A lógica do razoável e o Judiciário contemporâneo

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09/09/2020 às 06:51
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A lógica do razoável, paulatinamente, vem predominando no Judiciário contemporâneo, notadamente no brasileiro, aproximando-nos do ideal de Justiça e a concretização e respeito à dignidade humana.

Analisar a lógica defendida pelo filósofo Luís Pedro Alejandro Recaséns Siches e sua utilização no Judiciário contemporâneo nos leva a entender o atual contexto histórico e suas principais consequências práticas. Cumpre destacar a sua inicial insatisfação com a lógica clássica que avançou na Europa, particularmente, após a segunda grande guerra mundial, quando Siches desenvolve nova lógica, que englobou a razoabilidade em sua aplicação.

Sua busca era pela integração do valor histórico à existência humana como pressuposto de uma Teoria dos Valores[1], que atuou em frontal oposição ao que proclamava o positivismo jurídico[2], no qual foi formado, e que predominava ao seu tempo. Siches recusou o entendimento e a postura tomada pelo dedutivismo, segundo a qual os casos concretos problemáticos devem ser julgados de acordo com o suposto grau de adequação às normas substantivas preestabelecidas. Afinal, a lógica tradicional restava ultrapassada.

Em resumo, a lógica do razoável representa uma reação à lógica jurídica meramente formal[3], desassociada dos valores e bem restrita à matemática com o uso de premissa maior, premissa menor e conclusão. Assim, em sentido diametralmente oposto à tal tradição, a proposta de Siches busca justamente moldar a aplicação do Direito conforme a particular realidade em que o caso concreto está inserido, com o fito principal de concretizar e realizar o valor "justiça".

A fim de facilitar o entendimento da teoria da lógica do razoável, analisaremos, desde as origens do filósofo, seu contexto histórico em que se inseriu e, finalmente, suas especificidades.

Luis Recaséns Siches era filho de espanhóis, tendo nascido na Guatemala em 1903. Dois anos mais tarde, retornou à Espanha com sua família, onde permaneceu por duas décadas. Foi lá onde estudou Filosofia e Direito, na Universidade de Barcelona. Já em 1925 realizou seu doutorado em Direito pela Universidade de Madri, quando decidiu cursar disciplinas de Filosofia na Universidade de Roma, onde travou o primeiro contato com uma de suas três maiores influências para o desenvolvimento de sua teoria, Giorgio Del Vecchio. E, nos anos seguintes estudou na Alemanha e Áustria.

Nesses países teve contato próximo com Hans Kelsen, que lecionava, à época, na Universidade de Viena. Siches discordava frontalmente de seu mestre, o que o motivou a aprofundar seus estudos com base em outra corrente, que começa ganhar espaço na Europa de meados do século XX, pautada na razão vital, liderada por José Ortega y Gasset[4]. Assim, retornou à Espanha em meados da década de 1930, onde ficou até ser exilado em face de sua discordância com a Guerra Civil local.

Mudou-se para França e, posteriormente, regressou ao México. Ao final da década de 1940, foi para os EUA onde se engajou ainda mais na Filosofia do Direito e nas áreas de Sociologia e Psicologia Jurídicas. E, foi lá que se envolveu com a ela oração da Declaração Universal dos Direitos Humanos, tornando-se perito em Filosofia do Direito. Em 1955 naturalizou-se mexicano e, já como professor da Universidade Nacional Autônoma do México, veio a publicar sua obra intitulada "Tratado Geral da Filosofia do Direito", na qual elaborou a lógica do razoável. Permaneceu engajado na Academia, residindo no México até o fim de sua vida em 1977.

Para a melhor compreensão sobre a lógica do razoável, precisamos entendê-la como crítica ao modelo subsuntivo cujos expoentes de tal modelo foram Carlos Alchourrón e Eugenio Bulygin. Já na década de 1970, propuseram que o problema da decidibilidade, no direito, deveria ser solucionado sempre por escolhas anteriores, imparciais e, que as propriedades relevantes já seriam identificadas e universalizáveis desde logo.

Como a grande maioria de todas as teorias, essa mereceu pesadas críticas, que podemos sintetizar basicamente em três grandes grupos, a saber: vagueza dos termos, incoerência e complexidade. Por vagueza dos termos, entende-se por uma zona de penumbra, em face da indeterminação da linguagem natural.

