principal protagonista da violência sexual.

Nessa esteira então, é possível afirmar que a violência sexual de forma geral faz com que mulheres cisgêneros, homens não heterossexuais ou transgêneros sejam subjugados a condição de coisas e, lhe sejam removido a dignidade da pessoa humana logo, o patriarcado nada mais é do que uma construção social que hierarquiza o homem sobre os demais indivíduos, principalmente às mulheres.

Nessa mesma enquete, foi aberto espaço para que os participantes pudessem expressar o seu sentimento após descobrirem que foram vítimas dessa prática, ao verificarmos os comentários, é possível extrair desses dados duas informações importante: A primeira de que essa prática de fato é corriqueira e a segunda, importante para a criminologia, é a de que, há uma lesão expressiva a bens jurídicos que deveriam ser tutelados pelo Estado, alguns dos comentários são os seguintes:

Por fim, o stealthing não se reduz apenas num mero fetiche sexual ou satisfação de desejos, além disso, o stealthing é uma forma se autoafirmação onde o homem, ao se determinar titular do corpo do outro e, sobre ele exercer quaisquer direito que ele julgue ser detentor, está reafirmando a construção social e a falsa ideia de patriarcado existente no Brasil.


CONCLUSÃO

Após essa análise horizontal sobre esta temática, toda a discussão levantada e a ausência de decisões judiciais acerca deste tema, é possível extrair algumas interpretações lógicas desse debate, a primeira dela é de não ser possível afirmar que há subsunção da prática do stealthing a um tipo penal já existente, pois, umas das possibilidades aventadas pela doutrina é o constrangimento ilegal, todavia, é desarrazoado aplicar a pena de 3 meses a 1 ano a esta conduta que se mostra tão lesiva. Lesividade esta que tem como bem jurídico a ser tutelado, não só a dignidade sexual, mas também a saúde pública, pois como já dito, um dos meios de transmissão de doenças sexuais é a prática de atos sem o uso do preservativo. Aplicar essas penas fere frontalmente o principio da proporcionalidade quando olhamos para outros tipos penais relacionados à violência sexual.

De igual modo, não se amalgama ao tipo penal previsto no Artigo 213 do Código Penal, qual seja, estupro uma vez que para que reste configurado este delito seja imprescindível a conjunção carnal ou o ato libidinoso não consentido oriundo de violência ou grave ameaça perpetrada pelo autor, elementos esses que não estão contidos na prática do stealthing.

Nesta esteira, não se pode afirmar ou classificar a prática do stealthing na conduta do Artigo 215 do Código Penal Brasileiro, que tipifica o ilícito de violação sexual mediante fraude, essa negativa se deve ao fato de que, nesse delito, a fraude ou o ardil devem ocorrer antes do início da prática do ato sexual, essa fraude vai impedir que a vítima manifeste sua vontade livre de vício, com o claro intento de induzir ou manter o indivíduo em erro para que assim, se consume o ato sexual, apesar de haver alguma similitude com o stealthing, neste a vítima consente previamente, esse consentimento está livre de vício pois é esta a vontade da vítima, logo, não há indução fraudulenta.

Por fim, não há quaisquer possibilidade da aplicação do disposto no Artigo 217-A § 1º do Código Penal (Estupro de vulnerável) visto que, para que exsurga tal delito, se faz necessário a presença de causas limitadores de capacidade ou que impossibilite a resistencia da vítima ou de seu discernimento conotativo daquela situação, de modo contrário, a vítima do stealthing está em pleno gozo de sua capacidade e é capaz de expressar resistência ao ato por ter discernimento da situação que experimenta.

É importante lembrar a impossibilidade de se fazer interpretação extensiva de texto legal dos crimes acima ou até mesmo de se valer de analogia para que se tipifique o stealthing, isso porque a Constituição Federal traz, de forma expressa o princípio da legalidade estrita contida no Artigo 5º inciso XXXIX que traz a redação de que “não há crime sem lei que o defina nem pena sem prévia cominalção legal”.

Significa dizer que, no âmbito do Direito Penal não se admite o uso de interpretação extensiva e tampouco analogia in malam partem, ou seja, aquela que é prejudicial ao reu, é importante lembrar que, há a aplicação da analogia in bonam partem, ou seja, se aquela interpretação for benefica ao réu, aplica-se ela o que, gera uma lacuna irreparável pois, diante dessa miscelânia de tipo penal disponíveis e que guarda alguma similitude com esta prática, aplicar o tipo penal menos gravoso seria desarrazoado e, permitiria que o infrator sequer sofresse reprimenda diante dos institutos despenalizadores como a suspensão condiconal do processo ou da suspensão condicional da pena que faz com o processo durma e, após despertar, seja extinto.

Para além disto, a criação de um novo tipo penal não é so questão de política criminalizadora, mas também, obrigação do Estado brasileiro para com os seus cidadão. Essa obrigação não é uma mera recomendação ou um dever moral mas sim observância de comandos constitucionais, em tratados e conveções internacionais onde o Brasil se obriga a reprimir esse tipo de abuso como, por exemplo na convencao sobre eliminação de todas as formas de discriminação contra a mulher, convenção esta que obriga o Brasil a prevenir, punir e erradicar a violência

Por fim, é cediço que, com a maior liberdade sexual sexual conquistada ao longo dos anos, é comum que as pessoas começem a ter quantidade maior de parceiros e parceiras ao longo do tempo sendo a prática de sexo casual corriqueiro. Dessa forma é de importância impar que o Estado Brasileiro considere as novas realidades fáticas, e com vista a aprimorar nosso sistema penal, por intermédio de inovações legislativas, possa compatibilizar nosso ordenamento jurídico com as relações sociais desse modo, preservando não só a saúde pública como também a liberdade sexual, a dignidade humana e a igualdade; com isto, aos poucos será possível descontruir essa estrutura social de dominação patriarcal e alcançando assim a justiça social.


REFERÊNCIAS

BRODSKY, Alexandra. Rape-Adjacent: Imagining Legal Responses to Nonconsensual Condom Removal. Columbia JournalofGenderand Law. n. 2. p.183-210, 2017.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ALMEIDA, Erivaldo Santos. Stealthing: quais os reflexos jurídicos decorrentes dessa prática?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 28, n. 7151, 29 jan. 2023. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/101555. Acesso em: 9 maio 2024.