Padronização técnica, patentes essenciais e cláusulas FRAND: resenha de doutrina

21/06/2022 às 20:58
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Há a necessidade de cada vez mais estudos jurídicos sólidos, interdisciplinares, focalizando a ambiência da temática em seus objetos de pesquisa, a exemplo de “Consorcios de estandarización, patentes esenciales y cláusulas FRAND”, de Carmen Rodilla Martí

PROLEGÔMENOS

A progressão tecnológica é grandeza variável, incapaz de revelar uma constante ao sabor da aceleração do progresso social. Mergulham as grandes almas (o quid do conhecimento) “na vida, como em imenso oceano de ideias. Acima, o sensível infinito das fantasias; em baixo, a aspereza vulgar das coisas reais; e por toda a parte, - o inesgotável das formas, dos sonhos, das hipóteses.”[1]

As tecnologias[2] são filhas das ciências, das pesquisas teóricas e aplicadas, desenvolvimentos e inovações, em que “toda ciência significa con-sciência, e não só operações, equações, relações entre cognoscente e cognoscido”[3].

A ciência do Direito; suas disciplinas dogmáticas-zetéticas de propriedade intelectual[4], concorrencial, comercial etc., verdadeiros sistemas/subsistemas, apresentam influência crucial no desenvolvimento, disponibilização e distribuição comerciais dos frutos das ciências duras – objetos tecnológicos, de afirmação técnica[5].

O instituto das patentes, neste contexto, trabalha como mecanismo de resguardo dos agentes econômicos. A depender dos “valores e interesses em jogo”[6], há o cooperation (relações permissivas que podem abranger colaboração, co-desenvolvimento etc.) ou o enforcement[7] (relações proibitivas; de aplicação, ao ex-adverso, das faculdades legais de repreensão do ato ilícito e/ou repressão de crime; e.g., violação de patente).

A interoperabilidade/interface/compatibilidade/intercâmbio técnico entre produtos e processos é uma realidade presente já a algum tempo.

Entidades de padronização, voluntárias ou mandatórias, e seus membros (agentes da respectiva indústria, com desenvoltura e performance de atuação em relações institucionais[8]), quando reunidos, tentam constantemente estabelecer consensos e equilíbrios, dentre outras matérias, em especificações técnicas e condições de licenciamento (quando a invenção coberta por uma patente ou portfólio de patentes torna-se essencial para o funcionamento de produtos, processos e outras invenções).

Associado ao contexto da padronização, apresenta-se também a estruturação de arranjos organizativos (pools) envolvendo múltiplos titulares de patentes.

Há a necessidade de mais estudos jurídicos sólidos, interdisciplinares, focalizando a  temática como objeto de pesquisa, a exemplo do livro-tese “Consorcios de estandarización, patentes esenciales y cláusulas FRAND”, de autoria da professora da Universitat de València, Carmen Rodilla Martí, doutora pela referida Universidade. O livro foi publicado em 2016 pelo editorial Tirant lo Blanch.[9]

 

A RESENHA

A obra está dividida em três capítulos: (i) sobre a conceituação de pool de patentes e SSOs; (ii) sobre os acordos de transferência de tecnologia/licenciamento de patentes; (iii) sobre o regime/a cláusula FRAND. Todos os capítulos demonstram profundo arcabouço dogmático (norte-americano, inglês, alemão etc., onde os estudos sobre patentes essenciais se mostram mais desenvolvidos desde há tempo).

Bem esclarece a autora no primeiro capítulo que as formas organizacionais de pool patentário “estão baseadas no paradigma de compartilhar e cooperar, e oferecem uma série de benefícios e incentivos. Em síntese, os pools são uma forma de contrato intraindústria que permitem evitar um excesso de conflituosidade e litigiosidade”[10], sustentando a aplicação das noções de redes contratuais[11] a estas estruturas.

Estas redes, em tese, além de auxiliarem os titulares de patente a evitar litígios de desconstituição de títulos (ou de infrações destes), evitam “o desvio de recursos, a desaceleração da inovação”[12], e “fomentam a padronização técnica”[13] (com a ciência de que que os pools “não necessariamente devem estar [tienen que ir] unidos a um processo de padronização; mesmo que, na prática, muitos deles foram criados mesmo para apoiar a criação de standards”[14]).