E, relembrando a obra de Hobbes, particularmente do seu De Cive, temos posta a questão de que a lei deve ser escrita na justa medida; nem muito curta (porque teria uma carga semântica muito grande), nem muito longa (porque poderia gerar ambiguidades), a fim de propiciar a melhor interpretação. 

Apesar de todas essas regras de prudência, ainda nos deparamos com a dúvida. É o caso, por exemplo, do termo boa-fé... Afinal, em que consiste a famosa boa-fé? Quais são os critérios para aferição de boa-fé? Outra expressão seria a dignidade da pessoa humana. Em que consiste? Em quais casos pode ser identificada?

 Incoerência corresponde a uma crítica que entende que a lei pode ser justificada por um parâmetro, mas não justificada por outro. Afinal, o objetivo e o fundamento desse modelo, qual seja, identificar propriedades relevantes que que devem ser universalizadas a fim de abranger todos os casos futuros que tenham as propriedades determinadas na lei. Desta forma, busca-se generalizações, universalizações.

Entretanto, e, ainda, à guisa de incoerência, é possível observar que tais generalizações podem ser sub inclusivas ou sobre inclusivas, ou seja, o legislador pode incluir propriedades a mais para as quais ele não estaria disposto a dar a mesma solução ou, ainda, o legislador pode excluir propriedades para as quais ele estaria disposto a dar uma solução normativa proposta.

O clássico exemplo que ilustra bem essa questão é o caso já aludido da placa que diz: “É proibida a entrada de cães”. A partir dessa regra, pergunta-se: é permitida a entrada de ursos? (subinclusiva). Ou: é proibida a entrada de cães-guias? (sobreinclusiva).

Notem que, nesse caso, se o urso não puder entrar, ou se o cão entrar, haverá um problema de objetividade e as generalizações começam a perder força; inicia-se um esfacelamento do modelo. Surge a complexidade: tal modelo deve levar em consideração a complexidade da inserção de mais de uma regra; o modelo subsuntivo deve levar em conta todo o ordenamento.

Isso posto, verifica-se que as normas jurídicas apresentam soluções para os casos concretos claros; entretanto, nos casos dos problemas apresentados acima (vagueza terminológica, incoerência e complexidade), qual caminho o positivismo jurídico deve seguir? A resposta é a discricionariedade, ou seja, os órgãos designados para emitir normas individuais para os casos concretos terão o poder para escolher o que é relevante e qual a decisão adequada, o que nos parece bastante problemático. Todavia, o vigia da estação de trens lhe impediu o acesso. E o campesino protestou alegando que o dispositivo proibia apenas o passeio com cachorros, não se aplicando a outros animais. O caso foi levado ao tribunal. E a única solução justa seria a aplicação — intuitiva — da lógica do razoável.

A discricionariedade que admite o positivismo jurídico como possibilidade da resolução de problemas apresenta a implicação de uma escolha subjetiva daquele que tem o poder de decidir, ou seja, como afirma o famoso positivista inglês H. L. A. Hart, no momento em que surge a indeterminação, brota novamente o problema da justiça, com uma carga subjetiva, que cria uma abertura ao ceticismo.

É nesse contexto que Hart legitima a decisão da autoridade sem questionar se é justa, mas sim, compreendendo se é válida e aceita no sistema, em decorrência de regras de competência e adequação entre as normas. Por exemplo: caso uma decisão falível (decide contra a determinação da lei) seja definitiva, não há nada a fazer, uma vez que foi a autoridade quem decidiu desse modo.

O subjetivismo abre a possibilidade de críticas ainda maiores, tais como a da Critical Legal Studies, no sentido de que não há diferença, nos casos discricionários, entre o legislador e o juiz, haja vista que o magistrado legisla antes de ditar a norma individual.

Em suma, na obra de Siches, o dedutivismo é refutado já que ele apenas possui uma adequação, segundo um esquema de subsunção, entre aquilo que é praticado pelo homem e aquilo que a norma impõe como um resultado para aquela prática, sem considerar, de qualquer forma, a razoabilidade incutida nessa adequação simplista e minimalista da própria vida social do homem.

Siches vivenciou basicamente três grandes eventos do século XX que muito contribuíram para a formação de seu pensamento filosófico, a saber: a Revolução Russa; a Primeira Guerra Mundial e, a Segunda Guerra Mundial.

