Coronavírus e as lacunas do CDC: Um Código que ainda não se mostra imunizado o bastante.

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Diante da dificuldade dos comerciantes em cumprir algumas obrigações consumeristas após as instabilidades trazidas pelos coronavírus, busca-se auxilio no CDC, mas, ao notar a presença de diversas lacunas, resta-se apenas, a aplicação do Diálogo das Fontes

O que vêm assombrando a todos no cenário atual é, sem sombra de dúvidas, o surto da pandemia gerada pelo vírus Sars-Cov-2 ou mais conhecido como coronavírus, vírus este surgido primeiramente em Wuhan, na província de Hubei, na China, e que de lá se propagou pelo mundo. É sabido de todos que uma pandemia pode vir a gerar grandes instabilidades econômicas e políticas a nível mundial, uma vez que, medidas abruptas e inesperadas precisam ser aplicadas. Essas são informações tiradas do próprio site do Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (SEBRAE): “o coronavírus é uma ameaça real aos pequenos negócios de todo o Brasil”. A referida Entidade afirma também que o Brasil vive um “momento de instabilidade econômica causada pelos efeitos do novo coronavírus”. Diante deste cenário de tragédia, no campo do mercado de consumo, muitos contratos e obrigações estão ficando pendentes por impossibilidade de cumprimento e, ao se buscar auxílio no que deveria ser a ‘fonte esclarecedora dos conflitos’, ela ainda se mostra bem omissa quanto à algumas questões que surgem dia pós dia. Estamos falando do Código de Defesa do Consumidor (CDC).

Atualmente os produtos manufaturados estão liderando o ranking de importações vindas da China, de tal modo que não se torna difícil se deparar diariamente com situações como a de um vendedor de sapatos que são importados diretamente da China. Usando como exemplo o caso deste empreendedor, supondo que ao ter uma grande demanda do seu produto, ele não tenha chegado, pois, devido ao surto inesperado do coronavírus o seu fornecedor, a China, não lhe enviou.

No caso supracitado, evidentemente o fornecedor final se encontra impossibilitado de cumprir a obrigação de dar o produto, ainda que o queira de todas as formas. Situações como esta e muitas outras vem acontecendo diariamente após o atual surto. Cuida-se, portanto, analisar como o Código de Defesa do Consumidor se posiciona diante dessas desconjunturas.

Fazendo um estudo nos artigos do Código de Defesa do Consumidor, observa-se que situações como a tratada neste enredo não encontram respaldos de forma pormenorizada. Ao lidar com o tema de descumprimento das obrigações o principal artigo que irá explanar a respeito é o art. 35 do CDC. Vejamos:

Art. 35 Se o fornecedor de produtos ou serviços recusar cumprimento à oferta, apresentação ou publicidade, o consumidor poderá, alternativamente e à sua livre escolha:

I - exigir o cumprimento forçado da obrigação, nos termos da oferta, apresentação ou publicidade;

II - aceitar outro produto ou prestação de serviço equivalente;

III - rescindir o contrato, com direito à restituição de quantia eventualmente antecipada, monetariamente atualizada, e a perdas e danos.

 

Ocorre que, conforme é possível notar, o artigo 35 apenas prevê a situação em que o fornecedor de serviço de algum modo se recusa a cumprir o que foi ofertado. Claro está, portanto, que para os casos em que o fornecedor quiser, mas, no entanto, não estiver em condições de cumprir a obrigação, o mencionado artigo simplesmente não sugere soluções.

À vista do exposto, seguindo para o artigo 84 do Código de Defesa do Consumidor é possível notar uma previsão no que se diga respeito ao cumprimento da obrigação. Ocorre, porém, que conforme será exposto adiante, é de fácil constatação que o mesmo artigo se refere apenas às obrigações de fazer ou não fazer deixando novamente de explanar previsões para as obrigações de dar, que englobam os casos dos exemplos citados no início dessa discussão. Vejamos:

Art. 84. Na ação que tenha por objeto o cumprimento da obrigação de fazer ou não fazer, o juiz concederá a tutela específica da obrigação ou determinará providências que assegurem o resultado prático equivalente ao do adimplemento.

 

§ 1° A conversão da obrigação em perdas e danos somente será admissível se por elas optar o autor ou se impossível a tutela específica ou a obtenção do resultado prático correspondente.

 

§ 2° A indenização por perdas e danos se fará sem prejuízo da multa (art. 287, do Código de Processo Civil).

 

§ 3° Sendo relevante o fundamento da demanda e havendo justificado receio de ineficácia do provimento final, é lícito ao juiz conceder a tutela liminarmente ou após justificação prévia, citado o réu.

 

§ 4° O juiz poderá, na hipótese do § 3° ou na sentença, impor multa diária ao réu, independentemente de pedido do autor, se for suficiente ou compatível com a obrigação, fixando prazo razoável para o cumprimento do preceito.

 

§ 5° Para a tutela específica ou para a obtenção do resultado prático equivalente, poderá o juiz determinar as medidas necessárias, tais como busca e apreensão, remoção de coisas e pessoas, desfazimento de obra, impedimento de atividade nociva, além de requisição de força policial.