Mas a professora, em um senso acadêmico-prático ponderado, também arrola desvantagens, no que tange aos possíveis conflitos que possam surgir em sede da disciplina dogmática antitruste, quando os consórcios são utilizados “como instrumento para tergiversar a finalidade para a qual se outorga proteções”[15] quando em rede, com a realização de “exercício antisocial”[16] do direito de patentes.

O capítulo se encerra com um detalhamento aprofundado sobre as standard-setting organizations (vide entidades de padronização técnica, como já mencionado). Entende-se pelo conjunto de especificações técnicas (“produto” das entidades) como sendo as “instruções detalhadas, especificações ou protocolos que devem ser cumpridos para se conseguir alcançar um resultado técnico determinado”[17], sendo as SSOs donde que, em grupos de agentes econômicos (ou até mesmo estatais)[18], surge supostamente o consenso sobre os padrões.

Ao capítulo segundo é dada a devida atenção ao conceito de patentes em geral, também enfatizando-se a pontuação específica (e determinante no contexto da obra) de que “a patente é, evidentemente, um direito que pode ser negociado. Trata-se de um direito que pode ser vendido, expropriado, licenciado etc.”[19], traçando em seguida um cotejo analítico da confrontação entre a propriedade industrial e o direito concorrencial para a abordagem superveniente das hipóteses de licenciamento obrigatório/compulsório apresentadas pelas duas disciplinas confrontadas[20].

É no terceiro e último capítulo que se aborda de forma estruturada o regime FRAND (justo, razoável e não discriminatório), defendido como sendo cláusulas negociais relacionadas a uma técnica/ferramenta autorregulatória empresarial. A autora verifica sua presença, basicamente, em dois momentos[21]: (i) quando da adesão de um titular/pool de patentes essenciais a uma SSO, que apresente em sua política de PI a condição FRAND a seus membros, e (ii) quando o membro da SSO efetua o licenciamento a um interessado de dentro ou fora da entidade.

Também é perquirida a natureza obrigacional de uma cláusula em regime FRAND, debate controvertido na doutrina internacional; além das alegações por uma parte desta da suposta desnecessidade destas cláusulas.

 

CONCLUSÃO/RELEVÂNCIA DA OBRA PARA O AMBIENTE BRASILEIRO

              Agentes econômicos dos plurais setores tecnológicos, com atuação e abrangência nacional, cada vez mais devem voltar sua atenção ao funcionamento das estruturas organizacionais de padronização, juntamente ao contexto dos embates travados em sede de patentes essenciais.

              A discussão começou a permear os tribunais nacionais e a autoridade concorrencial com maior intensidade nos últimos anos, fortalecendo um debate doutrinário especializado e diverso por parte de pesquisadoras e pesquisadores, advogadas e advogados.

              O futuro da temática perpassa o campo das lides, e depende também do campo legislativo, com o equilíbrio sempre necessário que se há de ter com as noções de autorregulação, presentes nos fundamentos de ser das entidades autônomas de padronização.[25]

              A doutrina de Carmen Rodilla Martí vem para somar a estes estudos e os que vierem a ser desenvolvidos, principalmente devido a sua tenacidade ao tratar de assuntos complexos com destreza, sendo a obra resenhada uma boa introdução a estes campos específicos.

              Além dos juristas, a obra serve muito bem aos especialistas de outras áreas do saber que se interessam pela propriedade intelectual em sua techne. O fato de a obra estar em língua espanhola em nada atrapalha a sua leitura e seu estudo, sendo sua linguagem de fácil compreensão.            

