Os efeitos da descriminalização de condutas previstas na legislação penal brasileira na efetividade dos trabalhos da Polícia Judiciária

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RESUMO

O presente resumo expandido objetiva demonstrar como, no contexto de ascensão da criminalidade, a descriminalização de condutas de menor potencial ofensivo e daquelas que se resolveriam de forma administrativa poderia influenciar na efetividade dos trabalhos da Polícia Civil e, consequentemente, na adequada repressão e redução dos índices criminais.

Palavras-chave: crime; descriminalização; efetividade da polícia judiciária; segurança pública.

ABSTRACT

This expanded summary aims to demonstrate how, in the context of rising crime, the decriminalization of conduct of lesser offensive potential and those that could be resolved administratively could influence the effectiveness of the work of the Civil Police and, consequently, the adequate repression and reduction of crime rates.

Keywords: crime; decriminalization; effectiveness. of the judicial police; public security.

INTRODUÇÃO

Um dos principais problemas a serem enfrentados atualmente no Brasil é o aumento da criminalidade, principalmente a criminalidade organizada.

As organizações criminosas cresceram e se ramificaram na sociedade, passando a atuar desde o controle de serviços básicos para a população (internet, gás, transporte de pessoas etc., como acontece em aglomerados (favelas) nos grandes centros até os crimes de colarinho branco, estes praticados por representantes eleitos por aqueles que mais sofrem com os desvios do dinheiro público.

Ao passo que tais grupos criminosos se estruturam internamente, o reflexo é o colapso social que temos enfrentado, cujo maior exemplo tem sido o Estado do Rio de Janeiro. Obviamente, nem todos os crimes irradiam dessas alianças para o crime, apesar de terem grande influência no ecossistema criminoso, havendo casos isolados em todas as comunidades.

De acordo com dados do 17º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, em 2022 foram registrados no Brasil 47.398 mortes violentas intencionais (MVI)3, uma diminuição de 2,4% em relação ao ano anterior. Apesar da importante redução, os números são alarmantes.

Por outro lado, o país registrou aumentos históricos nos casos de estelionatos (crescimento de 326,3% desde 2018), muito em razão do incremento das fraudes eletrônicas. Os estupros cresceram 8,2% em relação a 2021, totalizando 74.930 casos, dos quais 56.820 mil são estupros de vulneráveis. Outro índice que teve elevação se refere ao delitos envolvendo violência doméstica contra a mulher, destacando-se o aumento de 6,1% nos feminicídios4.

Se quisermos enfrentar o problema, temos de conhecer o crime como um fenômeno complexo, multifacetado e influenciado por uma ampla gama de fatores, como a desigualdade social, a pobreza, o desemprego, educação de baixa qualidade, falta de acesso a serviços básicos (saúde e moradia), uso de drogas, fácil circulação de armas de fogo e a impunidade. Esses e outros fatores contribuem para a criação de um ambiente propício à violência e ao crime.

É preciso, portanto, que o governo e a sociedade civil se unam para o combate eficaz da criminalidade através de investimentos e execução de políticas públicas que reduzam a desigualdade e a pobreza, além da criação de oportunidades de emprego e educação para os jovens.

Aliado a isso, imprescindível a implementação de políticas de segurança pública eficientes, o fortalecimento do sistema de justiça criminal e o investimento em programas de prevenção social para a redução da criminalidade.

Entendidas como um conjunto de ações e medidas que visam garantir a ordem pública, a incolumidade das pessoas e do patrimônio, as políticas de segurança pública de um Estado norteiam a ação de todos os atores vinculados ao sistema de persecução criminal, dentre eles a Polícia Judiciária.

No Brasil, as políticas de segurança pública têm sido pautadas principalmente pela repressão à criminalidade com foco no aumento do número de policiais e investimento na melhoria da estrutura das polícias. No entanto, essa abordagem tem sido criticada e, ao nosso ver, fracassou ao se mostrar insuficiente para combater o problema da criminalidade. A resposta está nos números que, como citamos, têm aumentado.

