Compliance e a Regulação dos Criptoativos

14/05/2024 às 11:47
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A popularização dos criptoativos exige um permanente estudo nas poucas e raras formas da sua regulação, e uma necessária ampliação nas garantias da captação da poupança popular.

Conceitualmente as moedas digitais usam sistemas de criptografia para a realização de transações. Ao contrário do dinheiro emitido por governos (dinheiro soberano), como dólar ou real, as criptomoedas são lançadas por agentes privados e negociadas exclusivamente na internet, e nesse momento já existem centenas delas pelo mundo, algumas lideram como o bitcoin.

A importância do seu regramento é fácil de se explicar, seja pelo elevado número de pessoas que atualmente já estão registradas nas corretoras no Brasil, cerca de 3 milhões de pessoas, algo que já é próximo ao número de investidores na bolsa de valores, ou pelos sucessivos escândalos que transformaram em pó os valores de milhões de investidores.

Coibir e restringir práticas ilegais, tais como a lavagem de dinheiro, evasão de divisas entre outros ilícitos capitulados já nos diplomas penais, ainda que a maioria absoluta das transações e uso desses criptoativos seja legal, porém para melhor acompanhamento das mutações patrimoniais e proteção dessas milhões de pessoas é preciso maturidade desse mercado, com o mínimo de controle.

São diários os enfrentamentos entre os governos e a necessidade de regulação mínima desses ativos, como o que ocorreu na semana passada entre o governo do Canadá, que decidiu multar a corretora de criptomoedas, Binance em US$ 6 milhões (mais de R$ 30 milhões, na cotação atual). A empresa é acusada de ter violado as leis do país de prevenção à lavagem de dinheiro e ao financiamento de terrorismo.

Segundo o governo do Canadá, através do seu Centro de Análise de Transações e Relatórios Financeiros (Fintrac, na sigla em inglês), a empresa teria cometido duas violações das leis do país. A primeira violação apontada pelo regulador envolve a falta de registro da empresa junto à Fintrac, uma exigência das leis canadenses para combate ao financiamento de terrorismo e facilitação de lavagem de dinheiro. O regulador explicou que a Binance tinha uma data limite para esse registro, e que o mesmo não foi feito, exigência essa que também se aplica as empresas que operam no Brasil e acordo com a lei 14.478/22.

A empresa já havia recebido uma determinação da Fintrac para cessar as suas operações no Canadá, no ano passado, o que não ocorreu. Em sua defesa em maio do ano passado a corretoras declarou que "novas orientações relacionadas a stablecoins e limites de investidores fornecidos às exchanges tornam o mercado do Canadá insustentável para a Binance no momento.

A outra violação identificada pelos reguladores, implica em uma falha ao não reportar "grandes transações com criptomoedas", incluindo informações detalhadas sobre as operações, como parte das exigências das mesmas leis de prevenção a crimes financeiros, algo que também se aplica no controle de inúmeros outros ativos, ou seja, nenhuma das duas exigências tornam a operação inviável.

Lembro que meses atrás a Binance, já havia sido proibida de operar nas Filipinas e na Nigéria, problemas que também ocorreram nos EUA, na União Europeia e no Brasil, o que é no mínimo curioso, considerando que a empresa domina cerca de 50% do mercado mundial.

Em alguns lugares como nos EUA, a empresa fechou um acordo com o governo do país envolvendo realizando o pagamento de uma multa bilionária.

No Brasil a Lei 14.478/2022, que disciplina a prestação de serviços de ativos virtuais, foi promulgada em 21/12/2022, trazendo uma cláusula de vacatio legis de 180 dias a contar de sua publicação, logo em seguida houve a publicação do decreto para regulamentar a matéria, que passou a vigorar em 19/6/2023.

De imediata, tal qual em outros países a prestação de serviços de ativos virtuais, incluindo serviços de intermediação e custódia, só pode ser exercida mediante autorização estatal prévia.

Nesse momento encontramos em período consolidador de uma consulta pública aberta através do edital do Banco Central, responsável pela regulação, a consulta se encerrou no dia 31 de janeiro e apresentava 28 questões que tratam de 8 temas.