Deparou-se com atrocidades sem parâmetros anteriores, onde a ideia de Direito até então posta, como sistema fechado de normas, limitando o julgador ao mero silogismo quando da aplicação da lei, mostrou-se francamente insuficiente.

Por outro viés, tornou-se, também inexorável a relevância de existir e observar o ordenamento jurídico, especialmente para reger e disciplinar as relações sociais e ainda garantir efetivo cumprimento da lei pelos julgadores.

Deparou-se com conflito entre duas realidades que deveriam ser observadas, mas que, eram aparentemente opostas. Por um lado, tem-se a integral obediência às leis e, por outro lado, a busca da concretização do valor de justiça.

Igualmente, Dirceu Galdino ressalta a contribuição de Recaséns-Siches na lógica do razoável, explicando em miúdos a importância da teoria: “A lógica do razoável quebra a lógica formal (tradicional), porque reconhece que a norma jurídica é um produto da vida humana, e, especificamente, é vida humana objetivada. Em sua estrutura, a norma, imposta pelo Estado, incorpora um tipo de ação humana, que se torna uma conduta para ação, um critério ou um plano.

Contudo, esses elementos não podem ser captados inteiramente pela lógica formal, insensível às suas características específicas. Para captar-lhes a essência, tornam-se imprescindíveis métodos adequados que se afeiçoem à natureza do objeto – a vida humana – e que também decorram da razão. Frente à vida humana há que ser adotada uma atitude finalística, valorativa. Daí não se captar a norma jurídica, em sua essencialidade, senão com métodos tomados da lógica, mas de uma lógica especial, a lógica do razoável.

A referida lógica tem por pressuposto experiências humanas, realidades e juízos de valor. Alicerçando-se nesses elementos, aprecia-se e revive-se uma norma jurídica, em cada caso; de maneira que a solução por ela apresentada para um caso determinado não terá a generalidade que a lógica tradicional apregoa, porém estará impregnada de particularidade valorativa, de especificidade.

Enfim, para Siches, o procedimento de interpretação do comando legal é instrumento de concretização da justiça. Corresponde à fixação do sentido da norma, delimitando seu espaço e suas possibilidades de aplicação.

Del Vecchio[5] foi essencialmente inspirado do Immanuel Kant e concebeu o movimento chamado de neokantismo e, trouxe para o Direito as concepções tais como a moral, justiça, pessoa humana, ampliando a lógica formal e positivista até então vigente e adotada.

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Hans Kelsen[6], a seu turno, pregava a eliminação do Direito de qualquer referência aos valores externos e até mesmo à ideia de justiça. E, seu viés era no sentido de haver um sistema de normas fechado que não sofria interferência por questões exteriores. A sua validade, portanto, depende apenas e tão somente daquilo que por Kelsen fora denominado de "norma fundamental" que é a base de legitimação de todo ordenamento jurídico.

Ao final, Ortega y Gasset desenvolveu sua filosofia partindo da premissa que o Direito é sistema dinâmico e, portanto, as condições físicas, sociais, mentais e psicológicas envolvidas em cada fato concreto submetido ao julgador devem mesmo ser consideradas. Denominou sua teoria de "razão vital". O filósofo Siches, diante de teorias tão diferentes e distantes, se dedicou a estudar tais fenômenos e compatibilizá-los, com o objetivo de suscitar, ao final de sua pesquisa, a maior efetividade do Direito, pautada na concretização do valor de Justiça. Para Siches, essa era a primordial proposta do Direito, há muito esquecida.

Sua intenção de unificar as demais teorias jurídicas fundava-se, em resumo, em sua crença. Tanto na Filosofia do Direito, quanto na Ciência Jurídica, como um todo, não haveria condições, por si só, de eleger apenas um método, ou algumas prioridades, dentro as várias hipóteses de interpretação de normas.

Desta forma, de acordo com seu raciocínio, a lógica formal não esgotaria a razão, na medida em que existem outros setores que pertencem à lógica jurídica, mas que fogem da racionalidade, como a lógica dos problemas humanos de conduta prática.

Para Siches, a lógica tradicional[7] se revelava incapaz de solucionar aprioristicamente os problemas jurídicos, conduzindo-os, muitas vezes, aos resultados absurdos, ou ainda, aos atos arbitrários.