 

Seguindo a presente esteira de raciocínio, importa-se trazer ao lume alguns conceitos importantes a respeito do Direito das Obrigações. Ao dar relevo a falta de previsão para as situações que estejam presente a obrigação de dar é válido destacar que atualmente no mercado de consumo maior parte das obrigações realizadas são obrigações que se dizem genéricas, ou conforme as palavras de STOLZE (2019, p. 94) “quando o sujeito se obriga a dar coisa incerta”, “que contém elementos mínimos de individualização” essa se caracteriza como obrigações genéricas. Ainda neste seguimento de raciocínio, conforme o artigo 246 do CC no que se trata das obrigações de dar coisa incerta, o citado artigo diz: “Art. 246. Antes da escolha, não poderá o devedor alegar perda ou deterioração da coisa, ainda que por força maior ou caso fortuito”.

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Com relação às obrigações genéricas é importante lembrar do princípio o qual diz que o gênero nunca perece, sendo assim, se o devedor não pode alegar que o produto pereceu, do mesmo modo não será possível alegar impossibilidade do cumprimento da obrigação. Diante disto, supõe-se que o legislador imaginou que não seria muito útil citar as obrigações de dar no CDC e deixando a deriva algumas questões a elas relacionadas.

Se partirmos para tocante aos efeitos da obrigação, iremos perceber que não há previsão de extinção dela. Isto porque o Código de Defesa do Consumidor apenas prevê sua conversão em perdas e danos. Deste modo, conclui-se, portanto, que no caso de impossibilidade de cumprimento por parte do fornecedor (devedor), sendo esta não culposa, aplicar-se-á a regra da impossibilidade por caso fortuito ou força maior, prevista no Código Civil em seu artigo 393, a qual, o devedor não será obrigado à pagar pelas perdas e danos. Todavia, se caso fôssemos realizar questionamentos maiores, voltados por exemplo à questão da indenização, em prol de constatar qual interesse seria o critério para analisar o tipo da indenização, se seria ele pelo interesse positivo ou negativo, são indagações que o Código de Defesa do Consumidor também não responde.

Assim, percebe-se que ao se tratar das impossibilidades de cumprimento, o atual Código de Defesa do Consumidor ainda apresenta diversas lacunas a serem preenchidas. Diante disso, filiamo-nos ao entendimento de que a única saída atualmente viável para resolução das questões colocadas em relevo é buscar respaldos no Código Civil. Lamentavelmente o Código de Defesa do Consumidor não prevê sua complementação por fontes subsidiárias. Portanto, a complenetação se dará pela aplicação da Teoria do Diálogo das Fontes às relações de consumo as quais se encontrarem desamparadas.

Por fim, necessário trazer à baila as palavras de Patrícia Ferreira de Almeida Monteiro que “não custa lembrar que a melhor solução para o caso concreto deverá ser aquela na qual se considere o núcleo de proteção que reveste e caracteriza o bem jurídico em conflito, sempre com amparo nos mandamentos constitucionais.”

 

 

REFERÊNCIAS

 

BRASIL. Lei nº. 8.078, de 11 de setembro de 1990. Código de Defesa do Consumidor. Dispõe sobre a proteção do consumidor e dá outras providências.

 

GUIMARÃES, Paulo Jorge Scartezzini. Juiz de Direito no Estado de São Paulo, Responsabilidade civil e interesse contratual positivo e negativo (em caso de descumprimento contratual). Disponível em: <http://www.tjsp.jus.br/download/EPM/Publicacoes/ObrasJuridicas/rc5.pdf?d=636680468024086265>. Acesso em: 23 Mar 2020.

 

INTERNET.  Importação no Brasil: Principais produtos importados. Disponível em: <https://www.fazcomex.com.br/blog/principais-produtos-importados-brasil/>. Acesso em 22 Mar 2020.

 

MONTEIRO, Patrícia Ferreira de Almeida. A aplicação da Teoria do Diálogo das Fontes às relações de consumo, 2014.

 

SEBRAE. Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas. Guia-de-gestao-financeira-para-pequenos-negocios. Disponível em: <https://www.sebrae.com.br/sites/PortalSebrae/artigos/guia-de-gestao-financeira-para-pequenos-negocios,c080fad29efe0710VgnVCM1000004c00210aRCRD>. Acesso em: 22 Mar 2020.

 

STOLZE, Pablo. Novo Curso de Direito Civil 2, 2019.

Sobre os autores
Luiz Francisco de Oliveira

Mestre em Prestação Jurisdicional e Direitos Humanos pela Universidade Federal do Tocantins. Atualmente é Promotor de Justiça do Ministério Público do Estado do Tocantins. Promotor Eleitoral da 25ª Zona Eleitoral (TRE/TO). Professor Universitário da Universidade Estadual do Tocantins (UNITINS). Possui graduação em Direito pelo Centro Universitário de Sete Lagoas (1997). É pós graduado em Direito em Administração Pública. Pós graduado em Direito Processual Civil. Pós graduado em Direito de Família. Exerceu o cargo de Advogado da União (AGU) na Procuradoria da União em Minas Gerais. Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Direito Público. Ex-Membro Titular do Grupo Especial de Controle Externo da Atividade Policial e Estabelecimentos Prisionais do Estado do Tocantins.

Deborah Lucia Santos Lima

Graduanda em Direito na Escola Superior Dom Helder Câmara.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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