Violência contra a mulher: uma reflexão contemporânea segundo a sociologia jurídica

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O presente artigo tratará de perfazer um breve estudo acerca da violência contra a mulher, tomando-se definições e problemáticas trazidas pela sociologia jurídica.

Violência contra a mulher: uma reflexão contemporânea segundo a sociologia jurídica

A violência contra a mulher não é uma questão contemporânea, pelo contrário o que se percebe é que a visibilidade política e social desta problemática tem um caráter recente, dado que apenas nos últimos 50 anos é que tem se destacado a gravidade e seriedade das situações de violências sofridas pelas mulheres em suas relações de afeto.

No século XX, a partir da década de 60, as mobilizações feministas, enfocaram, principalmente nas denúncias de violências cometidas contra mulheres no âmbito doméstico (Bandeira & Melo, 2010; Costa, 2007; Machado, 2010). Cobrando responsabilidades do Estado e da sociedade em assegurar a todos o respeito à dignidade humana e a uma vida sem violência.

1. Compreendendo gênero e sua relação com a violência contra as mulheres

O conceito de gênero foi proposto por estudiosas feministas americanas (como Stoller e Gayle Rubin) na década de 70 como objeto de estudo dos feminismos. Isso para diferenciação do termo sexo e destacar a construção social das identidades de homens e mulheres.

Hoje, os estudos das relações de gênero são realizados em diferentes partes do mundo, a partir de uma diversidade de lentes teóricas, debates políticos e implicações éticas (Conceição, 2009; Narvaz & Koller, 2006; Silva, 2008).

É possível identificar, de acordo com Segato (2006), três principais posições dentro do pensamento feminista principalmente no  que tange às compreensões históricas do patriarcado e do colonialismo: uma que considera a dominação de gênero e do patriarcado como universal, sem maiores diferenciações históricas ou culturais e com certa superioridade moral das organizações sociais europeias e norte- americanas; uma segunda posição que defende a inexistência de relações de gênero no mundo pré-colonial; e uma terceira que demonstra a dimensão histórica das nomenclaturas de gênero, presentes mesmo em sociedades tribais, ainda que constatem que as práticas do patriarcado foram se aperfeiçoando e se intensificando com o colonialismo e os discursos igualitários e hierárquicos da modernidade.

No Brasil, uma das primeiras, e principais, pesquisas que denunciaram a gravidade das violências sofridas pelas mulheres revelou que 43% delas já haviam sofrido algum tipo de violência sexista, sendo em 70% dos casos perpetradas por parceiros ou ex-parceiros conjugais (Fundação Perseu Abramo, 2001). Conclusão alarmante da referida pesquisa é a estimativa de que a cada 15 segundos uma mulher é espancada no Brasil.

Em relação ao número de homicídios femininos, o país ocupa a 7º posição, em uma lista de 84 países. Entre 1980 e 2010 foram assassinadas mais de 92 mil mulheres, sendo que 47,5% apenas na última década. A pesquisa indica que 68,8% desses homicídios ocorreram nas residências das vítimas, e para as mulheres da faixa etária entre 20 e 49 anos, 65% deles foram cometidos por homens com os quais elas mantinham ou mantiveram um relacionamento amoroso. O relatório alerta ainda que altos níveis de feminicídio, com frequência, são acompanhados por uma grande tolerância quanto à violência contra as mulheres e, em muitos casos, são resultado dessa própria tolerância (Waiselfisz, 2012).

2. Violência: diferentes dimensões e perspectivas

A violência enquanto fenômeno social tem estado sob intenso enfoque nos últimas anos desta década, através dos diálogos comuns e em academias, sob as mais diversas disciplinas, que buscam, cada qual a seu propósito, reunir conceitos e reflexões acerca de sua reiterada ocorrência.

 Estudos encabeçados por Piva, Severo & Dariano (2007) retratam que há o que denominam de uma tendência universal e histórica de se considerar a violência como inerente à natureza humana, entendimento que, contudo, reduz o tema da violência a um panorama puramente defensivo para lidar-se com a questão.

Neste âmbito, o trato desse fenômeno complexo e multívoco (conceito designado sob formas, palavras e significados diversos e distintos) requer se conheça, para seu melhor estudo, que a violência seja analisada como experiência social, para em seguida, buscar-se entender as perspectivas de todos os que estejam a ela relacionados, noutras palavras, autor e vítima.

É que as percepções acerca dos atos violentos quase sempre opõem o indivíduo que os pratica aos limites prévios a sua própria existência, ou seja, pré-existem determinados limites de ação, que foram estabelecidos pela vivência social, cultural, histórica, ou a própria ética, enquanto sobressai à pessoa, estando acima dela.

