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Análise interpretativa dos Contratos Empresariais

16/05/2022 às 19:54
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O presente artigo visa abordar os critérios interpretativos e os princípios que regem os contratos celebrados entre empresas, com intuito de estabelecer as diferenças entre contratos empresariais e civis e de consumo.

Introdução

O presente artigo visa abordar os critérios interpretativos e os princípios que regem os contratos celebrados entre empresas, com intuito de estabelecer as diferenças entre contratos empresariais e civis e de consumo, bem como as suas particularidades em casos práticos nos tribunais brasileiros.

A análise inicia com a aplicação dos princípios na seara cível e acerca grande incidência do Poder Judiciário em negócios jurídicos entre particulares.

Em segundo momento, será feita a análise acerca do contrato de consumo e em qual momento duas empresas celebram contrato tipicamente consumerista.

E por fim, a análise do escopo do estudo, fazendo um contraponto aos contratos civis e consumeristas e sua diferença prática na seara interpretativa e as razões que embasam uma interpretação diversa dos outros contratos mencionados.

Contratos empresariais versus contratos de civis

Embora os contratos civis e empresariais pertençam ao ramo direito privado, e estejam protegidos pela mesma norma jurídica, seus critérios interpretativos são diferenciados especialmente pela sua função social e o impacto no sistema econômico e, portanto, merecem um destaque especial na presente análise.

Nesse sentido, os contratos empresariais são tratados de forma diferenciada, pois assumem um propósito de segurança nas relações negociais, na exploração de atividades econômicas e na obtenção do lucro, que são celebrados entre pessoas civis que desempenham atividade empresarial, de acordo com o conceito de empresário previsto artigo 966 do Código Civil.

Já nos contratos civis, os acordos de vontades são celebrados entre particulares, onde há a premissa de igualdade entre as partes, como por exemplo o vendedor de um automóvel não exerce atividade de fornecimento do bem, pretendendo vender o seu carro usado para um amigo.[1]

A análise da natureza contratual, e a incidência do regime jurídico entre as partes determinam a forma de interpretação de princípios, obrigações, cláusulas, entre outros[2].

Por exemplo, em contratos de natureza cível há uma maior incidência da interferência do Poder Judiciário, pois advém da necessidade se conceder paridade entre as partes, mitigando por vezes a autonomia da vontade por meio de outros princípios como a teoria da imprevisão em uma busca de uma sociedade mais igualitária e justa, conforme salienta Caio Mario da Silva Pereira[3]

...na convicção de que o Estado tem de intervir na vida do contrato, seja mediante a aplicação de leis de ordem pública, que estabelecem restrições ao princípio da autonomia da vontade em benefício do interesse coletivo, seja com a adoção de uma intervenção judicial na economia do contrato, instituindo a contenção dos seus efeitos, alterando-os ou mesmo liberando o contratante lesado, por tal arte que logre evitar que, por via dele, se consume atentado contra a justiça.( PEREIRA, Caio Mario da Silva. Instituições de Direito Civil. 10.ed., v.III, Rio de Janeiro: Editora Forense, 2001)

Contratos empresariais versus consumo

Dito anteriormente que os contratos empresariais são celebrados por duas empresas, se pode pensar que todo o acordo celebrado entre dois empresários se trata obrigatoriamente de contrato empresarial. Contudo essa regra não é absoluta, pois se faz necessária além identificação das partes, a presunção de vulnerabilidade de um contratante perante o outro, pois se a empresa for destinatária final de um produto ou serviço adquirido será considerada consumidora, ainda que seja pessoa jurídica, conforme o disposto no artigo 2º do Código de Defesa do Consumidor, vejamos:

"Art. 2o - Consumidor é toda pessoa física ou jurídica que adquire e utiliza produto ou serviço como destinatária final.

Parágrafo único. Equipara-se a consumidor a coletividade de pessoas, ainda que indetermináveis, que haja intervindo nas relações de consumo" (grifo nosso).

Neste sentido, uma empresa que exerce uma atividade econômica no desenvolvimento e licenciamento de software, ao adquirir um veículo para o seu próprio uso, e não tendo o negócio correlação a atividade-fim da empresa, será considerada consumidora, ensejando a aplicação das regras previstas no CDC, de maneira que a aquisição do produto será utilizada para a atividade meio da empresa em se locomover ao cliente para viabilizar a sua atividade negocial.

