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As definições de Justiça em "A República"

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Em A República, Platão apresenta no primeiro livro algumas definições de justiça, enunciadas por quatro interlocutores de Sócrates. O objetivo é fazê-los refletir sobre suas próprias definições e chegarem à resposta correta, aquela esperada por Sócrates.

Preliminarmente, é importante ressaltar que o método de ensino socrático baseava-se na ironia fazer perguntas ao seu interlocutor que lhe fizessem perceber defeitos nas próprias convicções – e na maiêuticaconduzir imperceptivelmente esse interlocutor à resposta desejada através de uma série de perguntas. Sob essa premissa, Platão, que somente escrevia na forma de diálogos, reproduziu a subida de Sócrates e sua comitiva para Atenas a partir do Pireu, onde estiveram para a celebração da deusa trácia Bêndis.

O fato de estarem a subir do Pireu para Atenas representa algo. O verdadeiro conhecimento somente seria possível por meio da dialética ascendente, pela qual se parte do mundo sensível em direção ao plano das ideias, onde poderia ser contemplada a verdadeira ideia: o bem.

No caminho, a comitiva foi interceptada e levada à casa de Polemarco, onde Sócrates encontrou-se com o pai dele, Céfalo, e estes dois conversaram sobre a velhice, a morte e a preparação para a vida além dela. Para Céfalo, a velhice seria a libertação das paixões e o caráter das pessoas ao longo da vida, o determinante para torná-la menos penosa. Sócrates acrescentou-lhe à reflexão o fato de que a riqueza contribuiria para a redução do fardo e Céfalo concordou. Daí veio a posição do pai de Polemarco:

[...] tenho em grande apreço a posse das riquezas, não para todo o homem, mas para aquele que é comedido e prudente. Não ludibriar ninguém nem mentir, mesmo involuntariamente, nem ficar a dever, sejam sacrifícios aos deuses, seja dinheiro a um homem, e depois partir para o além sem temer nada [...]. 1

Contudo, Sócrates não considerou pleno o conceito de justiça de Céfalo – ser honesto e restituir as coisas tomadas de alguém – e dirigiu-se então a Polemarco. Seguindo parcialmente a seu pai, no que tange a restituir coisas, e ao poeta lírico Simônides, em relação à conveniência das restituições, o conceito de justiça do segundo interlocutor era “que aos amigos se deve fazer bem” e “o que um inimigo deve a outro é [...] o mal” 2.

Sócrates exemplificou então uma série de profissões – médico, navegante, citarista, agricultor – para fazer Polemarco perceber a impossibilidade de generalização de seu conceito, pois não poderia jamais ser considerado justo aquele que faz intencionalmente mal a alguém.

Portanto, se alguém disser que a justiça consiste em restituir a cada um aquilo que lhe é devido, e com isso quiser significar que o homem justo deve fazer mal aos inimigos, e bem aos amigos – quem assim falar não é sábio, porquanto não disse a verdade. 3

Em seguida, Trasímaco tomou parte na conversa com Sócrates, causando receio a ele e a Polemarco. A postura de Trasímaco não era serena como a dos dois primeiros interlocutores, pois tratou Sócrates como a um sofista, menosprezou a ironia 4 socrática e exigiu-lhe uma definição positiva de justiça: “[...] é mais fácil perguntar que dar réplica. Mas responde tu mesmo e diz o que entendes por justiça” 5. Sócrates conseguiu se recompor e sutilmente enredar Trasímaco em seu método, sendo que ocasionalmente o interlocutor percebia a estratégia e tentava usar isso como argumento para rebaixá-lo diante da plateia 6 e conquistar a simpatia dela.

Para Trasímaco, a justiça era algo de conveniente, a conveniência do mais forte; para os atenienses, o mais forte materializava-se no Estado.

