Inviolabilidade de domicílio x segurança pública: Uma análise crítica das decisões dos Tribunais Superiores sobre a nulidade de provas produzidas em ações de combate ao tráfico de drogas

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RESUMO

O presente trabalho tem por objetivo evidenciar situações hodiernas de julgados do Superior Tribunal de Justiça que, ao priorizarem o princípio constitucional da inviolabilidade de domicílio, insculpida no artigo 5º, inciso X, da Constituição Federal, em detrimento à ressalva da prisão em flagrante delito, expressa no mesmo dispositivo, trazem insegurança jurídica ao exercício da atividade policial no combate ao crime de tráfico de drogas, demonstrando-se recentes decisões judiciais que dificultam o combate a esse crime quando as substâncias entorpecentes encontram-se armazenadas no interior de uma residência.

Palavras-chave: Tráfico de drogas; inviolabilidade de domicílio.

ABSTRACT

 The present work aims to expose current situations of judgments of the Superior Court of Justice that, by prioritizing the constitutional principle of the inviolability of the home, enshrined in article 5, item X, of the Federal Constitution, to the detriment of the caveat of arrest in flagrante delicto crime, expressed in the same device, bring legal uncertainty to the exercise of police activity in the fight against the crime of drug trafficking, demonstrating recent court decisions that make it difficult to fight this crime when narcotic substances are stored inside a residence. 

Keywords: Drug trafficking; inviolability of home. 

INTRODUÇÃO

 Crimes permanentes são aqueles cujo momento consumativo se prolonga no tempo, com característica de durabilidade e cujo prolongamento depende da vontade do autor, possuindo esse o completo domínio do fato. Nesse sentido, Estefam (2022, p. 254-255) explicita:

Assim, por exemplo, se uma pessoa recebeu droga em julho de 2006 (quando estava em vigor a Lei n. 6.368/76) e a guarda em um depósito com o objetivo de comercializá-la até janeiro de 2007 (quando já estava em vigor a Lei n. 11.343/2006), ficará sujeita às penas mais severas da nova legislação, uma vez que se trata de crime permanente, cujo momento consumativo iniciou-se com a lei antiga, mas persistiu durante a nova lei. 

Essa classificação da permanência criminosa se encontra perfeitamente delineada em relação ao crime de tráfico de drogas nas ações de: expor à venda, ter em depósito, transportar, trazer consigo e guardar, todas elas tipificadas no artigo 33 da Lei nº 11.343/06.

Em razão disso, algumas consequências podem advir ao infrator como, v.g.: 1) sua prisão em flagrante delito, conforme disposto no artigo 303 do Código de Processo Penal, que expressa: “Nas infrações permanentes, entende-se o agente em flagrante delito enquanto não cessar a permanência” (grifo nosso); 2) a violação domiciliar, a qual independente de prévia autorização judicial.

Sobre este último ponto, a Constituição Federal, no artigo 5º, inciso XI reza que: “a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial”. Também, o Código Penal Brasileiro, em seu artigo 150, §3º, inciso II, dispõe: “§ 3º - Não constitui crime a entrada ou permanência em casa alheia ou em suas dependências: (...) II - a qualquer hora do dia ou da noite, quando algum crime está sendo ali praticado ou na iminência de o ser”. (grifo nosso).

Sobre o tema, resta evidente que a inviolabilidade domiciliar é relativa, existindo situações que, uma vez caracterizadas, permitem sua violação, como a existência de flagrante delito pelo crime de tráfico de drogas. Nesse sentido, Gomes (2006, p. 215) pontua que: 

a captura é legítima, não há que se falar em invasão de domicílio ou crime de abuso de autoridade. Em outras palavras: não importa se a droga encontrada na casa do sujeito era para traficância ou para consumo pessoal. Em ambas as hipóteses a invasão foi correta (é juridicamente incensurável).

 Nesse diapasão, dando guarida à legalidade da invasão domiciliar em caso de crime de tráfico de drogas, dada sua permanência, o Supremo Tribunal Federal, por meio do HC 90.178/RJ, da lavra do Min. Cézar Peluso, já decidiu que “não é nulo o inquérito policial instaurado a partir da prisão em flagrante dos acusados, ainda que a autoridade policial tenha tomado conhecimento prévio dos fatos por meio de denúncia anônima” (STF, 2ª Turma, HC 90.178/RJ, Rel. Min. Cezar Peluso, j. 02/02/2010, DJe 55 de 25/03/2010).

