Supressão das horas in itinere do cômputo das jornadas de trabalho.

Análise crítica ao Projeto de Lei n° 2409/2011

06/02/2017 às 14:10
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O direito à "hora in itinere" por uma análise histórica de sua construção mostra a contradição entre o projeto de lei 2409/2011, que visa suprimi-lo, e o direito fundamental ao lazer e o princípio da proibição do retrocesso.

Horas in itinere: evolução histórica no Brasil

A Consolidação das Leis do Trabalho – CLT estabeleceu no Brasil, em seu Art. 4°, o critério do tempo à disposição do empregador no local de trabalho para aferição das jornadas de trabalho.

Com o passar dos anos e o incremento de complexidade nas relações de trabalho, percebeu-se que tal critério, interpretado literariamente, não era capaz de oferecer solução justa e de acordo com os princípios gerais do direito, notadamente no que se refere às horas in itinere ou tempo de deslocamento ou percurso em locais de difícil acesso. Criava-se um ônus para os trabalhadores cujos locais de trabalho encontrava-se nessa situação, e que contrariava a lógica celetista da assunção dos riscos da atividade econômica pelo empregador.

Nesse contexto histórico, cumpre ressaltar a especial situação de trabalho dos trabalhadores em minas de subsolo que levavam muito tempo para chegar às frentes de trabalho que se situavam a quilômetros de distância, e a dos trabalhadores aquaviários e portuários que necessitavam deslocar-se, às vezes, por longas distâncias para chegarem aos pontos de embarque e aos locais de trabalho propriamente ditos. Ao final das jornadas, eram obrigados a fazer o mesmo trajeto em sentido oposto, sendo remunerados somente pelas horas efetivamente trabalhadas (SASSO, 2015, p. 84, 85).

Sendo demandado o poder judiciário a dar resposta a tais situações, adotou o Tribunal Superior do Trabalho - TST em 1978 a interpretação consubstanciada na Súmula 90 que previa que:

O tempo despendido pelo empregado, em condução fornecida pelo empregador, até o local de trabalho de difícil acesso, ou não servido por transporte público regular, e para o seu retorno é computável na jornada de trabalho.

Os conceitos apresentados no texto da súmula foram alvo de questionamentos, e as interpretações foram sendo construídas ao longo dos anos pela doutrina e jurisprudência, sendo que o próprio TST chegou a editar outras orientações jurisprudências, que atualmente foram incorporadas no próprio texto da Súmula 90, que assim se apresenta:

HORAS "IN ITINERE". TEMPO DE SERVIÇO

I - O tempo despendido pelo empregado, em condução fornecida pelo empregador, até o local de trabalho de difícil acesso, ou não servido por transporte público regular, e para o seu retorno é computável na jornada de trabalho.

II - A incompatibilidade entre os horários de início e término da jornada do empregado e os do transporte público regular é circunstância que também gera o direito às horas "in itinere".

III - A mera insuficiência de transporte público não enseja o pagamento de horas "in itinere".

IV - Se houver transporte público regular em parte do trajeto percorrido em condução da empresa, as horas "in itinere" remuneradas limitam-se ao trecho não alcançado pelo transporte público.

 V - Considerando que as horas "in itinere" são computáveis na jornada de trabalho, o tempo que extrapola a jornada legal é considerado como extraordinário e sobre ele deve incidir o adicional respectivo.

Ressalta-se que, com o advento da Constituição Federal de 1988, tal critério interpretativo encontrou ainda maior guarida normativa em face dos diversos direitos fundamentais sociais ali previstos, bem como fundamentos e princípios do Estado Democrático de Direito.

Por fim, normatizando a interpretação jurisprudencial sumulada desde 1978, resolveu o legislador, através da lei n° 10.243 de 2001, inserir o § 2° no Art. 58 da CLT:

§ 2° - O tempo despendido pelo empregado até o local de trabalho e para o seu retorno, por qualquer meio de transporte, não será computado na jornada de trabalho, salvo quando, tratando-se de local de difícil acesso ou não servido por transporte público, o empregador fornecer a condução.

