A (im)possibilidade de requerimento da falência pela Fazenda Pública

16/06/2021 às 18:24
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O presente artigo discute se há possibilidade de requerimento da falência por parte da Fazenda Pública, à luz da lei nº 11.101/05, considerando as alterações promovidas pela lei nº 14.112/20.

 

  1. Introdução

 

            O processo de falência é uma garantia dos credores de que seus direitos serão cumpridos apesar da insolvência do devedor falido, que não pôde cumpri-los por conta própria. Um dos princípios básicos que norteiam o seu funcionamento é a igualdade entre os credores. Tal igualdade não significa, destaca-se, que todos os credores serão pagos da mesma maneira, mas segundo uma ordem legal de preferência, determinada em lei pelo art. 83 da Lei nº 11.101.

              Quanto à legitimidade ativa para a requisição da falência, a legislação estabelece que esta poderá ser feita pelo próprio devedor, pelo cônjuge sobrevivente, qualquer herdeiro do devedor ou o inventariante, pelo cotista ou acionista do devedor na forma da lei ou do ato constitutivo da sociedade ou por qualquer qualquer credor. A menção à legitimidade de qualquer credor para requisição da falência põe em discussão a possibilidade da Fazenda Pública requerer a falência do devedor insolvente, tendo em vista a quantidade de dívidas tributárias muitas vezes reunidas por um devedor insolvente e a ausência de menção expressa à negativa da legitimidade fazendária, o que resulta em intensas e divergentes discussões doutrinárias e jurisprudenciais. 

                  A análise da questão justica-se em face da controvérsia que circunda o tema, tendo em vista de que de um lado está o interesse arrecadatório da Fazenda Pública, cuja legitimidade para agir baseia-se no interesse público, e do outro há o interesse das empresas, que desempenham importante função econômica e que poderiam ser prejudicadas em sua atividade econômicas caso fossem dados superpoderes para o Fisco, que já possui outros meios para satisfazer seus créditos, como estabelece a Lei nº 6.830/90.

                 Destarte, serão analisados os contornos da falência, incluindo seu conceito, sua natureza jurídica, os fins que visa alcançar e os interesses nela envolvidos, assim como a legislação  e a jurisprudência pertinente, para se chegar à conclusão sobre os legitimados para iniciá-la. 

 

2. Falência

2.1 Conceito   

             Em uma análise etimológica da palavra,  falência advém da expressão fallere, que significa faltar, enganar, abrangendo a situação daquele que falta com seu compromisso. Nesse sentido, a falência tem natureza jurídica de processo de execução coletiva forçada do devedor empresário insolvente, que não cumpriu os compromissos com seus credores. Assim, por meio da falência, tais credores poderão ter seus direitos protegidos. 

                   É importante considerar que a atividade comercial, de função social essencial para o desenvolvimento da economia e para a geração de empregos, é em grande parte baseada no crédito, ou seja, na confiança estabelecida entre as partes nos negócios jurídicos. No momento em que tal vínculo é rompido pelo inadimplemento de um empresário, é preciso assegurar aos credores a proteção de seus direitos, seguindo uma ordem legal de preferência, bem como oportunizar a reabilitação posterior do falido. Nessa perspectiva, ilustra a questão Marlon Tomazette:

A Lei nº 11.101/2005 possui um viés mais recuperatório do que liquidatório, seguindo uma tendência mundial do direito das empresas em crise. Apesar disso, a referida lei não deixa de tratar da falência, isto é, da liquidação patrimonial forçada em relação aos devedores empresários que não têm condições de superar a crise econômico-financeira pela qual estão passando. Deve-se buscar, sempre que possível, a recuperação da empresa, mas não a ponto de desvirtuar os riscos da atividade, passando-os aos credores. Quando não é possível ou não é viável a recuperação, deve-se proceder à liquidação forçada do patrimônio do devedor, para reduzir ou evitar novos prejuízos decorrentes do exercício da atividade por aquele devedor.

               Em virtude da função social desempenhada pela empresa, a legislação falimentar busca precipuamente a recuperação judicial, ou seja, a adoção de atos que visam a superação da crise de uma empresa ainda viável, conforme disposição do art. 47, da Lei nº  11.101, para permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores. Entretanto, não sendo esta possível, deve ocorrer decretação da falência com o fim de maximizar os ativos do devedor falido para pagar o maior número possível de credores. 

            A falência é decretada obrigatoriamente a partir de uma sentença judicial, que reconhece a existência dos pressupostos legalmente necessários para seu reconhecimento, podendo ocorrer a requisição por qualquer dos credores, pertencendo a legitimidade passiva aos empresários individuais e as sociedades empresárias. Nota-se que a falência existe apenas para os devedores empresários, sendo incabível para devedores civis, aplicando-se, nesse caso, a insolvência civil. O conceito de empresário advém do próprio Código Civil, que em seu art. 966 afirma:

Art. 966. Considera-se empresário quem exerce profissionalmente atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou de serviços.

Parágrafo único. Não se considera empresário quem exerce profissão intelectual, de natureza científica, literária ou artística, ainda com o concurso de auxiliares ou colaboradores, salvo se o exercício da profissão constituir elemento de empresa.

                Além disso, é princípio básico da falência a igualdade entre todos os credores, ou seja, por ser uma execução coletiva, busca o pagamento de todos os credores e não apenas de alguns. Contudo, ressalta-se que tal igualdade não significa que todos os credores terão os mesmos pagamentos, pois a lei estabelece uma ordem legal de preferência a ser seguida, para que se possa dar maior proteção a quem merece, considerando que raramente haverá recursos suficientes para o pagamento de todos. Outros princípios que norteiam o processo falimentar são a celeridade e a economia processuais, ou seja, quanto mais rápido for o processo de falência, menores serão os prejuízos dos credores e menor será seu custo. 