Isso porque, entendia que o Direito positivo era produto de circunstâncias de determinada sociedade, em certa época com o objetivo de, naquela determinada sociedade, em determinada época, com o objetivo de, naquele momento específico, produzir determinados efeitos.

Portanto, seu surgimento, é uma resposta aos estímulos ocasionados pelos fatos, ao passo que sua validade depende do contexto e do objetivo para o qual tais normas foram produzidas.

A ideia central que jaz na lógica do razoável refere-se à noção de que a prática jurídica caminha paralelamente aos costumes e instituições sociais e culturais. Consequentemente, faz-se necessária a compreensão de sentidos e nexos dos problemas humanos, o que realizado através de valorações sobre o fato concreto que se põe diante do julgador Siches, ao elaborar sua tese, escancara o fato de que o julgador é antes de tudo, um ser humano, sendo impossível que se desvincule integralmente de suas opiniões pessoais, princípios e valores que carrega consigo. O que não significa, torná-lo parcial, comprometido ou dependente.

No mesmo sentido, Siches expõe que também o legislador é um indivíduo, dotado de seus limites e obstáculos, não podendo, portanto, fugir da elaboração das leis abstrata as e genéricas. Assim, por mais que tente, é impraticável que faça uma norma exata nas palavras e que limite integralmente a interpretação do julgador.

Deste modo, Siches entende que o legislador se propõe a realizar, da melhor forma que possível, quando da formulação das leis, a realização da justiça e dos valores desta decorrentes, naquela sociedade específica. Por essa razão, a decisão do julgador é método de complementação das normas, a partir de sua individualização ao caso concreto, de forma a ser fiel à vontade autêntica do legislador, qual seja, a efetivação da justiça. Segundo Siches, se dá por meio do uso da equidade.

A equidade[8] trazida pelo filósofo fora desenvolvida na teoria de Aristóteles, sendo precursora da justiça social e, consequentemente, da própria lógica do razoável. É através dela que se pode avaliar se os resultados práticos da aplicação do Direito, são, realmente, justos.

Admite-se que o legislador, quando formulou certa prescrição normativa[9], baseia-se em situações habituais, sem esmiuçar as particularidades que possam vir a ocorrer. Quando o julgador se deparar com um caso específico, deve utilizar o conceito da lógica do razoável, para determinar a incidência da norma jurídica aplicável, que, de fato, concretize a justiça.

Para tanto, devem ser obedecidas três diretrizes, a saber: 1. tratamento igualitário àquilo que esteja nas mesmas condições e desigual ao que tiver parâmetros diferentes; 2. todas as circunstâncias do caso concreto; 3. seja qual for a situação apresentada, a opção pela solução que melhor atender o princípio da justiça,

Lembremos que a equidade está inserida na lógica do razoável, na medida em que esta é a autorização para que sejam apreciados fatos e elementos não elegidos inicialmente pelo legislador, de modo a possibilitar a incidência de uma regra individual para a situação fática posta diante do julgador.

De fato, Siches coloca que a decisão do julgador é fruto de uma estimativa, porquanto não há separação da impressão pessoal do julgador sobre os fatos, das dimensões jurídicas a estes aplicadas. É nessa conjunção que exsurge a noção de que o julgador sempre se utiliza de sua intuição, a qual engloba os aspectos: fato e Direito.

Para Siches, o raciocínio do juiz segue, em regra, o modelo: primeiro encontra a solução pertinente e justa, para depois, buscar a norma que pode embasar a solução e qualificar adequadamente o os fatos pertinentes.

Portanto, Siches, admite que é a partir daquela intuição inicial que o julgador buscará o fundamento da sua decisão. No entanto, essa busca, não deverá ser pautada nas pseudo motivações lógico-dedutivas, utilizadas, até então, mas naquilo é razoável dentro do ordenamento jurídico, especialmente considerando todos os aspectos fáticos do caso concreto em questão.

A função do julgador, nesse sentido, permanece dentro do escopo do Direito formalmente válido. É justamente daí que decorre a premissa do filósofo mexicano de que a única regra universal de validade das normas seria a de que o julgador deve sempre interpretar o ordenamento considerando a solução mais justa ao caso concreto.