Posteriormente, através da Lei Complementar n° 123 de 2006, foi também inserido o § 3° no Art. 58 da CLT, possibilitando às micro e pequenas empresas negociarem, através de acordo ou convenção coletiva, a fixação de tempo médio de deslocamento, assim como a forma e natureza da remuneração:

§ 3° Poderão ser fixados, para as microempresas e empresas de pequeno porte, por meio de acordo ou convenção coletiva, em caso de transporte fornecido pelo empregador, em local de difícil acesso ou não servido por transporte público, o tempo médio despendido pelo empregado, bem como a forma e a natureza da remuneração.

Atualmente, a utilização e alcance do instituto das horas in itinere são relativamente pacíficas na doutrina e jurisprudência justrabalhistas. Assim, tem-se que os locais de trabalho situado em zonas rurais têm presunção “iures tantum” de serem “de difícil acesso” enquanto os na zona urbana não tem a presunção relativa em sentido oposto (DELGADO, 2009, p. 783); que é irrelevante que haja onerosidade na utilização do transporte (Súmula 320 do TST); que a negociação coletiva não tem o poder de suprimir horas in itinere, mas tão somente fixar o montante médio estimado de modo a afastar dúvidas temporais (DELGADO, 2009, p. 784); que a mera insuficiência de transporte público não acarreta horas in itinere (Súmula 90, III, TST); que a incompatibilidade de horários dos transportes públicos gera o direito ao cômputo deste tempo na jornada (Súmula 90, II, TST); etc.

O mais moderno entendimento jurisprudencial, sobretudo do Tribunal Regional do Trabalho da 12° região (Santa Catarina), com fundamento no princípio da equidade não reconhece mais como requisito o fato de que a condução seja fornecida pelo empregador (SASSO, 2015, p. 87, 88). Basta que o local seja de difícil acesso ou não servido por transporte público, mesmo que o trabalhador utilize veículo próprio. Tal entendimento contraria a justificação feita pelo deputado Roberto Balestra ao projeto de lei - PL n° 2409 de 2011 (BRASIL, 2011, p. 2), para quem o fornecimento de transporte pelo empregador o torna passível de “punição” (através do pagamento de horas in itinere). Ao contrário, é com fundamento no local de trabalho (difícil acesso ou não servido por transporte público) como único requisito, que o mais moderno entendimento jurisprudencial estabelece o direito às horas in itinere para empregado que suporta o ônus desse deslocamento, seja com veículo próprio, seja com condução fornecida pelo empregador.


Projeto de lei n° 2409 de 2011 em face do direito fundamental ao lazer

O direito ao lazer encontra-se previsto já na Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU, assinada em 1948, em seu artigo XXIV que preceitua que “todo ser humano tem direito a repouso e lazer, inclusive a limitação razoável das horas de trabalho e a férias remuneradas periódicas”.

O conteúdo deste direito pode ser aferido pela conceituação elaborada por Joffre Dumazedier (1978, p. 39):

"um conjunto de ocupações as quais o indivíduo pode entregar-se de livre vontade, seja para repousar, seja para divertir-se, recrear-se, ou ainda para desenvolver informação ou formação desinteressada, sua participação social voluntária ou sua livre capacidade criadora após livrar-se ou desembaraçar-se das obrigações profissionais, familiares e sociais."

Percebe-se assim que o direito ao lazer é um direito necessário ao desenvolvimento e constituição das pessoas enquanto cidadãs, conferindo eficácia a diversos valores e a outros direitos previstos no ordenamento jurídico, como a convivência social e familiar, a educação, a cidadania e a saúde.

A Constituição Federal de 88, seguindo esta tradição, não só positivou no caput do seu art. 6° o direito social ao lazer, mas também lhe concedeu o status de direito fundamental. Esta colocação especial, no catálogo de direitos fundamentais constitucionais, trouxe diversas consequências jurídicas.