Inclusive, foi esse o entendimento no julgamento em caso correlato entre a Marisa Lojas Varejistas LTDA em face Kia Motors do Brasil e Kivel Veículos LTDA, no acórdão dos autos do processo de Apelação nº 992.08.072518-9, do Tribunal de Justiça de São Paulo, em 23 de fevereiro de 2010, que reconheceu a aplicação do CDC na Ação de Reparação de Danos, tendo em vista que a Loja Marisa adquiriu o veículo para uso próprio e que logo começou a apresentar defeitos não resolvidos pela Kia e pela sua concessionária Kivel Veículos.

No entendimento, foi verificado os requisitos de destinatário final e de vulnerabilidade na perspectiva técnica, tendo em vista que a Loja Marisa não poderia ter o conhecimento específico sobre o objeto de compra do automóvel.

Em contrapartida, o entendimento de contrato consumerista pode ser afastado entre dois empresários em uma relação negocial se a aquisição do bem tem correlação com a atividade-fim, como no caso de aquisição de automóvel para utilização de transporte de passageiros, como no julgamento do acórdão da Apelação Cível nº 1040512-14.2014.8.26.0100, do Tribunal de Justiça de São Paulo, em 3 de dezembro de 2019, que entendeu no sentido de não basta que seja destinatário final do produto, sendo também necessário ser destinatário final econômico do bem, não adquiri-lo para revenda ou uso profissional.

Dessa forma, o CDC confere ao consumidor ferramentas jurídicas que tutelam providencias que atenuam distorções oriundas de vulnerabilidade em que uma pessoa física ou eventualmente jurídica se encontra perante seu fornecedor.

Na aplicabilidade do CDC urgem 5 grandes princípios: a) irrenunciabilidade de direitos - onde  consumidor não pode renunciar direitos, como no caso de invalidade de clausulas em desacordo com o CDC; b) equilíbrio contratual - visando a equidade na relação, sem nenhuma onerosidade excessiva; c) transparência - consumidor deve ter prévio conhecimento das obrigações assumidas; d) aplicação favorável ao consumidor- a intepretação de clausula ambígua sempre favorece o consumidor; e) execução específica dos contratos de consumo - juiz pode arbitrar alguma medida que atinja o efeito pretendido[4].

Assim, sendo pode-se perceber que a proteção por meio da intervenção estatal é acentuada.

Interpretação dos contratos empresariais

Visto que como regra geral os contratos celebrados entre empresários não se trata de relação consumerista, mas que como toda regra possui a sua exceção como demonstrado acima, adentramos na essência dos contratos empresariais.

Contratos empresariais são celebrados por duas empresas que possuem o entendimento da operação econômica do acordo de vontades, tendo em vista que atuam no exercício de atividade empresarial organizada e desta forma assumem os riscos do negócio, tanto para a obtenção de lucro quanto para o insucesso do empreendimento[5].

Assim sendo, os princípios norteadores dos contratos empresariais são: a) autonomia da vontade - o contrato é celebrado se as partes desejam; b) obrigatoriedade dos contratos- obrigação de cumprir com o acordado; c) relatividade dos efeitos dos contratos - efeitos do contrato em regra produz apenas para as partes e sucessores; d) função social do contrato - deve estar atrelada a sociedade e não somente restrita às partes; e) boa-fé objetiva - não violar direitos de outro, cumprir com as responsabilidades[6].

Nesse sentindo, o dirigismo contratual é mitigado, pois devem ser tratados de forma diferenciada em relação aos contratos de civis e consumeristas tendo em vista a simetria natural das relações interempresariais, conforme o disposto no enunciado nº 21 da EJF[7].

Desse modo, ao afastar o dirigismo contratual dos contratos de natureza empresarial, há o prevalecimento dos princípios da autonomia da vontade e da força obrigatória das avenças.

Além do mais, como mencionado anteriormente a respeito da regra geral dos contratos celebrados entre empresas, visa afastar o máximo possível a incidência da relação consumerista nos negócios jurídicos interempresariais, inclusive de acordo com o enunciado nº 20 da CJF, vejamos:

CJF/Comercial 20. Não se aplica o Código de Defesa do Consumidor aos contratos celebrados entre empresários em que um dos contratantes tenha por objetivo suprir-se de insumos para sua atividade de produção, comércio ou prestação de serviços.

Isto posto, o empresário que adquire produtos ou serviços para a sua atividade-fim não pode ser colocado como presumidamente vulnerável, pois como bem pontua Fábio Ulhoa Coelho[8], pois a eventual assimetria entre empresários não é oriunda da vulnerabilidade ou hipossuficiência, mas sim de uma dependência empresarial, quando um empresário precisa se submeter às regras estabelecidas por outro empresário, como no caso dos contratos de franquia e representação comercial.