[...] há um só modelo de justiça em todos os Estados – o que convém aos poderes constituídos. Ora estes é que detêm a força. De onde resulta, para quem pensar correctamente, que a justiça é a mesma em toda a parte: conveniência do mais forte. 7

Por meio de um raciocínio em relação a obedecer ou não as leis dos governantes, sabendo que são falíveis e podem errar ao decidirem quanto às suas próprias conveniências, Sócrates tentou mostrar a Trasímaco que seu conceito era falseável, mas este permaneceu firme:

[...] o governante, na medida em que está no governo, não se engana; se não se engana, promulga a lei que é melhor para ele, e é essa que deve ser cumprida pelos súbditos. 8

Resgatando os exemplos das profissões previamente usados, a muito custo Sócrates fez perceber a todos – menos a Trasímaco – que a noção de conveniência do mais forte estava enganada:

[...] nenhum chefe, em qualquer lugar de comando, na medida em que é chefe, examina ou prescreve o que é vantajoso a ele mesmo, mas o que o é para o seu subordinado, para o qual exerce a sua profissão [...]. 9

O interlocutor seguiu contra-argumentando, finalmente começando a expor o que estava por trás do seu conceito: a tirania, a injustiça-mor do governante, era respeitada por todos os que sabiam do seu feito, exatamente porque o tirano fazia pouco da justiça e poderia usar sua fama para se impor pelo medo às pessoas que temessem a injustiça 10.

Quanto a isso, Sócrates respondeu que as pessoas de bem não ascendem voluntariamente ao poder, que é um fardo ao ser exercido com justiça, mas o faziam sobre o próprio egoísmo somente porque “o maior dos castigos é ser governado por quem é pior que nós, se não quisermos governar nós mesmos”, pois seria mais confortável “receber benefícios de outrem a ter o trabalho de ajudar ele os outros” 11.

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Dito isso, Trasímaco expôs outras facetas de sua visão pragmática: a perfeita injustiça seria mais útil que a perfeita justiça; a injustiça seria proveitosa e a justiça, não; e a injustiça corresponderia à prudência e a justiça, a uma sublime ingenuidade 12.

Após nova discussão, Sócrates e Trasímaco conseguiram concordar que “a justiça é virtude e sabedoria, e a injustiça maldade e ignorância” 13, ao que Sócrates continuou a interrogá-lo com vistas a fazer o seu próprio conceito ser encontrado pelo interlocutor.

Por fim, Sócrates obteve a relutante aprovação de Trasímaco ao sustentar que a alma tem uma função exclusiva, a de “superintender, governar, deliberar e todos os actos da mesma espécie” 14, de modo que a alma boa deveria desempenhar bem essa função, sendo, portanto, a justiça uma virtude da alma. A alma justa, do homem justo, viveria bem e feliz, de maneira que “jamais a injustiça será mais vantajosa do que a justiça” 15.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

PLATÃO. A república. Tradução: Maria Helena da Rocha Pereira. 14. ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2014. p. 1-51.

ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE NORMAS TÉCNICAS. ABNT NBR 6023: Informação e documentação ‐ Referências ‐ Elaboração. 2. ed. Rio de Janeiro: ABNT, 2018.

ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE NORMAS TÉCNICAS. ABNT NBR 10520: Informação e documentação ‐ Citações em documentos ‐ Apresentação. Rio de Janeiro: ABNT, 2002.

ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE NORMAS TÉCNICAS. ABNT NBR 14724: Informação e documentação ‐ Trabalhos acadêmicos ‐ Apresentação. 3. ed. Rio de Janeiro: ABNT, 2011.


Notas

1 Ibid., p. 8-9

2 Ibid., p. 10-11

3 Ibid., p. 18

4 Do grego εἰρωνεία, cuja tradução dada no texto é “ignorância simulada”

5 Ibid., p. 20

6 Ibid., p. 23

7 Ibid., p. 24

8 Ibid., p. 28

9 Ibid., p. 31

10 Ibid., p. 33

11 Ibid., p. 38

12 Ibid., p. 39-40

13 Ibid., p. 44

14 Ibid., p. 49

15 Ibid., p. 50

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Sobre o autor
Artur Fernando Sampaio Andrade

Arquiteto (UFPI, 2002), Mestre em Arquitetura e Urbanismo (UnB, 2005) e estudante de Direito (UnB, 2018-).

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Mais informações

Artigo apresentado à Universidade de Brasília como requisito de avaliação para a disciplina Ética e Direito, do curso de Bacharelado em Direito, ministrada pelo Prof. MSc. Felipe Inácio Zanchet Magalhães.

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