A primeira consequência é a sua aplicabilidade imediata, isto é, não dependente de regulamentação, conforme se extrai do parágrafo 1° do Art. 5°. Tal característica abrange todos os direitos fundamentais até mesmo os direitos sociais fundamentais dos trabalhadores, conforme lição de Sarlet (2009, p. 277):

(…) verifica-se que também um interpretação sistemática e teleológica conduzirá aos mesmo resultados. Neste sentido, percebe-se, desde logo, que a Constituição não pretendeu, com certeza, excluir do âmbito do art. 5º, § 1º, de nossa Carta, os direitos políticos, de nacionalidade e os direitos sociais, cuja fundamentalidade – pelo menos no sentido formal – parece inquestionável.

Outras consequências geralmente citadas pela doutrina são a universalidade (aplicam-se a todos os seres humanos), limitabilidade (não são absolutos), historicidade (seu alcance só pode ser medido dentro de um contexto cultural da época, transformando-se com o tempo), inalienabilidade e indisponibilidade (não podem ser preteridos mesmo que com consentimento do titular o direito).

Também há muito tempo apontada pela doutrina e jurisprudência é “eficácia horizontal dos direitos fundamentais”, que significa que a observância e promoção dos direitos fundamentais devem ser atendidas inclusive nas relações entre particulares, como nos contratos de prestação de serviços e de emprego. Assim sendo, o direito ao lazer é oponível contra empregadores e tomadores de serviço bem como contra o Estado, seja através de sua dimensão subjetiva (direito subjetivo individual do trabalhador) seja através de sua dimensão objetiva.

Em relação à dimensão objetiva dos direitos fundamentais e, portanto, do direito ao lazer, ensina Sarlet (2009, p. 144):

 (...) a faceta objetiva dos direitos fundamentais (...) significa, isto sim, que às normas que preveem direitos subjetivos é outorgada função autônoma, que transcende esta perspectiva subjetiva, e que, além disso, desemboca no reconhecimento de conteúdos normativos e, portanto, de funções distintas aos direitos fundamentais. É por isso que a doutrina costuma apontar para a perspectiva objetiva como representando também (…) uma espécie de mais-valia jurídica, no sentido de um reforço da juridicidade das normas de direitos fundamentais.

Continua ainda o professor Sarlet trazendo algumas implicações da dimensão objetiva dos direitos fundamentais, sendo a mais interessante para o presente estudo a “eficácia irradiante” desses direitos (2009, p. 144):

Como primeiro desdobramento de uma força jurídica objetiva autônoma dos direitos fundamentais, costuma apontar-se para o que a doutrina alemã denominou de uma eficácia irradiante (Ausstrahlungswirkung) dos direitos fundamentais, no sentido de que estes, na sua condição de direito objetivo, fornecem impulsos e diretrizes para a aplicação e interpretação do direito infraconstitucional, o que, além disso, apontaria para a necessidade de uma interpretação conforme os direitos fundamentais, que, ademais, pode ser considerada – ainda que com restrições – como modalidade semelhante à difundida técnica hermenêutica da interpretação conforme à Constituição.

Tendo como pressuposto referencial o conteúdo e implicações acima apresentadas referentes ao direito fundamental ao lazer, constata-se o choque evidente entre este direito constitucional e o PL n° 2409/2011. O reconhecimento de que as horas in itinere (para locais de difícil acesso ou não servidos por transporte público) integram as jornadas de trabalho é medida capaz de evitar com que o trabalhador possa permanecer por tempo indeterminado à disposição do trabalho, seja efetivamente trabalhando, seja se deslocando, o que lhe retira, consequentemente, o direito ao lazer. Atualmente esse deslocamento integra-se ao cômputo das jornadas, às quais encontram limitações legais diárias que promovem não somente o direito ao lazer, mas diversos outros direitos correlatos como direito à saúde, à redução de riscos ocupacionais, à educação, etc.