2.2 Finalidades da Falência

               Durante certo tempo, a decretação de falência era tratada como uma punição para o empresário que não conseguisse cumprir suas obrigações adequadamente. Pela própria etimologia da palavra, anteriormente referida, falência vinha da ideia de falta, engano. Nesse sentido, diz Gladson Mamede:

A insolvência, a incapacidade de adimplir as obrigações, é normalmente objeto da ampla repreensão social. Palavras como insolvente, falido, quebrado estão marcadas por um valor negativo, vexatório, intimamente ligado à ideia de caloteiro, criminoso, fraudador, desonesto, trapincola, entre outros. A insolvência é por muitos considerada um motivo de desonra e infâmia, um estado análogo ao crime, uma nódoa indelével na história de uma pessoa. É uma tendência antiga, que tem em seu histórico até sustentação jurídica, como na prática de considerar infames os falidos (fallit sunt infames et infamissimi). Toda essa incompreensão e agressividade derivam da impressão geral de que o insolvente chegou a esse estado porque quis, por ser desonesto.

                 Assim, a falência limitava-se a garantir o pagamento dos credores, com a maximização dos bens do ativo. Com a evolução da percepção sobre a atividade econômica, nota-se que nem sempre a crise que acomete uma empresa é culpa do empresário, esta pode advir de fatores externos, alheios a sua vontade. Além disso, a decretação da falência não deve servir de empecilho para aquele que, uma vez falido, não invista na atividade empresarial novamente.

                      Com o advento da Lei nº 14.112, que alterou diversos dispositivos da legislação falimentar, as finalidades da falência foram ampliadas e potencializadas em prol da efetivação do princípio da preservação das empresas. Antes dessa lei, o art. 75 do referido documento normativo, falava apenas que a falência, ao promover o afastamento do devedor de suas atividades, visava preservar e otimizar a utilização produtiva dos bens, ativos e recursos produtivos, inclusive os intangíveis, da empresa. A partir da nova redação conferida ao dispositivo, passa a ser considerado também como fim específico da falência permitir a liquidação célere das empresas inviáveis, com vistas à realocação eficiente de recursos na economia e fomentar o empreendedorismo, inclusive por meio da viabilização do retorno célere do empreendedor falido à atividade econômica. É o que a doutrina chama de “fresh start”, ou seja, é concedida uma nova chance para que um devedor, anteriormente declarado falido,  retorne rapidamente ao mercado.       

               Nesse sentido, a falência não é mais tida como o fim, mas como meio de continuidade da atividade econômica, inclusive com a reabilitação do falido e seu retorno à atividade empreendedora, por meio de uma execução coletiva, em que são parte ativa todos os credores. Assim, citando novamente Gladson Mamede:

É preciso ordenar a apuração do patrimônio ativo do insolvente (o quantum total de seus bens), levantar corretamente o seu patrimônio passivo (o valor efetivo de suas dívidas) e, enfim, distribuir o montante arrecadado com a alienação dos bens, segundo dois critérios distintos: (1º) o interesse público em que certos créditos, por sua natureza, sejam satisfeitos preferencialmente, em desproveito de outros que, por sua natureza, têm menor relevância social e econômica; e (2º) garantir que todos os credores, titulares de faculdades de mesma natureza, sejam tratados em igualdade de condições, opção jurídica que se identifica com o princípio da par conditio creditorum, ou seja, princípio do tratamento dos credores em igualdade de condições.

3. Estado falimentar: causas que autorizam a requisição do pedido de falência

 3.1 Impontualidade

     De acordo com a lei nº 11.101, em seu art. 94, I, uma das causas que  autorizam a decretação da falência é o não pagamento, no vencimento, de obrigações cuja soma ultrapassa no mínimo 40 (quarenta) salários mínimos, conforme disposto abaixo: 

Art. 94. Será decretada a falência do devedor que:

I – sem relevante razão de direito, não paga, no vencimento, obrigação líquida materializada em título ou títulos executivos protestados cuja soma ultrapasse o equivalente a 40 (quarenta) salários-mínimos na data do pedido de falência;

              Desse modo, se o empresário deixa de cumprir algumas obrigações isso não significa necessariamente que ele esteja em dificuldades financeiras, contudo, se há o não pagamento injustificado de uma dívida com certas características previstas na lei, o estado de  insolvência poderá ser presumido. 

 Importa salientar que não se configura insolvência se a obrigação inadimplida for inexigível na falência, ainda que atenda aos requisitos de configuração da impontualidade, nem os créditos por obrigações a título gratuito e despesas adquiridas para tomar parte na recuperação judicial ou na falência, salvo aquelas decorrentes de litígio com o devedor.

3.2 Execução frustrada

              Outra circunstância autorizadora do pedido de falência  está prevista no art. 94, II, da Lei nº 11.101:

Art. 94. Será decretada a falência do devedor que:

(...)

II – executado por qualquer quantia líquida, não paga, não deposita e não nomeia à penhora bens suficientes dentro do prazo legal;

           Quantia líquida é aquela determinada, certa, ou seja, quando o devedor sabe exatamente quanto deve pagar. Nesse  caso, a insolvência do devedor é presumida tendo em vista que o empresário já foi executado por outras dívidas e não foi capaz de satisfazê-las, nem nomeou bens suficientes à penhora, gerando uma presunção legítima de que não será  capaz de cumprir as demais obrigações. 

3.3 Atos de falência

          São considerados atos de falência sinais que exteriorizam a ruína patrimonial do devedor insolvente, exceto se praticados com fundamento em um plano de recuperação judicial.

Art. 94. Será decretada a falência do devedor que:

III – pratica qualquer dos seguintes atos, exceto se fizer parte de plano de recuperação judicial:

a) procede à liquidação precipitada de seus ativos ou lança mão de meio ruinoso ou fraudulento para realizar pagamentos;

b) realiza ou, por atos inequívocos, tenta realizar, com o objetivo de retardar pagamentos ou fraudar credores, negócio simulado ou alienação de parte ou da totalidade de seu ativo a terceiro, credor ou não;

c) transfere estabelecimento a terceiro, credor ou não, sem o consentimento de todos os credores e sem ficar com bens suficientes para solver seu passivo;

d) simula a transferência de seu principal estabelecimento com o objetivo de burlar a legislação ou a fiscalização ou para prejudicar credor;

e) dá ou reforça garantia a credor por dívida contraída anteriormente sem ficar com bens livres e desembaraçados suficientes para saldar seu passivo;

f) ausenta-se sem deixar representante habilitado e com recursos suficientes para pagar os credores, abandona estabelecimento ou tenta ocultar-se de seu domicílio, do local de sua sede ou de seu principal estabelecimento;

g) deixa de cumprir, no prazo estabelecido, obrigação assumida no plano de recuperação judicial.