Tudo isso porque Siches considerou que, em uma sociedade, para que se chegar a qualquer conclusão sobre fato controverso, há um embate prévio no qual os indivíduos deliberam sobre a situação em questão, com base em critérios, ainda que tacitamente, pré-estabelecidos, ponderando sobre diversos aspectos, até se chegar à solução considerada razoável. Essa solução, embora possa não ser todas as vezes pautadas no racional, é pautada no viés humano da situação.

E, muito embora toda a valoração proposta possa até sugerir que o julgador esteja se afastando de sua função, isto é, da aplicação da lei e da regulamentação de fatos jurídicos a este submetidos, na realidade, o que ocorre é precisamente o contrário. Ao agir pautado pela lógica do razoável, o julgador objetiva atender, da melhor forma que possível, às exigências da justiça e dos jurisdicionados.

O que se vê, portanto, é que o ordenamento jurídico positivo, circunscrito apenas e tão somente ao que nele está formulado, não está apto a atender às necessidades da sociedade. E, por conseguinte, exige-se a utilização de princípios e critérios axiológicos, mesmo que não expressos no próprio ordenamento jurídico, a fim de que o objetivo final do texto legal, seja, realmente, alcançado.

Desta forma, os fatos idênticos poderão ter valorações diversas, a depender dos valores elegidos pelo julgador para julgar cada uma das situações fáticas concretas. Um exemplo por ele mesmo suscitado é a ocupação de um cômodo de uma residência, que, de acordo com os demais elementos envolvidos, pode caracterizar um mero convite, um contrato de arrendamento, ou aluguel, ou ainda, uma ocupação precária. O fato, em cada uma das hipóteses, será o mesmo; no entanto, o que o qualificará juridicamente serão os demais elementos circunstanciais.

Nessa mesma linha, porém, surge a principal contradição no pensamento de Siches. Se, por um lado, vemos o ressurgimento da busca pelo ideal de justiça, por outro lado, aumenta, a preocupação com a possibilidade do afastamento de parâmetros legais e da segurança jurídica, já que a lógica do razoável de parâmetros legais e da segurança jurídica, poderia propiciar o subjetivismo nas decisões judiciais  e, em última análise, acarretar a arbitrariedade do julgador.

O próprio autor rebate essa aparente incoerência, ao afirmar que, se estão em jogo os direitos fundamentais, tais como a liberdade e justiça social, a segurança jurídica, deve, sim, ser relativizada. Contudo, se o conflito versa sobre normas de hierarquia inferior, a segurança jurídica deve se sobrepor à correção da injustiça, em prol do bom funcionamento da ordem social. Novamente, percebe-se a necessidade da análise de caso a caso, para determinar o que prevalecerá.

No mais, Siches admite que os limites para a interpretação do julgador devem ser pautados no ordenamento. Em outras palavras, qualquer decisão que venha a ser proferida com base na lógica do razoável deve, sobretudo, ter em vista a finalidade do ordenamento no qual esteja inserida. Seus limites, portanto, estão em consonância com a segurança jurídica e afastam-na do arbítrio daquele que a proferir.

Diante de tais considerações, Siches, propõe, então para se determinar se uma norma é ou não adequada para o caso concreto, que o julgador realize, antes de proferir sua decisão, um teste mental. E, nesse sentido, ao se deparar com certa situação, o julgador, tendo encontrado a solução que lhe parece justa, deve proceder à busca da norma apropriada para fundamentar sua decisão. É aí que será necessário o teste mental em questão, para que se avalie a norma escolhido que conduzirá ao resultado pretendido.

Por essa razão, Siches formulou a análise de quatro situações hipotéticas e como o julgador deverá procederá diante de cada uma. A primeira situação se refere à aparência de que há uma norma vigente e válida, aplicável ao caso concreto, e que resulte na solução pretendida pelo julgador. Assim, nessa situação aparentemente ideal, o julgador realizará algum juízo de valor, seja ao eleger a norma, ao determinar e apreciar as provas, ao qualificar fatos e, etc...

A segunda situação, por sua vez, seria o caso de existir mais de uma norma da mesma hierarquia aplicável e de dúvida do julgador em qual escolher. Nesse caso, deve-se ensaiar mentalmente o resultado que o caso concreto teria ao escolher à solução que lhe parece mais justa.

Já o terceiro caso concreto corresponde à obtenção, pela norma aplicável, de solução contrária àquela inicialmente desejada pelo julgador. Em outras palavras, após determinar qual seria o resultado adequado ao caso concreto e encontrar a norma aparentemente aplicável o julgador, quando da realização do teste mental, conclui que a regra em questão resultado no contrário do quanto desejado.