Já nos contratos de natureza empresarial, diferentemente o que ocorre em contratos entre civis, onde há uma majoração da interferência do Judiciário e e maior aplicação de princípios como a onerosidade excessiva, a revisão de acordo de vontades entre empresários deve-se dar lugar à sofisticação dos contratantes e na observação da alocação dos riscos por eles acordada, conforme a leitura do enunciado nº 25 da CJF.

André Santa Cruz[9] defende que a intervenção Estatal cria riscos moral e gera insegurança jurídica em relações empresariais, vejamos:

"A regra de ouro do livre mercado é a seguinte: o empresário que acerta, ganha; o empresário que erra, perde. Portanto, a intervenção estatal prévia (dirigismo contratual) ou posterior (revisão judicial) nos contratos empresariais deturpa a lógica natural do livre mercado, cria risco moral e  traz  insegurança  jurídica para as relações interempresariais."CRUZ, André Santa.Direito Empresarial. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 9 ed., 2019.)

Desta forma, o empresário ao celebrar contratos deve obrigatoriamente alocar os riscos do negócio, pois é elemento crucial na condução dos negócios jurídicos.

Fabio Ulhoa Coelho[10] menciona que o empresário precisa se precaver para a hipótese de ter a sua receita reduzida como nos casos de majoração de preços ou decisão judicial que confira um entendimento diverso do pretendido. Para o doutrinador, cabe ao empresário embutir esses riscos em sua precificação.

Todavia, cumpre observar o cenário pandêmico causado pela COVID-19, pois ainda que a atividade empresarial é intrinsicamente atrelada aos riscos negociais é temerário afirmar que se tratava de um evento previsível, pois muitas empresas foram inviabilizadas de suas atividades, e outras tiveram uma majoração de preço exponencial de seus insumos, como no caso das atividades de construção e eventos. 

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Portanto, a incidência desse evento viabilizou a revisão dos contratos empresariais em decorrência do panorama enfrentado pelo mundo afora, sendo entendidos como fatos imprevisíveis e extraordinários ocasionando um desequilíbrio contratual superveniente, e que diante desse evento permitiu que a ponderação de princípios fosse suscitada a teoria da imprevisão atrelada à boa-fé a função social do contrato.

Contudo, a medida não pode ser aplicada a todo e qualquer contrato empresarial, mesmo sob o argumento da Covid19, devendo se demonstrar o impacto da pandemia no desempenho da atividade, não bastando a mera revisão contratual oportunista[11]

Ademais, cumpre mencionar a inclusão do artigo 421-A no Código Civil, em que visa estabelecer diretrizes para interpretação de contratos interempresariais, especialmente no tocante à intervenção mínima e da excepcionalidade da revisão de contratos, vejamos:

Art. 421-A.  Os contratos civis e empresariais presumem-se paritários e simétricos até a presença de elementos concretos que justifiquem o afastamento dessa presunção, ressalvados os regimes jurídicos previstos em leis especiais, garantido também que:

I - as partes negociantes poderão estabelecer parâmetros objetivos para a interpretação das cláusulas negociais e de seus pressupostos de revisão ou de resolução; 

II - a alocação de riscos definida pelas partes deve ser respeitada e observada; e 

III - a revisão contratual somente ocorrerá de maneira excepcional e limitada. 

A premissa da norma é proteger a livre iniciativa e o exercício da atividade econômica e restringindo o dirigismo contratual apenas em casos que excepcionalmente evidenciam a assimetria dos contratos, como foi em casos e atividades muito específicas causados pela COVID-19.

Questão correlata foi discutida no Agravo de Instrumento nº 229870180.2020.8.26.0000 em 14 de maio de 2021, em que a agravante Calejardins Cosméticos em face do Shopping Center Iguatemi, teve seu recurso provido em parte com a concessão da tutela provisória de urgência para a substituição do índice do IGPM para IPCA como fato de correção do aluguel mensal, vejamos:

AGRAVO DE INSTRUMENTO. TUTELA DE URGÊNCIA. AÇÃO REVISIONAL. Decisão que indeferiu tutela provisória de urgência, por meio da qual a autora pretendia rever valor do aluguel. Inconformismo. Acolhimento. Presença dos requisitos do art. 300 do CPC/15. PROBABILIDADE DO DIREITO INVOCADO. Prima facie, a pandemia de COVID-19 se apresenta como fato imprevisível capaz de interferir no negócio jurídico e autorizar a revisão do contrato, com base na teoria da imprevisão. A conservação do negócio, ademais, atende à função social do contrato. Revisão cabível, nos termos do art. 317 do Código Civil. PERIGO DE DANO. Inadimplemento dos locativos que pode fundamentar pedido de despejo e interromper as atividades da agravante. Tutela de urgência concedida parcialmente. Valor do 13º aluguel calculado com base nos locativos pagos no ano de 2020. Substituição do IGPM pelo IPCA. RECURSO PROVIDO EM PARTE. (grifo nosso)

(...)