 

DAS RECENTES DECISÕES DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

No entanto, em decisões recentes, o Superior Tribunal de Justiça tem anulado diversas investigações e declarado ilegais várias apreensões de drogas quando ocorre invasão domiciliar sem o devido mandado judicial específico para essa finalidade, sendo que, anteriormente, não havia essa exigência, como pontuado por Lima (2016, p. 741): 

(...) Logo, se a autoridade policial, munida de mandado de busca e apreensão, depara-se com certa quantidade de droga no interior da residência, temos que a apreensão será considerada válida, pois, como se trata de delito de tráfico de drogas na modalidade de ‘guardar’, ‘ter em depósito’, etc., espécie de crime permanente, haverá situação de flagrante delito, autorizando o ingresso no domicílio mesmo sem autorização judicial. Portanto, nas hipóteses de flagrante delito (v.g., crime permanente), mesmo que o objeto do mandado de busca e apreensão seja distinto, será legítima a intervenção policial, a despeito da autorização para entrar na casa lhe ter sido deferida com outra finalidade. 

A título de exemplo, colacionam-se algumas decisões do Superior Tribunal de Justiça dando preponderância à inviolabilidade de domicílio em detrimento da prisão em flagrante delito: 

O comportamento suspeito do agente empreendendo fuga para o interior de sua residência durante ronda policial nas imediações não constitui justa causa para o ingresso forçado de autoridades policiais, mesmo que se trate de crime permanente. (AgRg no HC n. 745.504/SP, relator Ministro João Otávio de Noronha, Quinta Turma, julgado em 2/8/2022, DJe de 8/8/2022). 

Os policiais estariam passando pela rua quando uma cadela conduzida pela guarnição policial constatou a presença de drogas e sinalizou em frente à residência do ora agravado. Então, não se tratou de algo que já estivesse sendo investigado pela polícia, no qual tenha ocorrido o flagrante delito, mas, sim, de apreensão de drogas feita de forma inesperada e sem o devido mandado judicial. (AgInt no HC n. 566.818/RJ, relator Ministro Sebastião Reis Júnior, Sexta Turma, julgado em 16/6/2020, DJe de 25/6/2020). 

a mera sinalização do cão de faro, seguida de abordagem a suposto usuário saindo do local, desacompanhada de qualquer outra diligência investigativa ou outro elemento concreto indicando a necessidade de imediata ação policial, não justifica a dispensa do mandado judicial para o ingresso em domicílio. (AgRg no HC 729.836-MS, julgado em 27/4/2023, 6ª Turma STJ. Relatora Ministra Laurita Vaz). 

No caso em tela, a diligência que resultou na apreensão de 349, 40g (trezentos e quarenta e nove gramas e quarenta centigramas) de maconha e 14 munições apoiou-se em meras denúncias anônimas e no fato de o recorrente ter sido surpreendido na posse de 3 porções de maconha, circunstâncias que não justificam, por si sós, a dispensa de investigações prévias ou do mandado judicial. (AgRg no REsp 2010320-MG, julgado em 13/2/2023, 6ª Turma STJ. Relator Ministro Antônio Saldanha). 

1. Tendo como referência o recente entendimento firmado por esta Corte, nos autos do HC n. 598.051/SP, o ingresso policial forçado em domicílio, resultando na apreensão de material apto a configurar o crime de tráfico de drogas – 12g (doze gramas) de cocaína –, quando apoiado em mera denúncia anônima e no fato de que os policiais, de fora, avistaram os acusados no interior da casa manipulando material, não traz contexto fático que justifica a dispensa de investigações prévias ou do mandado judicial para a entrada dos agentes públicos na residência, acarretando a nulidade da diligência policial, como no caso dos autos. (AgRg no REsp 1.865.363-SP, julgado em 22/6/2021, 6ª Turma STJ. Relator Ministro Antônio Saldanha).

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Como pontuado acima na colação de recentes julgados do Superior Tribunal de Justiça, resta clara a existência de overruling, com mudança de entendimento acerca da inviolabilidade domiciliar em casos de flagrante delito de crime permanente, restando evidenciada a supremacia da regra constitucional da inviolabilidade de domicílio em detrimento à prisão em flagrante em caso de tráfico de drogas nas modalidades guardar e ter em depósito, classificadas como crime permanente, dificultando sobremaneira ações policiais no combate ao tráfico de drogas.