 


[1] PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. A sabedoria dos instintos: ideias e antecipações. Rio de Janeiro: J. Ribeiro dos Santos, 1921. p. 31

[2] “A tecnologia é algo complexo e a produção é enorme [ingente].” (Página 60, em ebook, do livro objeto desta resenha crítica [tradução livre])

[3] PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcante. O problema fundamental do conhecimento. Campinas: Bookseller, 1999. p. 265 [Atualizado por Vilson Rodrigues Alves]

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[4] “A chamada propriedade intelectual (direito de autor e propriedade industrial), pese embora a existência de intrincadas e complexas exigências técnico-formais que decorrem da sua função pragmática na decisão de litígios e na organização das decisões (incluindo as decisões quanto ao conteúdo dos comandos normativos) constitui, hoje, como se insinuou, um subsistema jurídico aberto; aberto a outras constelações do saber humano e ciente de que as pessoas e a sua (inter)ação acham-se emersas na sociedade técnica, na sociedade de risco e da informação.” (REMÉDIO MARQUES, João Paulo. Biotecnologia(s) e propriedade intelectual. Coimbra: Almedina, 2007. p. 56 [Volume I])

[5] Expressão utilizada pelo professor Luís Couto Gonçalves no Código da Propriedade Industrial Anotado (Coimbra: Almedina, 2021. p. 27)

[6] VICENTE, Dário Moura. Art. 1º – Função da propriedade industrial. In: GONÇALVES, Luís Couto. Código da Propriedade Industrial Anotado. Coimbra: Almedina, 2021. p. 84.

[7] Maria Paula Gouveia Andrade, em seu Dicionário Jurídico Português-Inglês-Português (Coimbra: Almedina, 2021), apresenta a tradução de law enforcement como sendo aplicação da lei.

[8] “[...] os participantes do processo de definição de padrões não são ‘tecnocratas desinteressados’, mas na maioria dos casos serão compostos pelos próprios participantes do mercado cujos interesses estão em jogo.” (Página 72, em ebook, do livro objeto desta resenha crítica [tradução livre])

[9] Referência completa: MARTÍ, Carmen Rodilla. Consorcios de estandarización, patentes esenciales y cláusulas FRAND. Valência: Tirant lo Blanch, 2016. 228 páginas. ISBN 9788491196464

[10] Página 29 da obra, em ebook. [tradução livre]

[11] “Existe um controvertido debate doutrinário a respeito da natureza jurídica destes consórcios. Neste sentido, uma nova figura tem sido sugerida: as redes contratuais. Nestas existem, [...] uma gestão [dirección] (ainda que não hierarquizada), coordenação entre seus membros, e independem da carência ou presença de personalidade jurídica. Estas redes contratuais estão formadas por contratos multilaterais não associativos.” (Páginas 13 e 14 da obra, em ebook. [tradução livre])

[12] Página 31 da obra, em ebook. [tradução livre]

[13] Op. cit.

[14] Op. cit.

[15] Página 41 da obra, em ebook. [tradução livre]

[16] Op. cit.

[17] Página 61 da obra, em ebook. [tradução livre]. Estre trecho em específico, curiosamente, lembra um pouco as definições simplórias dadas para as patentes, sendo sua redação também instruções “ao técnico no assunto”; mas com a fundamental diferença de que as patentes detêm um critério rigorossísmo de constituição, requerido pelo Estado, ao objeto a ser tutelado (solução técnica para problema técnico; nova, inventiva, aplicável industrialmente, suficientemente descrita, lícita e não pré-excluida de ser tutelada – vulgo invenção).

[18] “Nos processos de padronização, não só os fabricantes são ouvidos, mas os consumidores e usuários têm cada vez mais voz e, claro, os interesses gerais representados e defendidos pela Administração Pública são levados em consideração.” (Página 63 da obra, em ebook. [tradução livre])

[19] Página 84 da obra, em ebook. [tradução livre]

[20] Da disciplina concorrencial, mostra-se quais as situações em que há exercício abusivo (e até mesmo desleal) no contexto do titular de patente declarada essencial/convivente no pool e da entidade de padronização (poder excludente de mercado, recusa em licenciar etc.).

[21] Páginas 147 e 148 da obra, em ebook.

[25] Neste ponto, concordamos com os sólidos argumentos trazidos por Pedro de Abreu Campos e Gabriel Di Blasi no texto “O Brasil não se preparou para lidar com as patentes do 5G”, disponível em <https://www.migalhas.com.br/depeso/364680/o-brasil-nao-se-preparou-para-lidar-com-as-patentes-do-5g>

Sobre o autor
Otávio H. B. Arrabal

Graduando em Direito pela Fundação Universidade Regional de Blumenau (FURB).

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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