Sabidamente nesse período além da inexistência do regime de autorização, supervisão e punição previsto na Lei nº 14.478/2022, a ausência de regulamentação infralegal inviabiliza o comando pelo qual se exige a manutenção de registro de transações acima de determinado limite (ainda não estipulado) e prejudica o cumprimento do dever das prestadoras de serviços de ativos virtuais de comunicar operações suspeitas de lavagem de dinheiro, conforme a alteração realizada no artigo 9º da Lei nº 9.613/1998. Ou seja, nenhum efeito prático imediato no combate à lavagem de dinheiro por meio dessa categoria de ativos, o que imaginamos deve ser sanado ainda no primeiro semestre.

O que não impede de forma subsidiária de se aplicar o Código de Defesa do Consumidor e as disposições penais: a equiparação das prestadoras de serviços de ativos virtuais a instituições financeiras para fins de aplicação da lei de crimes contra o Sistema Financeiro Nacional (Lei nº 7.492/1986) e a criação do artigo 171-A no Código Penal, um estelionato com uso de ativos virtuais, valores mobiliários ou ativos financeiros, cuja pena varia de quatro a oito anos de reclusão.

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Logo, nessas hipóteses, o Ministério Público e o Poder Judiciário certamente poderão fazer valer as definições de ativo virtual e de serviço de ativo virtual na Lei nº 14.478/2022 para imputar condutas ao novo delito.

Salientamos, porém, que é notória a dificuldade, mesmo pelos reguladores específicos do Sistema Financeiro Nacional, em diferenciar ativos virtuais de valores mobiliários, o que por sua vez torna pra lá de complexa a solução do conflito de normas entre pirâmide financeira (artigo 2º, IX, da Lei nº 1.521/1951) e de oferta irregular de valores mobiliários (artigo 5º, II, da Lei nº 7.492/1986), condutas permanentemente noticiadas.

Destacamos que o regime da Comissão de Valores Mobiliários permanece, e logo sendo ela a autarquia que regula o mercado de capitais e logo pode sim entender que determinado ativo virtual é um valor mobiliário, nos termos do artigo 2º, IX, da Lei nº 6.385/1976.

O decreto Nº 11.563, de 13 de junho de 2023 , regulamentou a Lei nº 14.478, de 21 de dezembro de 2022, estabelecendo ser a matéria de competência do Banco Central do Brasil, cabendo a ele:

Art. 1º.....

I - regular a prestação de serviços de ativos virtuais, observadas as diretrizes da referida Lei;

II - regular, autorizar e supervisionar as prestadoras de serviços de ativos virtuais; e

III - deliberar sobre as demais hipóteses estabelecidas na Lei nº 14.478, de 2022, ressalvado o disposto no art. 12, na parte que inclui o art. 12-A na Lei nº 9.613, de 3 de março de 1998.

Ainda de acordo com o disposto no Art. 2º Para fins do disposto no art. 6º da Lei nº 14.478, de 2022, o Banco Central do Brasil disciplinará o funcionamento das prestadoras de serviços de ativos virtuais e será responsável pela supervisão das referidas prestadoras.

Destaca para o artigo terceiro onde está previsto:

Art. 3º O disposto neste Decreto:

I - não se aplica aos ativos representativos de valores mobiliários sujeitos ao regime da Lei nº 6.385, de 7 de dezembro de 1976; e

II - não altera as competências:

a) da Comissão de Valores Mobiliários - CVM;

b) do Sistema Nacional de Defesa do Consumidor, nos termos previstos na Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990; e

c) de prevenção e de repressão aos crimes previstos no inciso VII do caput do art. 4º da Lei nº 14.478, de 2022.

Como salientamos, uma nova camada de regulação deve sair como resultado da Consulta Pública 97/23, o que ampliará as regras de segurança para os investidores e investidos.

Sobre o autor
Charles M. Machado

Charles M. Machado é advogado formado pela UFSC, Universidade Federal de Santa Catarina, consultor jurídico no Brasil e no Exterior, nas áreas de Direito Tributário e Mercado de Capitais. Foi professor nos Cursos de Pós Graduação e Extensão no IBET, nas disciplinas de Tributação Internacional e Imposto de Renda. Pós Graduado em Direito Tributário Internacional pela Universidade de Salamanca na Espanha. Membro da Academia Brasileira de Direito Tributário e Membro da Associação Paulista de Estudos Tributários, onde também é palestrante. Autor de Diversas Obras de Direito.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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