          Tais incisos reúnem uma quantidade de ações que, se praticadas pelo devedor empresário, permitem presumir que foram praticadas com o fim de esconder a condição de falido e de prejudicar credores.

4. Créditos tributários

4.1 Conceito

              A norma tributária estabelece, no plano da abstração, a previsão hipotética de um fato e a consequência que deve ser seguida caso ela se concretize. No momento em que ocorre, no mundo fenomênico, tais fatos, há a efetiva incidência do fato gerador do tributo, gerando direitos e obrigações, a chamada obrigação tributária. Nesse momento, tal relação jurídica ainda está ilíquida, incerta e inexigível, tornando-se somente a partir do lançamento devidamente acertada (líquida, certa e exigível), constituindo assim o chamado crédito tributário. 

                Nesse sentido, diz Hugo de Brito Machado:

O crédito tributário, portanto, é o vínculo jurídico, de natureza obrigacional, por força do qual o Estado (sujeito ativo) pode exigir do particular, o contribuinte ou responsável (sujeito passivo), o pagamento do tributo ou da penalidade pecuniária (objeto da relação obrigacional).

                    Assim, somente a partir da constituição do crédito é que o Fisco pode ajuizar ação para sua cobrança e a efetivação inclusive de atos de penhora patrimonial, de acordo com a lei de Execuções Fiscais (Lei nº 6.830). Tal crédito possui algumas garantias e privilégios que serão a seguir explanados.

4.2 Garantias e privilégios do crédito tributário

               O crédito tributário possui diversas garantias e privilégios que os distinguem dos demais, dispostos a partir do art. 183 do Código Tributário Nacional, com entendimento dado a partir da Lei Complementar 118, que o faz de maneira não exaustiva, ou seja, não excluem outras que sejam expressamente previstas em lei, tendo em vista a natureza ou as características do tributo a que se referem. 

               Responde pelo pagamento do crédito tributário a totalidade dos bens e das rendas, de qualquer origem ou natureza do sujeito passivo, seu espólio ou sua massa falida, inclusive aqueles gravados com ônus real ou com cláusula de inalienabilidade ou impenhorabilidade, independentemente da data de constituição do ônus ou da cláusula, excetuando unicamente os bens e rendas que a própria lei declare absolutamente impenhoráveis. O conceito de impenhorabilidade, dentro da execução fiscal, é bem mais restrito do que aquele previsto no CPC/15, em seu art. 833, pois a inalienabilidade e a impenhorabilidade convencionada entre as partes são inoponíveis em relação ao Fisco. O bem de família, cuja impenhorabilidade decorre da lei nº 8.009/90, é oponível em relação ao Fisco, com exceção dos débitos que decorram do imposto predial ou territorial, taxas e contribuições devidas em função do próprio imóvel familiar.

             No que se referem às preferências, estas dizem respeito à posição do crédito em relação aos outros. Em regra, o crédito tributário prefere a qualquer outro, ressalvados os créditos decorrentes da legislação trabalhista ou de acidente de trabalho, conforme disposição expressa do art. 186, do CTN. No processo falimentar, no entanto, também precedem o crédito tributário, além daqueles anteriormente citados, os créditos extraconcursais, assim considerados aqueles que surgem no decorrer do processo falimentar, como a remuneração do administrador judicial e de seus auxiliares e os decorrentes de serviços prestados à massa ou às importâncias passíveis de restituição, nos termos da lei falimentar, e os créditos com garantia real, no limite do valor do bem gravado. Contudo, nota-se que há um limite de 150 salários-mínimos para os créditos trabalhistas.

                   Distingue-se ainda na falência os créditos relativos a tributos devidos e os créditos ligados a multas tributárias, estas preferem apenas aos créditos subordinados. Desse modo, durante a falência, a Fazenda Pública terá preferência maior apenas para receber tributo devido, contudo, com relação ao crédito relativo às penalidades tributárias, ocorrerá o pagamento apenas depois de quitados todos os créditos quirografários, alcançando apenas o saldo que eventualmente sobrar e que de outra forma seria entregue aos sócios da sociedade falida, nos termos do art. 186, parágrafo único, III, do CTN e do art. 83, VIII, da Lei nº 11.101/05. 

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                  Além disso, a cobrança judicial do crédito tributário não se sujeita a concurso de credores ou habilitação em falência, recuperação judicial, concordata, inventário ou arrolamento. Isso significa que o Fisco não precisa se sujeitar ao concurso formal de credores, no processo de falência, para ter seus créditos satisfeitos, pois possui o caminho direto da Execução Fiscal, regido pela Lei nº 6.830, que estabelece como deverá ocorrer esse processo perante a vara de execuções fiscais. Tal processo inicia-se a partir da Certidão de Dívida Ativa, título executivo extrajudicial, conforme o art. 784, IX, do Código de Processo Civil, documento revestido de certeza, liquidez e exigibilidade.

               Desse modo, ressalta-se que o crédito fiscal continua sujeito à classificação dos créditos, ou seja, ao concurso material de credores, para que não seja prejudicada a ordem de preferências, anteriormente referida, a execução fiscal deverá tramitar normalmente até a eventual realização do leilão de bens, se encontrados, e, após a alienação, o produto deverá ser diretamente remetido ao juízo da falência. Isso significa que, mesmo encontrando bens passíveis de penhora no intercurso da execução fiscal, deve ocorrer sua entrega, integral, ao Juiz da Falência, para cumprimento da ordem legal de preferência, somente sendo devolvido para satisfazer os créditos tributários se existir saldo remanescente. 

5. Da possibilidade do pedido de falência por parte da Fazenda Pública: análise doutrinária e jurisprudencial

5.1 Legitimidade ativa para requerimento da falência de acordo com a lei nº 11.101

            Antes de adentrar no cerne da discussão, cabe inicialmente ressaltar os legitimados ativos reconhecidos pela lei de Falências (Lei nº 11.101/05), em seu artigo 97:

Art. 97. Podem requerer a falência do devedor:

I – o próprio devedor, na forma do disposto nos arts. 105 a 107 desta Lei;

II – o cônjuge sobrevivente, qualquer herdeiro do devedor ou o inventariante;

III – o cotista ou o acionista do devedor na forma da lei ou do ato constitutivo da sociedade;

IV – qualquer credor.

