O mínimo existencial e a reserva do possível

Breves apontamentos

08/12/2020 às 15:58
Leia nesta página:

As teorias do Mínimo Existencial e da Reserva do Possível entram em colisão acerca das dificuldades entre o cumprimento de direitos fundamentais e a limitação de verbas do Ente Público. Nesse sentido, o texto pretende analisar brevemente tal problemática.

A onerosa dialética entre o cumprimento dos direitos fundamentais e a limitação material de verbas do Estado, se constitui em uma das grandes questões a serem debatidas no Brasil do século XXI. Nesse sentido, sob a ótica do substancialismo, é necessário que o Poder Judiciário interfira em favor dos direitos fundamentais, assumindo um compromisso com os Princípios Constitucionais. Segundo Lênio Luiz Streck, “Na perspectiva substancialista, concebe-se ao Poder Judiciário uma nova inserção no âmbito das relações dos Poderes de Estado, levando-o a transcender as funções de Checks and Balances”.[1]

Essa corrente substancialista defende a ação do judiciário na defesa dos direitos e garantias fundamentais, principalmente daqueles que compõem um núcleo essencial de direitos. De acordo com Herrera e Machado, “A teoria do “núcleo essencial” preconiza que há um direito as condições mínimas de existência humana digna que não pode ser objeto de intervenção estatal negativa, muito pelo contrário exige prestações estatais positivas.”[2] Destarte, o núcleo essencial seria aquela parcela mínima dos direitos que não pode ser suprimida por meio de uma lei ou qualquer outra justificativa da máquina estatal, fato que acaba conduzindo o estudo para a análise de outro conceito relevante que é o mínimo existencial.

A expressão mínimo existencial aduz a ideia do mínimo dos direitos fundamentais que são essenciais para a vida humana, como por exemplo, o direito à saúde e à alimentação. Contudo, é necessário analisar a expressão com cautela, uma vez que a ausência de muitos direitos fundamentais podem acabar não sendo abarcados pela concepção de mínimo existencial. Com isso, a falta destes podem levar a uma vida sem dignidade, fato que é incompatível com a natureza humana e com o Estado Democrático de Direito Brasileiro que concebe o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana como um dos pilares do ordenamento jurídico. Nesse sentido, há de haver um cuidado para não confundir mínimo existencial com mínimo vital. Segundo Salomão Ismail Filho,

De fato, o mínimo existencial não trata apenas de garantir ao ser humano um “mínimo vital”, mas um mínimo de qualidade vida, o qual lhe permita viver com dignidade, tendo a oportunidade de exercer a sua liberdade no plano individual (perante si mesmo) e social (perante a comunidade onde se encontra inserido).[3]

Desse modo, percebe-se que o mínimo existencial possui uma relação com a dignidade humana e com o próprio Estado Democrático de Direito, no comprometimento que este deve ter pela concretização da ideia de justiça social.[4] Nesse sentido, atrelando o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana com o conceito de mínimo existencial, Herrera e Machado afirmam:

O “mínimo existencial” é um conjunto de direitos básicos que integram o núcleo da dignidade da pessoa humana, formados pela seleção dos direitos sociais, econômicos e culturais, e, por terem efetividade imediata, deveriam ser sempre garantidos pelo poder público, independentemente de recursos orçamentários (obstáculo financeiro relativizado.[5]

Uma vida sem dignidade não pode ser considerada vida válida, uma vez que a dignidade faz parte da condição humana. É um valor intrínseco a própria condição do ser, um valor que transcende a voluntas legis ou voluntas legislatoris, pertencendo a todos os humanos como parte da essência e, sendo assim, nenhum abuso ou violência será capaz de retirá-la, enquanto o Estado desempenhar seu papel de bastião, protegendo e garantindo tal dignidade. Além disso, faz-se mister elucidar, que apenas com uma vida digna o ser humano conseguirá alcançar estágios de felicidade. Por isso, o mínimo existencial deve conter todos aqueles direitos que possam propiciar ao homem dignidade. Desse modo, analisar-se-á a doutrina de alguns filósofos sobre o tema.

No entanto, com o crescente reflexo de decisões dessa natureza no orçamento público, o Judiciário passou a ser mais ponderado quantos aos efeitos consequencialistas de suas decisões, tornando-se mais criterioso quanto aos impactos orçamentários. Desse modo, a intervenção judicial tornou-se aceitável, desde que alguns critérios fossem observados. E o maior desses critérios é o equilíbrio fiscal diante da limitação dos recursos, o que gerou estudo aprofundado em torno da “reserva do possível”[6]. Nesse sentido, o doutor em Direito Tributário, Harrison Leite, expõe que a teoria pode ser analisada sob duas óticas: a Reserva do Possível Jurídica e a Reserva do Possível Fática. Segundo o doutor,