Siches entende que surge uma lacuna no ordenamento, o que é, justamente a quarta e última de suas hipóteses. Em caso de lacuna, isto é, de inexistência de norma aplicável que conduza ao resultado almejado pelo julgador, e este deve procurar uma nova pauta axiológica, até então não usada. Buscam-se, então, critérios valorativos já consagrados, como princípios, equidade, usos e costumes ou até mesmo Direito natural.

Concluiu o filósofo mexicano que, qualquer que seja a hipótese, independentemente da problemática exposta ao julgador, este, inexoravelmente, recorrerá a alguma valoração pessoal, cuja fundamentação, para ser considerada válida pelo ordenamento, deverá ser razoável.

A lógica do razoável, portanto, está condicionada pela realidade concreta do mundo no qual está inserida. É assim que se orienta pelas circunstâncias sociais, econômicas, culturais e políticas, sem se afastar do ordenamento jurídico vigente. Ao intérprete, isto é, ao julgador, cabe trazer para o caso concreto a essência da norma, de forma que sua aplicação seja efetivamente justa e razoável.

É esse o ponto crucial de sua diferenciação da lógica formal, já que essa, na maioria das vezes, acaba por levar a conclusão que viola os elementos prestigiados pelo Direito, especialmente no que diz respeito à natureza humana. Diante de tais ponderações, Siches, propõe três exemplos práticos, para a aplicação da lógica do razoável.

Em um parque, onde há uma regra proibindo que se passeiem com cachorros. Certo de que está cumprindo a norma, um indivíduo leva um urso para o parque. Há infração? O que aparenta ser mais adequado: permitir a permanência do urso, muito embora não exista regra expressa proibindo sua circulação, ou interpretar a norma para que ela abarque também essa hipótese, que é uma afronta muito maior à segurança dos demais, do que apenas passear com um cachorro? E quanto ao cego, com seu cão-guia, essa proibição, seria aplicável?

Em uma estação de trem, há uma regra proibindo que lá se durma. No momento em que o fiscal faz sua ronda, há um passageiro que cochilou, a espera de seu trem, e um mendigo que se acomodou, com seus pertences, claramente para passar a noite. O que seria razoável: pedir para o passageiro, que está dormindo no momento da ronda, se retirar, ou retirar o mendigo, que demonstra, pelas circunstâncias, a intenção de passar anoite na estação, apesar de estar acordado quando da fiscalização?

Finalmente, certa família, encontrando-se à beira da falência, após o coma de seu patriarca, nomeia a secretária das empresas da família, como administradora de todos os bens. Após um levantamento inicial, a secretária percebe que vendendo apenas determinadas ações, que correspondem a 20% do total do patrimônio, a família seria salva da insolvência. A família autoriza a venda e tudo corre dentro do esperado.

Alguns meses depois, o patriarca, em coma durante todo esse tempo, veio a falecer. Quando da abertura de seu testamento, vê-se que aquelas ações, vendidas para salvar a família da falência, foram deixadas de herança justamente à secretária. Diante desse impasse, a secretária requer à família que dê a ela o equivalente em dinheiro, já que sua ajuda foi de grande valia. A família se recusa a assim proceder e alega que, infelizmente, não poderia fazer nada. Sendo submetida essa questão ao Judiciário, qual sentido mais razoável a ser considerado para a decisão do julgador?

O que se deve ter em mira ao analisar cada uma das situações hipotéticas acima, de acordo com Siches, é, em primeiro momento, a razoabilidade. Mas, não só isso. Para o filósofo, é inevitável que se tragam conceitos pessoais, quando da decisão, conceitos estes que envolvem valores como justiça, direito, moral, costumes, equidade e, etc.

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Sobre a autora
Gisele Leite

Gisele Leite, professora universitária há quatro décadas. Mestre e Doutora em Direito. Mestre em Filosofia. Pesquisadora-Chefe do Instituto Nacional de Pesquisas Jurídicas. Possui 29 obras jurídicas publicadas. Articulista e colunista dos sites e das revistas jurídicas como Jurid, Portal Investidura, Lex Magister, Revista Síntese, Revista Jures, JusBrasil e Jus.com.br, Editora Plenum e Ucho.Info.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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