O comércio fechou, o consumidor alterou seu modo de adquirir bens e serviços, porém, os contratos celebrados visando ao desenvolvimento da atividade empresarial permaneceram vigentes. É certo que parte da atividade econômica lucrou, mas a maioria sofreu os efeitos deletérios inerentes à impossibilidade de funcionamento.

CONCLUSÃO 

A breve análise tratou de abordar a respeito da parcimônia na interpretação dos contratos empresariais, visto que são celebrados por partes presumidamente simétrica, com equiparação de conhecimento acerca dos negócios e que assumem os riscos negociais da exploração de determinada atividade econômica, assumindo em determinados os momentos o insucesso de seu empreendimento.

Por isso, não pode ser interpretado da mesma forma dos contratos de natureza civil ou consumerista, onde de fato há uma forte interferência estatal na interpretação de cláusulas.

Ficou demonstrado em quais momentos contratos celebrados por empresas podem eventualmente ser abarcados pelo CDC, desde se tratem a respeito da vulnerabilidade técnica e na aquisição de bem ou serviço não correlato à atividade fim do negocio da parte.

Portanto, os contratos empresariais necessitam que determinados princípios tenham maior relevância, como a liberdade de contratar e a força vinculativa, pois somente assim haverá a segurança jurídica e a liberdade econômica com quem sabe de fato gerir um negocio objetivando a liberdade de inciativa, liberdade de concorrência e a função social[12] da empresa.


[1] COELHO, Fábio Ulhoa. Manual de Direito Comercial Direito de Empresa. São Paulo. Saraiva, 2016. P.60.

[2] JUNIOR, Francisco Carlos Malosá. SILVA. Rafael de Souza. Autonomia da Vontade e o Dirigismo Estatal nos Contratos. Revista Jurídica da Unifil. P. 182-183. Disponível em: < https://web.unifil.br/docs/juridica/01/Revista%20Juridica_01-14.pdf>. Acesso em 07/04/22.

[3] PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. 10.ed., v.III, Rio de Janeiro: Editora Forense, 2001.

[4] COELHO. Fabio Ulhoa. Manual de Direito Comercial. São Paulo. Saraiva. 2011. P. 124- 126.

[5] RIBEIRO. Marcia Carla Pereira. Contratos empresariais. 2018. Disponível em: < https://enciclopediajuridica.pucsp.br/verbete/252/edicao-1/contratos-empresariais>. Acesso em: 07/04/22

[6]__________Características dos contratos empresariais. Disponível em: < https://www.cleversonneves.com.br/entenda-as-caracteristicas-dos-contratos-empresariais>. Acesso em: 07/04/22

[7] CRUZ. André Santa. Contratos empresariais e dirigismo contratual. 2016. Disponível em: < http://genjuridico.com.br/2016/08/29/contratos-empresariais-e-dirigismo-contratual.> Acesso em 07/04/22

[8] COELHO, Fábio Ulhoa. Princípios do direito comercial. São Paulo: Saraiva, 2012, pp. 49-53.

[9] CRUZ, André Santa. Direito Empresarial. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 9 ed., 2019.

[10] ULHOA. Fábio. A Alocação de Riscos e a Segurança Jurídica na Proteção do Investimento Privado. Revista de Direito Brasileira. 2016. P. 295.

[11] NETTO. Alberto Barella. ENGELMANN. Wilson NASCIMENTO, Hérica Cristina Paes. Especificidades dos contratos empresariais e a pandemia causada pela covid-19. Brasilian Journal of Development. ISSN: 2525-8761. 2021. P. 14.

[12] _________ Interpretando os contratos empresariais. Disponível em:  https://alfonsin.com.br/interpretando-os-contratos-empresariais/> Acesso em:07/04/22

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Sobre a autora
Brígida Riccetto

Advogada OAB/SP 448.499 Pós-Graduanda em Direito Empresarial FGV/SP Membro da Associação Nacional dos Profissionais de Privacidade de Dados -ANPPD® Atuante em direito contratual, compliance e empresarial.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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