                O inciso I ao permitir a autofalência, abrange situações em que o próprio devedor percebe que a crise no qual está inserido é incontornável, sendo a única saída viável o pedido da própria falência. Ainda que não exista propriamente uma obrigatoriedade de requerer a falência nessa situação, tal pedido demonstra a boa-fé do devedor e pode contribuir para sua reabilitação. Também pode evitar uma ação de responsabilização, que culmine no pedido de desconsideração da pessoa jurídica, afastando suspeita de fraude ou má-fé na conduta do devedor insolvente.

                  O inciso II, por sua vez, admite o pedido de falência por cônjuge sobrevivente, herdeiro do devedor ou inventariante em virtude do interesse econômico que tais sujeitos possuem na resolução das dívidas que recaem sobre o patrimônio do devedor empresário insolvente, ao qual herdaram.

                   Há legitimidade ativa também para os sócios cotistas ou acionistas requererem a falência de sociedade empresária da qual façam parte, conforme diz o inciso III, como forma de proteger-se da dilapidação patrimonial praticada por seu administrador ou dos demais sócios. 

                       Por fim, diz o inciso IV, que há legitimidade de qualquer credor para requisição do pedido de falência, pois todos possuem interesse na satisfação de seus créditos. Nota-se que a lei não especifica nenhum tipo de credor nesse inciso, nem faz qualquer requisição de valor. 

            Como não há restrição especificada na lei, há discussões doutrinárias e jurisprudenciais a respeito se a Fazenda Pública, como um dos credores do devedor, possui legitimidade para o requerimento da falência do devedor insolvente.

5.2 Argumentos favoráveis ao requerimento da falência pela Fazenda Pública

                     A questão relativa à possibilidade da Fazenda Pública pedir falência do devedor é controvertida desde a vigência do antigo Decreto-Lei nº 7.661/45, que regulava o processo falimentar antes do advento da lei nº 11.101 de 2005. Tal norma, por sua vez, também não foi capaz de pôr fim a essa discussão, em especial em relação à análise do seu art. 97, IV. Tendo em vista o gozo da Fazenda Pública com relação a diversos benefícios e privilégios na persecução de seus créditos, conforme os artigos 186 e 187, do Código Tributário Nacional, e arts. 5º, 29 e 31, da Lei de Execuções Fiscais, o reconhecimento de sua legitimidade ativa para o pedido de falência é considerado uma suposta afronta tanto a princípios constitucionais quanto a princípios específicos da Lei nº 11.101, como o princípio da recuperação das empresas. 

                 Nesse sentido, embora a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça seja firme no sentido de não reconhecer a legitimidade do Fisco no requerimento da falência, a primeira Câmara Reservada de Direito Empresarial do TJSP, por maioria dos votos, deu provimento, em julho de 2020, a recurso interposto pela Procuradoria Geral da Fazenda Nacional, reconhecendo a legitimidade da União. Acompanharam o Des. Relator Alexandre Lazzarini, os Desembargadores Azuma Nishi, Pereira Calças e Cesar Ciamplini. Declarou-se voto vencido o 3º juiz, desembargador Fortes Barbosa, e voto convergente o 4º juiz, desembargador Pereira Calças. Segue a seguir a ementa do referido julgado:

FALÊNCIA. PEDIDO FORMULADO PELA UNIÃO FEDERAL. SENTENÇA QUE INDEFERIU A PETIÇÃO INICIAL E JULGOU EXTINTO O FEITO, SEM JULGAMENTO DO MÉRITO, POR FALTA DE INTERESSE DE AGIR DA FAZENDA PÚBLICA. HIPÓTESE DE ANULAÇÃO. PEDIDO DE FALÊNCIA COM BASE NO ART. 94, II, DA LEI Nº 11.101/05. CASO CONCRETO EM QUE RESTOU FRUSTRADA A EXECUÇÃO FISCAL. ESGOTAMENTO DOS MEIOS DISPONÍVEIS À UNIÃO PARA SATISFAÇÃO DO CRÉDITO. INTERESSE DE AGIR. HIPÓTESE QUE NÃO CONFIGURA VIOLAÇÃO AOS PRINCÍPIOS DA IMPESSOALIDADE E DA PRESERVAÇÃO DA EMPRESA. EFEITOS DE EVENTUAL DECRETAÇÃO DE FALÊNCIA RELEVANTES PARA A PRESERVAÇÃO DA LIVRE CONCORRÊNCIA, EM COMBATE AOS AGENTES ECONÔMICOS NOCIVOS AO MERCADO. FAZENDA PÚBLICA QUE SE SUBMETE AO CONCURSO MATERIAL DE CREDORES, E, PORTANTO, TAMBÉM TEM INTERESSE NO PEDIDO DE QUEBRA. APELAÇÃO PROVIDA PARA ANULAR A SENTENÇA.

(TJ-SP - AC:10019756120198260491 SP 1001975-61.2019.8.26.0491, Relator: Alexandre Lazzarini, Data de Julgamento: 30/07/2020, 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, Data de Publicação: 31/07/2020)

                No caso supracitado, a Fazenda Pública Federal requereu a falência de Derco Comércio e Representação de Produtos Alimentícios Ltda em virtude do fato de que, durante a execução fiscal, a empresa não pagou nem nomeou bens à penhora. O crédito ultrapassava o valor de R$ 22.000.000,00, muito superior à capacidade econômica da requerida. Dessa forma, o Fisco alegou que ocorreu incidência da hipótese prevista no inciso II, do art. 94, ou seja, a execução frustrada, o que fundamentaria o requerimento da falência. Ainda que o juiz a quo tenha entendido que não havia interesse processual, pois a Fazenda teria a seu dipor outros meios de cobrança possíveis, o Fisco interpôs apelação pra ter a decisão reformada, o que acabou por ocorrer. 

                      O Fisco alegou, em sede de apelação, saber que a falência deve ser usada como ultima ratio, ou seja, como último recurso e não como mero meio de cobrança. Sua ação se justifica, assim, tendo em vista sua tentativa frustrada de execução e do interesse público em expurgar do mercado agentes econômicos que demonstrem incapacidade de cumprir suas obrigações tributárias, o que ocorreu no caso. Não há, desse ponto de vista, incompatibilidade entre o processo de execução fiscal e o processo falimentar.