Tais direitos, por sua vez, devem ser interpretados de forma a conferir-lhes a máxima efetividade e eficácia imediata. Desse modo, fazendo a leitura do projeto de lei em tela conforme a constituição, ou conforme os direitos fundamentais como propõe Sarlet, inevitavelmente concluir-se-ia pela inconstitucionalidade da lei ordinária, pois transferiria o ônus do empregador em arcar com os riscos da sua atividade econômica, notadamente aqueles resultantes do desenvolvimento de atividades em locais de difícil acesso ou não servidos por transporte público, para o empregado, que passaria a não possuir qualquer limite legal para tais deslocamentos, atentando diretamente contra o direito ao lazer e os outros direitos mencionados.

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Projeto de lei n° 2409 de 2011 e a proibição do retrocesso

O princípio da proibição do retrocesso foi sendo paulatinamente reconhecido pelo Direito, tendo como principais referências o Direito alemão e o português. Seu conteúdo tem certa relação com a garantia dos direitos adquiridos e impões limites à supressão de direitos sociais. Luís Roberto Barroso, atualmente Ministro do STF assim ensina:

Por este princípio, que não é expresso, mas decorre do sistema jurídico-constitucional, entende-se que se uma lei, ao regulamentar um mandamento constitucional, instituir determinado direito, ele se incorpora ao patrimônio jurídico da cidadania e não pode ser absolutamente suprimido (2001, p. 158).

Sarlet (2009, p. 444), por sua vez, esclarece que:

(...) em se admitindo uma ausência de vinculação mínima do legislador (...) ao núcleo essencial já concretizado na esfera dos direitos sociais (...), estar-se-ia chancelando uma fraude à Constituição, pois o legislador – que ao legislar em matéria de proteção social apenas está a cumprir um mandamento do Constituinte – poderia pura e simplesmente desfazer o que fez no estrito cumprimento da Constituição. (...) o legislador não pode simplesmente eliminar as normas (legais) concretizadoras de direitos sociais, pois itos equivaleria a subtrair às normas constitucionais a sua eficácia jurídica.

O legislador estaria então impedido de fazer a supressão do cômputo das horas in itinere das jornadas de trabalho, pois o parágrafo 3° do Art. 58 da CLT concretiza diversos direitos fundamentais em seus núcleos mais elementares, entre eles o direito ao lazer, à saúde, a redução dos riscos ocupacionais, à educação, ao convívio familiar e outros. Assim, mesmo que reconheçamos o caráter relativo e não absoluto do princípio da proibição do retrocesso, temos que a supressão pretendida pelo legislador com o PL n° 2409 eliminará limites de tempo à disposição e deslocamento para o trabalho, submetendo parcela dos trabalhadores a períodos excessivos e retirando a eficácia de direitos fundamentais constitucionalmente positivados. Esta subtração da eficácia poderá ocorrer de maneira ilimitada em determinadas situações concretas, daí o necessário reconhecimento da inconstitucionalidade do projeto de lei, como forma de salvaguardar estes direitos fundamentais.


Referências bibliográficas

BARROSO, Luís Roberto. O Direito Constitucional e a Efetividade de suas Normas. 5ª ed, Rio de Janeiro, Renovar, 2001.

BRASIL. Câmara dos deputados. Projeto de lei n° 2409 de 2011. Altera os parágrafos 2º e 3º do art. 58 da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), aprovada pelo Decreto-lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943, a fim de dispor que o tempo de deslocamento do empregado até o local de trabalho e para o seu retorno não integra a jornada de trabalho. Disponível em: <http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=924372&filename=PL+2409/2011>. Acesso em 31 jul. 2016.

DELGADO, Maurício Godinho. Curso de direito do trabalho. 8a ed. São Paulo: Ltr, 2009.

DUMAZEDIER, Joffre. Lazer e cultura popular. São Paulo: Perspectiva, 1978, p. 39

MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 2ed. São Paulo: Saraiva, 2008.

SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional. 10ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009.

SASSO, RODRIGO INOCENTE. Breves ponderações acerca das horas in itinere. Direito & Justiça (Porto Alegre. Impresso), 2015.

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