A reserva do possível jurídica tem tido pouca aplicação no âmbito judicial. É que não se dá muita atenção para a força normativa do orçamento, de modo que afirmar-se ser a lei orçamentária óbice para a atuação judicial soa vazio, tendo em vista a concepção formal do orçamento, redutora de sua materialidade. Forte é a doutrina no sentido de que alegações orçamentárias devem sucumbir-se diante da decisão judicial: “Nesse caso, deverá a Administração prover-se de créditos orçamentários sem observar as regras acima indicadas (normas constitucionais sobre orçamentação), cuja eficácia é afastada. Já a reserva do possível fática não se pode negar. Comprovada a ausência de recursos, eventual proteção judicial cairia no vazio. O problema não é mais jurídico, mas fático. É inescusável afirmar que não basta o Poder Público alegar a ausência de recursos para se furtar da implementação de direitos fundamentais, mas deve comprovar o quanto mencionado, e diferentemente do que pensam alguns, a lei orçamentária juntamente com os balancetes mensais do Executivo servem como critério objetivo a demonstrar a incapacidade financeira do ente público.[7]

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No ponto, cumpre trazer decisão do STJ a respeito, no julgamento do REsp n° 1.185.474-SC, Rel. Min. Humberto Martins. Dessa decisão percebe-se que a reserva do possível pode ser oponível à efetivação dos direitos fundamentais, desde que seja concreta, e não abstrata. Além disso, a reserva do possível não pode ser oponível à realização do mínimo existencial. [8]

Com esse posicionamento, o STJ demonstrou que os direitos sociais podem ser protegidos judicialmente e que argumentos contrários a essa intervenção, como a ausência de critérios para a atuação judicial, a violação à separação dos poderes ou ao princípio da maioria devem ser revisitados e não resistem aos comandos constitucionais de proteção desses direitos.

Levando o tema ao STF, este se posicionou em sentido favorável ao fornecimento de prestações positivas em relação aos direitos sociais, como se observa, por exemplo, no julgamento da STA 175, Relator Min. Gilmar Mendes, julgado em 18/09/2009. Contudo, quando se está diante da impossibilidade fática de cumprimento de direitos, muito embora a sua proteção constitucional, o Judiciário não poderá ordenar a sua realização, pois se trata de medida ilógica determinar o impossível, desde que a impossibilidade seja provada. O controle dos gastos não pode se desvincular da certeza de que os direitos fundamentais, por mais nobres que sejam, não serão satisfeitos em sua plenitude e no grau mais elevado, pois inexistem recursos para este fim.

Destarte, a partir da análise de decisões dos tribunais superiores acerca do tema, percebe-se que a reserva do possível pode ser oponível à efetivação dos direitos fundamentais, desde que seja concreta, e não abstrata. Entretanto, a reserva do possível não pode ser oponível à realização do mínimo existencial. Corroborando essa ideia, Herrera e Machado afirmam que:

O judiciário deve determinar o fornecimento do “mínimo existencial” independentemente de qualquer fundamento, não só em razão das forças das normas constitucionais sob o valor axiológico do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, como também no fato de zelar por exegese vedativa de retrocesso do dever estatal de cumprimento ao núcleo existencial.[9]


[1] STRECK, Lênio Luiz apud HERRERA, Luiz Henrique Martim; MACHADO, Edinilson Donisete. O mínimo existencial e a reserva do possível: ponderação hermenêutica reveladora de um substancialismo mitigado. Fortaleza, 2010.

[2] HERRERA, Luiz Henrique Martim; MACHADO, Edinilson Donisete. O mínimo existencial e a reserva do possível: ponderação hermenêutica reveladora de um substancialismo mitigado. Fortaleza, 2010.

[3] FILHO, Salomão Ismail. Mínimo existencial: um conceito dinâmico em prol da dignidade humana. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2016-dez-05/mp-debate-minimo-existencial-conceito-dinamico-prol-dignidade-humana Acesso em: 09 de abril de 2020.

[4] HÄBERLE, Peter apud FILHO, Salomão Ismail. Mínimo existencial: um conceito dinâmico em prol da dignidade humana. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2016-dez-05/mp-debate-minimo-existencial-conceito-dinamico-prol-dignidade-humana Acesso em: 09 de abril de 2020.

[5] HERRERA, Luiz Henrique Martim; MACHADO Edinilson Donisete, Opus Citem

[6] LEITE, Harrison. Manual de Direito Financeiro. – 8 ed. – Salvador: JusPODIVM, 2019. Pp 58

[7] Ibidem. Pp 73

[8] Ibidem. Pp 60

[9] HERRERA, Luiz Henrique Martim; MACHADO Edinilson Donisete, Opus Citem

Sobre o autor
Patrick Henriques Gonçalves

Graduado em História pela Universidade Federal Fluminense. Graduado em Direito pela Universidade Cândido Mendes. Mestre em Ciências Políticas pela Universidade Federal Fluminense.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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Trabalho de conclusão da disciplina Filosofia do Direito.

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