                 O desembargador relator da decisão interpretou o artigo 94 da Lei 11.101/05, entendendo que cabe uma interpretação restritiva no caso de pedido de falência por mero protesto do título, caso previsto no inciso I, de forma a não permitir seu uso indevido, em face do princípio da razoabilidade, considerando que ser impontual não significa ser insolvente. Não obstante, com relação ao inciso II, cabe uma interpretação diferenciada, de forma a abranger situações em que a Fazenda Pública ajuizou adequadamente a competente execução fiscal, mas não ocorreu êxito na satisfação do crédito, não ocorrendo pagamento voluntário da dívida, nem encontrando bens suficientes para satisfazê-la. Em face do insucesso das vias processuais a seu dispor, careceria de razoabilidade afastar do Fisco meio alternativo de persecução do crédito, inclusive tendo em vista o princípio do interesse público. O interesse público, nota-se, é, indiscutivelmente, o corolário da atuação dos entes estatais, perpassando interesses secundários que porventura possam existir. Diz Celso Antônio Bandeira de Melo: 

Interesse público deve ser conceituado como o interesse resultante do conjunto dos interesses que os indivíduos pessoalmente têm quando considerados em sua qualidade de membros da Sociedade e pelo simples fato de o serem.

                   Ademais, foi considerado na decisão do tribunal que, na classificação do concurso de credores, há diferença em relação ao concurso formal e ao concurso material de credores. O concurso formal diz respeito à habilitação dos credores ao processo falimentar, ou seja, por meio de prova de sua condição, situação a qual não está sujeita a Fazenda Pública, por disposição legal. Por outro lado, o concurso material diz respeito à ordem legal de preferências entre os créditos, ao qual está submetido o crédito tributário, de acordo com o art. 83 da Lei nº 11.101, só sendo pagos após os créditos trabalhistas e os créditos com garantia real.

              Ademais, inúmeras vezes a Fazenda Pública não consegue lograr êxito nas suas execuções. De acordo com pesquisa elaborada pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada - IPEA, denominada Custo e tempo do processo de execução fiscal, promovido pela Procuradoria Geral da Fazenda Nacional, a probabilidade de se obter a recuperação integral de um crédito cobrado por meio de execução fiscal é de 25,8% e o tempo médio de tramitação do processo é de aproximadamente 9 anos, 9 meses e 16 dias, considerando ainda que muitas são extintos por causas como a prescrição intercorrente ou a decadência. Além disso, em ações de execução de dívidas menores do que R$ 21.731,45, a União dificilmente consegue recuperar valor igual ou superior ao custo do processo judicial, o que gera problemas de arrecadação para o Fisco. 

               Os dados do Relatório “Justiça em Números”, principal fonte de estatísticas oficiais do Poder Judiciário, produzido pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) demonstra que as execuções fiscais representam um “gargalo” na Justiça por representarem 70% do total dos processos de execução. O tempo de giro desse tipo de processo é de cerca de 6 anos e 7 meses, o que significa que, mesmo que o Fisco parasse de receber novas execuções, ainda seria necessário todo esse tempo para liquidação do acervo existente.

                   Ademais, a execução fiscal é tão atrelada à falência, que o Fisco só recebe seus créditos contra o devedor falido durante o processo falimentar, pois todos os bens porventura penhorados durante a execução fiscal devem ser submetidos ao Juízo Falimentar para pagamento dos credores prioritários, o que implica com que, na prática, é como se a Fazenda Pública estivesse submetido ao concurso formal de credores. Caso não sejam encontrados bens durante o processo de execução, a saída para o Fisco é o pedido de penhora no rosto dos autos do processo falimentar, o que impede que a prescrição do crédito corra.  Assim se caso, como não raramente acontece, a empresa insolvente não possua patrimônio suficiente para quitar todos os créditos, a Execução Fiscal será totalmente inócua. 

                 Sob a perspectiva histórica, analisando a evolução da legislação falimentar, antes da publicação do Decreto-lei nº 7.661/45, apenas as obrigações eminentemente comerciais podiam ensejar o pedido de falência. Com o advento do Decreto-Lei referido, a doutrina passou a considerar que apenas credores quirografários possuíam legitimidade ao requerimento judicial da quebra. Credores com garantia real, de acordo com o art. 9º, III, b, só poderiam requerê-la com renúncia a essa garantia ou comprovação de sua insuficiência. A lei Lei 11.101 de 2005, que revogou esse decreto, trouxe importante inovação à legislação ao não reproduzir o artigo antigo, que tratava da legitimidade ativa da falência. A  título de comparação, observa-se que a lista de legitimados para o requerimento do processo falimentar da Lei nº 11.101 é mais amplo e abrangente que a do Decreto-Lei nº 7.661, conforme visto abaixo:

Decreto nº 7.661

Art. 9º A falência pode também ser requerida:

I - pelo cônjuge sobrevivente, pelos herdeiros do devedor ou pelo inventariante, nos casos dos arts. 1º e 2º, nº I;

II - pelo sócio, ainda que comanditário, exibindo o contrato social, e pelo acionista da sociedade por ações, apresentando as suas ações;

III - pelo credor, exibindo título do seu crédito, ainda que não vencido, observadas, conforme o caso, as seguintes condições:

a) credor comerciante, com domicílio no Brasil, se provar ter firma inscrita, ou contrato ou estatutos arquivados no registro de comércio;

b) o credor com garantia real se a renunciar ou, querendo mantê-la, se provar que os bens não chegam para a solução do seu crédito; esta prova será feita por exame pericial, na forma da lei processual, em processo preparatório anterior ao pedido de falência se êste se fundar no artigo 1º, ou no prazo do artigo 12 se o pedido tiver por fundamento o art. 2º;

c) o credor que não tiver domicílio no Brasil, se prestar caução às custas e ao pagamento da indenização de que trata o art. 20.

 

Lei nº 11.101

Art. 97. Podem requerer a falência do devedor:

I – o próprio devedor, na forma do disposto nos arts. 105 a 107 desta Lei;

II – o cônjuge sobrevivente, qualquer herdeiro do devedor ou o inventariante;

III – o cotista ou o acionista do devedor na forma da lei ou do ato constitutivo da sociedade;

IV – qualquer credor.

               Nota-se que não há, na lei nº 11.101, nenhuma especificação com relação ao inciso IV, do art. 97 que confere legitimidade a qualquer credor, não existindo previsão expressa que afaste a legitimidade do Fisco.  