A violência seria então, tomando-se quem a pratica, uma expressão de insubordinação às regras, de modo que o autor se enxerga como um todo poderoso ser, que objetifica sua vítima, tomando para si que seus desejos e ambições não existem, seu espírito é mero simulacro das vontades que o próprio autor entende lhe ser cabido.

Chauí (2003, p. 42) demonstra nessa temática, a oposição entre a violência e a ética, pelo violentador:

A violência se opõe à ética porque trata seres racionais e sensíveis, dotados de linguagem e de liberdade como se fossem coisas, isto é, irracionais, insensíveis, mudos, inertes ou passivos. Na medida em que a ética é inseparável da figura do sujeito racional, voluntário, livre e responsável, tratá-lo como se fosse desprovido de razão, vontade, liberdade e responsabilidade, é tratá- lo não como humano, e sim como coisa.

Sob melhor exegese, aprofunda-se mormente a psicanálise acerca da violência, enquanto subsidiada por uma noção de poder, e que se expressa sempre estando relacionada a uma combinação de motivos e impulsos pulsionais, que oporá dominador e dominado, ainda que apenas aquele se crie nesta condição, utilizando-se da violência para forçar com que a vítima a ele se sujeite.

Sobre o conceito de poder, que nos importa a este ponto, utilizamos a noção trazida por Arendt (1970), para quem, em conceito, é naturalmente uma habilidade humana para lidar com certas situações, possibilitando a ação com base numa legitimidade que não é inerente ao indivíduo, aos seus atributos pessoais, mas à condição em que se encontra, sendo exercida sob um caráter de legitimidade, mas não de justificação. A violência por sua vez, não é utilizada por violentadores como uma expressão imediata de poder, ou seja, não é legitimar o poder, mas utilizá-lo como mera justificativa para a violência.

Neste último sentido, também segundo as lições de Arendt (1970), “o domínio pela violência surge mesmo de onde o poder está sendo perdido”, e que sua implicância possui um custo muito alto, seja para a vítima, obviamente à conotação de seu sofrimento, seja, inclusive, para o violentador, em termos de seu poder.

3. Violência de gênero contra a mulher no Brasil

Mediante a crescente nos debates acerca da violência contra a mulher, e a necessidade de definir e estabelecer tipificações jurídicas, visando dirimir a banalização que essa violência carrega em si, que normatizações foram sendo realizadas.

Destacam-se sobre isto, duas convenções internacionais que possuem o Brasil como signatário: Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher CEDAW (ONU, 1979), bem como a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, conhecida como Convenção de Belém do Pará (OEA, 1994).

A CEDAW fora produto de décadas de empenho internacional, buscando a proteção da mulher, assim como promover os direitos inerentes as mulheres por todo o mundo. Resultou-se, então, no primeiro tratado internacional sobre o tema, fundamentando-se nas Convenções internacionais de Direitos Humanos, destacando a igualdade de direitos entre homem e mulher.

A mesma deve ser assumida como parâmetro mínimo para ações realizadas pelos estados objetivando relevar a igualdade entre homens mulheres, e, na represália a violações, políticas, econômicas, sociais, culturais e civis no que tange a mulher.

Já a Convenção de Belém do Pará, versa de forma mais especifica sobre a violência ocorrida contra a mulher, trazendo, até mesmo, um conceito sobre o que a vem a ser tal fato: “entender-se-á por violência contra a mulher qualquer ato ou conduta baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto na esfera pública como na esfera privada” (art.1°, OEA, 1994).

Sobremaneira, tal Convenção se destaca por visar criar reais condições para a quebra do ciclo de violência ocorrido contra as mulheres em âmbito mundial. Prevê mecanismos visando identificar situações ocorridas, e, considera como ocorrida na esfera pública e privada.

Todavia, apesar destas convenções, assim como a própria Constituição estabelecer a igualdade entre homens e mulheres (art.5°), mediante a complexidade apresentada pela questão, as mesmas demonstraram-se ineficientes para proteção dos casos de violência contra a mulher. Movimentos, visando que o Estado respondesse com ações e proteção mais eficiente, se estabeleceram por todo o país.

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A Lei Maria da Penha, Lei 11.340, promulgada em 2006, foi um dos principais decorrências ocasionadas mediante tal mobilização. A mesma tornou o principal mecanismo a fim de coibir e punir a violência doméstica e familiar contra a mulher no Brasil.

Por meio de sua estruturação, a lei, além de alterar o Código Penal e possibilitar que os agressores sejam punidos criminalmente, podendo ser presos em flagrante ou que tenham a prisão preventiva decretada, visa proteger os direitos inerentes a ela e prevenir que situações continuem ocorrendo.

Dessa forma, busca não atuar apenas na esfera jurídica, mas formulando políticas públicas a fim de conscientizar a população sobre questões de gêneros e estabelecimento de igualdade. Envolve, assim, também, questões de segurança pública, saúde, assistência social e educação, objetivando não só mudanças jurídicas, mas culturais.

