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Levar a sério o direito à liberdade é incompatível com a "cura gay"

26/10/2017 às 17:10
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Para além da questão técnica, é possível e necessário concluir que a decisão é discriminatória, anticientífica, incompatível com o direito à liberdade e, portanto, inconstitucional. Violar a vida privada para propor tratamento falso e estelionatário é ilegal, fraudulento e deve ser repudiado por todos que levam o direito a sério.

O caso da cura gay (ou “reorientação sexual”) deve ser analisado à luz da liberdade prevista na Constituição Federal (CF/88) e na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF). De forma clássica, atribui-se a formulação jurídica do direito à liberdade à Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789): "A liberdade consiste em poder fazer tudo que não prejudica ao outro" (art. 4º). Trata-se da compreensão de que cada um pode, "prima facie", fazer ou deixar de fazer o que quiser. "Prima facie", no entanto, significa "caso nenhuma restrição ocorra". Não é o caso da liberdade científica (CF/88, art. 5º, IX) ou da liberdade profissional (CF/88, art. 5º, XIII).

A liberdade profissional informa que é livre o exercício de todo trabalho, desde que “atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer". Isto é, existe uma reserva legal qualificada para o exercício da profissão, não sendo possível a qualquer pessoa realizar qualquer ofício, como quiser, sob risco de fraude e ilicitude.

A liberdade científica, por outro lado, só existe quando o pesquisador exercer ciência, e não culto ou fé, sem que nesse exercício de ciência seja realizada discriminação atentatória a direitos fundamentais (CF, art. 5º, XLI). É por isso que o Supremo negou liberdade a S. Ellwanger, quando o autor editou livro racista, eis que discriminação e liberdade jamais caminham juntas (STF, HC n. 82424). Em exame dos fundamentos da decisão referente à cura gay - que permite a psicólogos a realização de estudos e atendimentos para "(re)orientação sexual" -, sublinham-se equívocos em três aspectos:

1. A liberdade científica não permite estudos preconceituosos, discriminatórios e anticientíficos, como é o caso de qualquer pesquisa que busque "(re)orientação sexual", conforme compreensão da Organização Mundial da Saúde (1990), no mesmo sentido da leitura de Freud sobre a homossexualidade (1935);

2. A liberdade profissional não permite tratamentos contrários à lei e a restrições ético profissionais, o que torna obrigatória a observância da Resolução n. 01/2017 do Conselho Federal de Psicologia, que proíbe qualquer ação que favoreça a patologização de comportamentos ou práticas homoeróticas (art. 3º);

3. As liberdades profissional e científica são limitadas por outros direitos fundamentais, como o direito à liberdade sexual, no qual estão inclusas a intimidade sexual e a privacidade sexual (STF, ADPF n. 132, julgada por unanimidade). Ou seja, todo ataque à vida privada sexual é uma violação a direito fundamental (CF, art. 5º, X). Atendimentos psicológicos que realizem tal ilicitude são, em verdade, tortura psicológica e violência inadmissível e repudiável.

Seria possível, ainda, realizar considerações sobre a impropriedade formal da decisão, uma vez há absoluta impertinência na utilização da ação popular para tutelar a pretensão dos autores. Todavia, para além desta questão técnica, é possível e necessário concluir que a decisão é discriminatória, anticientífica, incompatível com o direito à liberdade e, portanto, inconstitucional. Violar a vida privada para propor tratamento falso e estelionatário é ilegal, fraudulento e deve ser repudiado por todos que levam o direito a sério.

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Sobre o autor
Lawrence Estivalet de Mello

Professor do curso de Direito da Universidade Positivo, bacharel em Direito e em Filosofia, Mestre e Doutorando em Direito pela UFPR

Informações sobre o texto

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