                    Por fim, defende essa corrente doutrinária que a requisição de falência pela Fazenda Pública, nesse caso, teria por objetivo reprimir agentes econômicos que não pagam seus tributos e concorrem deslealmente com aqueles que pagam, sendo nocivos ao mercado e à livre concorrência, além de causar prejuízos ao bom funcionamento da Administração Pública. O não cumprimento de obrigações tributárias, não apenas coloca o devedor em concorrência desleal com os demais que cumprem tais obrigações adequadamente, mas gera prejuízos a toda coletividade, tendo em vista que é a partir da arrecadação tributária que advêm os recursos para financiamento de serviços públicos essenciais, tais como educação, saúde, segurança.

            Cabe ainda destacar lei de falências (Lei 11.101/05), teve vários de seus dispositivos alterados pela lei 14.112, de 2020, incluindo um dispositivo que traz importante inovação legislativa na questão aqui tratada: a possibilidade do Fisco pleitear a falência de uma empresa que, estando em processo de recuperação judicial, descumpra acordo de parcelamento dos créditos fiscais devidos. Esse é o entendimento que se retira da análise conjunta dos artigos 73 e 68 da lei 11.101, após alteração legislativa:

Art. 73. O juiz decretará a falência durante o processo de recuperação judicial:

(...)

V - por descumprimento dos parcelamentos referidos no art. 68 desta Lei ou da transação prevista no art. 10-C da Lei nº 10.522, de 19 de julho de 2002

 

Art. 68. As Fazendas Públicas e o Instituto Nacional do Seguro Social – INSS poderão deferir, nos termos da legislação específica, parcelamento de seus créditos, em sede de recuperação judicial, de acordo com os parâmetros estabelecidos na Lei nº 5.172, de 25 de outubro de 1966 - Código Tributário Nacional.    

 

                  Tal alteração legislativa trouxe “superpoderes” que o Fisco até então não possuía, trazendo uma possibilidade do Fisco requerer falência, o que poderá criar precedentes que ampliam a atuação fazendária.

5.3 Aspectos desfavoráveis à legitimidade ativa da Fazenda Pùblica

                 A corrente doutrinária que defende a não possibilidade de requerimento da falência por parte da Fazenda Pública tem bastante força e respaldo na doutrina e na jurisprudência, assumindo posição majoritária. Tal corrente ressalta que ao Fisco já são asseguradas muitas vantagens que visam a satisfação do crédito, como a inscrição do débito em dívida ativa; o ajuizamento de execução fiscal, a qual possui regramento dado por uma lei própria, a Lei nº 6.830/80; as prioridades dos créditos fiscais previstas em lei, que ficam atrás apenas dos trabalhistas, os extraconcursais e os gravados com direito real, e ainda a utilização do protesto. Desse modo, a decisão da Câmara de Direito Empresarial do TJSP anteriormente referida foi duramente criticada por especialistas.

               Para Ricardo Negrão, o requerimento da falência por parte da Fazenda Pública implicaria em ofensa ao princípio constitucional da impessoalidade, previsto na Constituição Federal de 1988, em seu art. 37, como um dos princípios basilares da Administração Pública, além de implicar séria intervenção do Estado na atividade econômica, pois permitiria a utilização de critérios subjetivos por parte do Fisco para escolher de quem pediria ou não a falência, tratando desigualmente os administrados:

Adota-se, como regra, nesta obra, a segunda corrente, não apenas pelas razões expostas pelo eminente Ministro Cláudio Santos, mas também porque a entrega da decisão de requerer a falência ao funcionário do Estado, de forma discricionária, cabendo a ele decidir em que casos o fará ou não, implica violação ao princípio da impessoalidade do art. 37 da Constituição Federal, salvo se o pedido de falência pela Administração Pública se vinculasse a critérios objetivos fixados em lei.

                No mesmo sentido, Marlon Tomazette coloca a execução fiscal como o meio apropriado para garantir o pagamento do Fisco:

A nosso ver, a razão está com os últimos na medida em que a execução fiscal pode prosseguir normalmente, sendo o processo falimentar um meio muito mais grave para o recebimento do crédito.

                 Diz ainda Rubens Requião, no sentido de não reconhecer o interesse fazendário na falência:

Estranhamos o interesse que possa ter a Fazenda Pública no requerimento de falência do devedor por tributos. Segundo o Código Tributário Nacional, os créditos fiscais não estão sujeitos ao processo concursal; e a declaração da falência não obsta o ajuizamento do executivo fiscal, hoje de processamento comum. À Fazenda Pública falece, ao nosso entender, de legítimo interesse econômico e moral para postular a declaração de falência de seu devedor.

A ação pretendida pela Fazenda Pública tem, isso sim, nítido sentido de coação moral, dada as repercussões que um pedido de falência tem em relação às empresas solventes.

                     Cabe destacar ainda o que diz Professor Sacha Calmon: 

O requerimento da falência por parte da Fazenda Pública ultrapassa certos limites, sendo o primeiro de ordem ética, não podendo o empresariado ser intimidado com ameaças de morte empresarial; e o segundo de ordem política, onde a ameaça seria apenas para atrair os devedores a um acordo. Onde a ameaça e a confissão de dívida, que precede o parcelamento, a democrática possibilidade de se discutir o débito, direto, de resto, de fundo constitucional, fica prejudicada. O terceiro é de ordem jurídica. Penso que os privilégios da Fazenda Pública não lhe permitem pedir a falência de ninguém. Ora, a Fazenda não cobra a título emitido e não honrado pelo devedor: cheque, nota promissória, letra de câmbio, contrato firma, etc. Ao contrário, cobra título por ela própria produzido unilateralmente, sem controle judicial: a certidão de dívida ativa. Será justo constituir o título e falir quem não o emitiu? Por isso, o Código Tributário Nacional, a contrário sensu, sabendo que a Fazenda não entra na falência, retira-a do rol dos credores, dispondo que o juiz separará bens da massa que sejam necessários para satisfazer a execuções de créditos da Fazenda. Há coisa melhor do que isso? Se a Fazenda já é credora privilegiada, que sequer entra no juízo concentracionário da falência e prefere a todos os credores, exceto os detentores de créditos trabalhistas, ou que, ao cabo, admitir possa a Fazenda pedir a Falência da empresa? Será que ela vai dividir pro rata seus créditos com os quirografários, atrás dos que possuem garantia real? Tenhamos juízo, nos dois sentidos. A seriedade faz parte do espírito de Minas. A Fazenda não pode renunciar aos seus privilégios, que são públicos. Em suma, não pode ir para o juízo da falência.