Ademais, é sabido que o crime de tráfico de drogas possui como característica a rápida comercialização dos entorpecentes, sendo que os êxitos de ações policiais na apreensão de drogas, quando agindo em campana de observação ao comércio de traficantes e usuários, ou ainda, em situações flagranciais baseadas, por exemplo, em denúncias anônimas ou sinalização de cães farejadores, estão sendo considerados ações ilegais, o que produz dois efeitos imediatos e a longo prazo, como o desestímulo no combate ao tráfico de drogas – haja vista a rigidez e anulação das operações e apreensões realizadas –, bem como, ao revés, o estímulo ao recrudescimento ao comércio de drogas, uma vez que os traficantes (ainda que suas ações configurem flagrante delito) deixam de ser responsabilizados e sequer se submetem ao devido processo e julgamento.

Ainda, dadas as múltiplas formas de cometimento do crime de tráfico de drogas, nem sempre é viável e recomendada a existência de prévias investigações para que reste configurado tal delito e haja a prisão em flagrante. É o caso, por exemplo, do julgamento do HC 838.089 do Superior Tribunal de Justiça, em que foi reconhecida a ilicitude das provas obtidas em busca domiciliar, com o consequente trancamento da ação penal, uma vez que houve o adentramento residencial após o policial militar sentir o cheiro do entorpecente. Ora, qual a ilegalidade da busca domiciliar se o policial sentiu o cheiro do entorpecente e, após adentrar na residência, se confirmou que, de fato, ali havia drogas? Haveria necessidade, nesse caso, de investigações prévias? Haveria tempo hábil e eficácia da medida caso fosse necessária representação policial e posteriormente decisão judicial autorizando o adentramento? Certamente que não. 

CONCLUSÃO

 Exigir medidas rígidas em situações que a lei não exige (como no caso de flagrante delito em crimes permanentes) traz engessamento e desestímulo às atividades policiais no combate à criminalidade do tráfico de drogas, beneficiando unicamente os criminosos que se utilizam dessa prática e se sentem, cada vez mais, ousados e estimulados para tal finalidade, sendo os ganhos financeiros de grande monta.

Por fim, deve-se destacar que eventuais abusos cometidos por parte dos policiais quando do ingresso em residências devem ser investigados e seus responsáveis devidamente punidos, não sendo a melhor opção uma mudança de paradigma dos julgados para inverter a ordem e considerar ilegais as incursões dos policiais em residência em casos patentes de flagrante delito, não se levando em conta a dinamicidade do crime de tráfico de drogas e que, nem sempre, é possível a realização de prévias investigações para a apreensão de drogas e prisão em flagrante delito dos suspeitos. 

REFERÊNCIAS 

ESTEFAM, André. Direito penal: parte geral. Arts. 1º a 120. V. 1. 11. ed. Coleção Direito Penal). São Paulo: SaraivaJur, 2022. 

GOMES, Luiz Flávio. Nova lei de drogas comentada artigo por artigo: lei nº 11.343, de 23/08/2006. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. 

GRECO, Rogério. Curso de direito penal: volume 1: parte geral: arts. 1º a 120 do Código Penal. 24. ed. Barueri/SP: Atlas, 2022. 

LIMA, Renato Brasileiro de. Legislação criminal especial comentada: volume único. 4. edição. Salvador: JusPodivm, 2016. 

MASSON, Cleber. Direito Penal: parte geral (arts. 1º a 120). V. 1. 13. ed. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2019. 

PACELLI, Eugênio. Curso de processo penal. 23. ed. São Paulo: Atlas, 2019. 

RANGEL, Paulo. Direito processual penal. 27. ed. São Paulo: Atlas, 2019. 

STF. Supremo Tribunal Federal. 2ª Turma. HC 90.178/RJ. Rel. Min. Cezar Peluso, j. 02/02/2010, DJe 55 de 25/03/2010.

Sobre os autores
Tarsis Barreto Oliveira

Doutor e Mestre em Direito pela UFBA. Professor Associado de Direito da UFT. Professor Adjunto de Direito da UNITINS. Professor do Mestrado em Prestação Jurisdicional e Direitos Humanos da UFT/ESMAT. Membro do Comitê Internacional de Penalistas Francófonos e da Associação Internacional de Direito Penal.

João Luís da Costa Jucá

Delegado de Polícia no Estado do Tocantins. Especialista em Política e Gestão em Segurança Pública pela UFT.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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