4. Ampliando olhares sobre violência a partir do prisma dos direitos humanos

Os direitos humanos é uma construção política e cultural que, necessariamente, envolve reivindicações pela expansão e conquista de direitos a todos e todas (Maluschke et al., 2004; Segato, 2006).

Uma perspectiva histórico-política sobre os direitos humanos, assim, destaca o caráter histórico das lutas e conquistas compreendendo a lei como produto de reivindicações e negociações da comunidade e/ou do Estado. Nesse sentido, o caráter ético dos direitos humanos passa a ser o alicerce de questões que exigem legitimação social, ratificação jurídica e releituras sobre emancipação e autonomia (Maluschke et al., 2004; Segato, 2006).

A questão das mulheres em nossa sociedade ilustra bem esse movimento de inquietação, expansão e ressignificação de direitos. Por muito tempo, as mulheres não foram incorporadas aos discursos jurídicos e sociais por não terem acesso aos direitos como sujeitos e cidadãs. A história das reivindicações feministas evidencia as diversas lutas necessárias para a garantia de direitos civis, políticos e sociais (Bandeira & Melo, 2010; Costa, 2007). Como resultado, é possível hoje afirmarmos que as mulheres são sujeitos de direitos e que a violação deles se configura como violência.

5. Referências bibliográficas

ARENDT, H. Sobre a violência. Tradução de Maria Claudia Drummond. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009.

BANDEIRA, Lourdes; MELO, HP de. Tempos e memórias: movimento feminista no Brasil. Brasília: Secretaria de Políticas para Mulheres, 2010.

CHAUÍ, Marilena Ética, política e violência. In CAMACHO, T., (Ed.). Ensaios sobre violência. p. 39-59. Vitória: Edufes, 2003.

CONCEIÇÃO, A. C. L. Teorias feministas: da ‘questão da mulher’ ao enfoque de gênero. Revista brasileira de Sociologia da Emoção - RBSE, v. 8, n. 24, p. 738-757, 2009. Disponível em: http://www.cchla.ufpb.br/rbse/Conceicao_art.pdf. Acesso em: 18 jun. 2018.

COSTA, Ana Alice Alcântara. O movimento feminista no Brasil: dinâmica de uma intervenção política. Revista Gênero, Rio de Janeiro, v. 5, n. 2, p. 51-82, 2005. Disponível em: https://doi.org/10.22409/rg.v5i2.380. Acesso em: 12 jun. 2018.

GUIMARÃES, Maisa Campos; PEDROZA, Regina Lucia Sucupira. Violência contra a mulher: problematizando definições teóricas, filosóficas e jurídicas. Psicologia e Sociologia. Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 256-266, ago. 2015. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-71822015000200256&lng=en&nrm=iso. Acesso em: 22 jun. 2018.

MALUSCHKE, Günther, BUCHER-MALUSCHKE, Júlia. S. N. F.; HERMANNS, Klaus. Direitos humanos e violência: desafios da ciência e da prática. Fortaleza, Ceará : UNIFOR : Fundação Konrad Adenauer, 2004.

NARVAZ, Martha Giudice; KOLLER, Silvia Helena. A marginalização dos estudos feministas e de gênero na psicologia acadêmica contemporânea. Psico, v. 38, n. 3, p. 216-223, 2007. Disponível em: <http://revistaseletronicas.pucrs.br/revistapsico/ojs/index.php/revistapsico/article/view/2882>. Acesso em: 18 jun. 2018.

PIVA, Ângela; SEVERO, Ariane; DARIANO, Jussara. (2007). Poder e violência: formas de subjetivação e desubjetivação. Contemporânea – Psicanálise e Transdisciplinaridade, n. 2, 63-77.

SEGATO, Rita Laura. Antropologia e direitos humanos: alteridade e ética no movimento de expansão dos direitos universais. Mana, v. 12, n. 1, p. 207-236, 2006.

SILVA, Andréia Cristina Lopes Frazão da. Reflexões sobre o paradigma pós-moderno e os estudos históricos de gênero. Brathair-Revista de Estudos Celtas e Germânicos, v. 8, n. 2, p. 75-84, 2008.

WAISELFISZ, Julio Jacobo. Mapa da violência 2012: Atualização: Homicídios de mulheres no Brasil. 2012.

Sobre os autores
Sam H. S. Quadros

Advogado. Bacharel em Direito pela Universidade Estadual de Montes Claros. Especializando em Direito Previdenciário pela Escola Brasileira de Direito — EBRADI. Atuação com ênfase em causas previdenciárias, de cunho administrativo, junto ao INSS, ou contencioso, na Justiça. Atuação também em causas trabalhistas, bancárias e cíveis, notadamente de fundo contratual.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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