 

               Além disso, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça é firme no sentido de afastar a legitimidade ativa do Fisco para o pedido, conforme segue abaixo:

TRIBUTÁRIO E COMERCIAL. CRÉDITO TRIBUTÁRIO. FAZENDA PÚBLICA. AUSÊNCIA DE LEGITIMIDADE PARA REQUERER A FALÊNCIA DE EMPRESA.

1. A controvérsia versa sobre a legitimidade de a Fazenda Pública requerer falência da empresa.

2. O art. 187 do CTN dispõe que os créditos fiscais não estão sujeitos a concurso de credores. Já os arts. 5º, 29 e 31 da LEF, a fortiori, determinam que o crédito tributário não está abrangido no processo falimentar, razão pela qual carece interesse por parte da Fazenda em pleitear a falência da empresa.

3. Tanto o Decreto-lei n. 7.661/45 quanto a Lei n. 11.101/2005 foram inspirados no princípio da conservação da empresa, pois preveem respectivamente, dentro da perspectiva de sua função social, a chamada concordata e o instituto da recuperação judicial, cujo objetivo maior é conceder benefícios às empresas que, embora não estejam formalmente falidas, atravessam graves dificuldades econômico-financeiras, colocando em risco o empreendimento  empresarial.

4. O princípio da conservação da empresa pressupõe que a quebra não é um fenômeno econômico que interessa apenas aos credores, mas sim, uma manifestação jurídico-econômica na qual o Estado tem interesse preponderante.

5. Nesse caso, o interesse público não se confunde com o interesse da Fazenda, pois o Estado passa a valorizar a importância da iniciativa empresarial para a saúde econômica de um país. Nada mais certo, na medida em que quanto maior a iniciativa privada em determinada localidade, maior o progresso econômico, diante do aquecimento da economia causado a partir da geração de empregos.

6. Raciocínio diverso, isto é, legitimar a Fazenda Pública a requerer falência das empresas inviabilizaria a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, não permitindo a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores, tampouco dos interesses dos credores, desestimulando a atividade econômico-capitalista. Dessarte, a Fazenda poder requerer a quebra da empresa implica incompatibilidade com a ratio essendi da Lei de Falências, mormente o princípio da conservação da empresa, embasador da norma falimentar. Recurso especial improvido.

(STJ - Resp: 363206 MG 2001/0148271-0, Relator: Ministro HUMBERTO MARTINS, Data de Julgamento: 04/05/2010, T2 - SEGUNDA TURMA, Data de Publicação: DJe 21/05/2010)

 

PROCESSO CIVIL. PEDIDO DE FALÊNCIA FORMULADO PELA FAZENDA PÚBLICA COM BASE EM CRÉDITO FISCAL. ILEGITIMIDADE. FALTA DE INTERESSE. DOUTRINA. RECURSO DESACOLHIDO.

I - Sem embargo dos respeitáveis fundamentos em sentido contrário, a Segunda Seção decidiu adotar o entendimento de que a Fazenda Pública não tem legitimidade, e nem interesse de agir, para requerer a falência do devedor fiscal.

II - Na linha da legislação tributária e da doutrina especializada, a cobrança do tributo é atividade vinculada, devendo o fisco utilizar-se do instrumento afetado pela lei à satisfação do crédito tributário, a execução fiscal, que goza de especificidades e

privilégios, não lhe sendo facultado pleitear a falência do devedor com base em tais créditos. 

(REsp 164.389/MG, Rel. Ministro CASTRO FILHO, Rel. p/ Acórdão Ministro SÁLVIO DE FIGUEIREDO TEIXEIRA, SEGUNDA SEÇÃO, julgado em 13/08/2003, DJ 16/08/2004, p. 130

                Destaca-se ainda o que é disposto pelo  Enunciado nº 56, da I Jornada de Direito Comercial, promovida pelo CJF:

A Fazenda Pública não possui legitimidade ou interesse de agir para requerer a falência do devedor empresário.

                   Assim, nota-se que há predominância no entendimento da doutrina e da jurisprudência de que falta interesse para a  Fazenda Pública iniciar o processo de falência, considerando-se os privilégios e garantias dos créditos tributários, especialmente o uso da execução fiscal, ação própria para perseguir esses créditos. Ademais, considerando a quantidade de processos de execução fiscal ajuizados e frustrados que existem nas varas de execução fiscal, dos fiscos municipais, estaduais e federais, a quantidade de processos de falência que seriam iniciados a partir daí seria avassaladora, gerando um impacto considerável na atividade econômica e tornando ainda mais difícil a superação da crise econômica enfrentada pela empresa, principalmente porque as obrigações tributárias são geralmente as primeiras que deixam de ser cumpridas  pelo devedor insolvente.  Mesmo que  a execução fiscal reste frustrada, não necessariamente será por meio do processo falimentar que a Fazenda Pública receberá seu crédito, pois com a  falência o que ocorre é a abertura de um concurso de credores, regulamentado pelo art. 83, da LRF, no qual o crédito tributário ocupa o terceiro lugar na ordem de preferência. 

 

                  Ainda que o art. 97, inciso IV, não especifique a quem se refere quando confere legitimidade ativa a qualquer credor, o que abriria espaço para atuação do Fisco, este enquanto componente da Administração Pública, está sujeito ao princípio da legalidade estrita, previsto no art. 37 da Constituição Federal de 1988, o que faz com que sua legitimidade ativa esteja condicionada à previsão legislativa,  que a reconhecesse expressamente. Além disso, sua atuação na cobrança de débitos fiscais está submetido ao regime estabelecido na lei nº 6.830/80, que prevê em seus artigos 1º e 5º que: 

 

Art. 1º A execução judicial para cobrança da Dívida Ativa da União, dos Estados, do Distrito Federal, dos Municípios e respectivas autarquias será regida por esta lei e, subsidiariamente, pelo Código de Processo Civil.

 

Art. 5º A competência para processar e julgar a execução da Dívida Ativa da Fazenda Pública exclui a de qualquer outro juízo, inclusive o da falência, da concordata, da liquidação, da insolvência ou do inventário.

 

                       Importa destacar que a execução fiscal, ainda que possa enfrentar dificuldades práticas, não deixa de ser um meio eficaz e privilegiado para a persecução do crédito tributário, representando uma via processual que nenhum dos outros tipos de crédito possuem. Difere das execuções em geral, prevista no CPC, porque nesta o executado não é obrigado a apresentar garantia da dívida para embargar a decisão, ao contrário da execução fiscal, na qual para efetuar o contraditório, o executado já deve apresentar meios de solver o débito, por meio de dinheiro, fiança bancária ou seguro garantia e bens nomeados à penhora, no prazo de 5 dias. 

                      Para ilustrar os privilégios trazidos pela execução fiscal, em face das execuções comuns, o Superior Tribunal de Justiça consolidou entendimento no sentido de que nela não cabem medidas aflitivas pessoais atípicas, como apreensão de CNH e suspensão de passaporte. Esse foi o entendimento firmado em seu Informativo nº 654, comentado a seguir por Márcio André Lopes Cavalcante: 

O Estado é considerado superprivilegiado em sua condição de credor. Dispõe de varas comumente especializadas para condução de seus feitos, um corpo de Procuradores altamente devotado a essas causas, e possui lei própria regedora do procedimento (Lei nº 6.830/80), com inúmeros privilégios processuais. Um exemplo desses privilégios é o fato de que o devedor, na execução fiscal, só pode apresentar embargos à execução se oferecer garantia do juízo (art. 16, § 1º, da LEF), ao contrário do que ocorre na execução “comum”. Desse modo, o crédito fiscal é altamente blindado dos riscos de inadimplemento, por sua própria conformação jusprocedimental. Além disso, existem diversas outras garantias previstas pelo ordenamento jurídico em favor do crédito tributário, como, por exemplo: • o crédito tributário é privilegiado (art. 184 do CTN), podendo, se for o caso, atingir até mesmo bens gravados como impenhoráveis, por serem considerados bem de família (art. 3º, IV da Lei nº 8.009/90); • o crédito tributário tem altíssima preferência para satisfação em procedimento falimentar (art. 83, III da Lei de Falências); • os bens do devedor podem ser declarados indisponíveis para assegurar o adimplemento da dívida (art. 185-A do CTN). 

Em razão de todos esses “privilégios” acima expostos, a 1ª Turma do STJ entendeu que haveria um excesso se na execução fiscal fossem permitidas medidas atípicas aflitivas pessoais, como é o caso da apreensão de passaporte e da suspensão da CNH.

 

                  Assim, não é possível colocar a Fazenda Pública como “qualquer credor'' tendo em vista inúmeros privilégios que possui no processo falimentar, que a colocam em destaque em relação aos outros credores. O reconhecimento de sua legitimidade para o requerimento de falência representaria a concessão de poderes excepcionais ao ente público, o que iria diretamente de encontro aos princípios da isonomia que deve nortear as relações jurídicas materiais e processuais.

 

6. Conclusão

               A falência é um instituto jurídico fundamental para promover a proteção do crédito e os interesses que circundam a atividade comercial, como o objetivo de maximizar os bens do ativo do devedor falido e promover o empreendedorismo, com sua reabilitação à atividade econômica, conforme art. 75 da Lei nº 11.101. Em face de sua importância, mostra-se fundamental a análise dos legitimados para sua requisição. 

             Em um primeiro momento, a leitura rápida do art. 97, IV, que permite a legitimidade de qualquer credor para o requerimento da falência, poderia deixar entender que não há impedimento para o Fisco atuar nessa questão. Contudo, por meio de uma análise mais cuidadosa é possível concluir que tal posicionamento não merece prosperar.

              O Fisco já possui a seu dispor a Execução Fiscal como meio processual eficiente para pleitear o adimplemento de seus créditos tributários, o que faz com que não exista efetivamente interesse de agir e legitimidade para o requerimento da falência pelo ente público. Além disso, tal possibilidade implicaria em ofensa direta ao princípio da impessoalidade, basilar da atuação da Administração Pública, pois a requisição de  falência em face de alguns devedores empresários e não de outros, com base em critérios subjetivos, se converteria em tratamento não igualitário, em detrimento do interesse público, sendo mais consentâneo a este sua restrição de uso aos particulares, que atuam em maior interação com o empresário, sob normas privadas e em paridade de meios.

              Em virtude de sua importante função social, ao crédito tributário são previstos diversos privilégios e preferências, os quais não podem ser ignorados sob o risco de ferir o próprio interesse público. Além  de que, mesmo se frustrada a execução e seguida de busca de amparo dentro do processo falimentar, não é possível subverter a ordem de preferência legal para o pagamento dos créditos tributários, que ocupam a terceira posição no art. 83 da Lei 11.101. 

                 Desse modo, carece de fundamentação jurídica a decisão da Primeira Câmara Reservada de Direito Empresarial do TJSP, que, na contramão do entendimento majoritário, reconheceu a legitimidade do Fisco, merecendo ser reformada.

                 Importante considerar ainda que não é benéfico às empresas a ampliação demasiada dos legitimados ativos para a falência tendo em vista que esta deve ser uma saída extrema, usada como ultima ratio, quando ineficazes os meios de recuperação judicial ou extrajudicial, tendo em vista o princípio da recuperação das empresas. Por essas razões, o entendimento de que não há legitimidade da Fazenda Pública para o requerimento da falência coaduna-se com os princípios e as finalidades do ordenamento jurídico em geral e o regime falimentar em particular.

 

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STJ, REsp 363.206/MG, rel. min. Humberto Martins, Segunda Turma, j. 04.05.2010; STJ, REsp 164.389/MG, rel. min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, Terceira Turma, j. 16.08.2004; e 

STJ, REsp 287.824/MG, rel. min. Francisco Falcão, Primeira Turma, j. 20.02.2006.

 

STJ, REsp 363.206/MG, rel. ministro Humberto Martins, Segunda Turma, j. 04.05.2010

 

TJ-SP, Apelação Cível n° 1001975-61.2019.8.26.0491, rel. des. Alexandre Lazzarini, 1ª Câmara de Direito Empresarial, j. 16.07.2020

 

 

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