Para serem eficazes, é necessário que essas medidas sejam baseadas em uma abordagem sistêmica, que considere as causas estruturais do fato criminoso, os limites financeiros para investimentos e a eficácia dos mecanismos de prevenção e repressão. Além disso, é importante que essas políticas sejam integradas, envolvendo diversos setores do governo e da sociedade.

Nesse contexto, o presente trabalho visa demonstrar que uma política de segurança pública de descriminalização de condutas de menor potencial ofensivo e aquelas que poderiam ser penalizadas por outros domínios do direito pode ser uma alternativa na prevenção e combate à criminalidade, na medida em que possibilita a melhor alocação dos recursos humanos e materiais disponíveis para aqueles fatos penalmente relevantes.

METODOLOGIA

A metodologia empregada na execução do trabalho será a coleta de dados oficiais junto ao sistema de estatística, controle e atuação utilizado pela Polícia Civil do Estado do Tocantins (sistema PPE - SINESP), na amostragem dos anos de 2022 e 2023, com o objetivo de evidenciar os números totais de registros de boletins de ocorrência, categorizar os delitos com maior incidência nas unidades policiais e analisar os efeitos que a descriminalização de determinadas condutas poderiam trazer na redução de casos que chegam à Delegacias de Polícia e, por consequência, na otimização de resultados.

FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

O princípio da última ratio é conceito fundamental no Direito Penal e diz respeito à necessidade de que o Estado intervenha exercendo o seu poder punitivo somente quando todas as outras alternativas de penalização se mostrarem insuficientes. Em outras palavras, o Estado só deve aplicar sanções penais quando não houver outra forma eficaz e proporcional de proteger bens jurídicos e garantir a ordem social.

E vai além, pois está relacionado à ideia de proporcionalidade e humanização do sistema penal. Com isso, busca-se evitar o uso desnecessário e excessivo da pena, priorizando medidas menos restritivas de liberdade, como penas alternativas, medidas socioeducativas, penas restritivas de direitos, multas, advertências e outras sanções administrativas, sem perder seu caráter de ressocialização do infrator.

Nas palavras de Greco (2006, p. 170):

Fundamento do princípio da subsidiariedade seria o princípio constitucional da proporcionalidade. Apesar de historicamente mais antigo, o princípio da subsidiariedade começa hoje a ser visto como uma concretização da ideia de proporcionalidade, em especial do subprincípio da necessidade, segundo o qual entre duas restrições de liberdade igualmente idôneas, só será legitima aquela que restrinja menos a liberdade.

Vale ressaltar, ainda, que o princípio da última ratio não significa que o sistema penal deva ser ineficaz ou brando, mas que ele deva ser utilizado de forma racional e proporcional. Isso implica em escolher a medida mais adequada e justa levando em consideração as circunstâncias do caso concreto, como a gravidade do delito, a periculosidade do autor, a reprovabilidade da conduta e as circunstâncias pessoais do infrator.

Neste ponto, entendemos que a descriminalização de condutas menos lesivas ao ser humano ou ao patrimônio ou que possam ser reprimidas com outras medidas cautelares pode causar um efeito cascata de efetividade na repressão criminal. Isso porque permitiria um desafogo do sistema de persecução criminal ao focar em condutas relevantes e de alto poder ofensivo, além de punições adequadas e efetivas ao infrator, seja na seara criminal ou na esfera administrativa.

O TJDTF (2017) assim conceituou a expressão descriminalização: “significa que o ato ou conduta deixou de ser crime, ou seja, não há mais punição no âmbito penal, mas ainda pode ser considerada como ilícito civil ou administrativo, e pode sofrer sanções como multas, prestação de serviços ou frequência em cursos de reeducação”. 

Por outro lado, permitiria que os altos custos financeiros para manutenção do sistema de justiça e penitenciário fossem redirecionados de forma racional na prevenção e repressão de crimes destacados, bem como na ressocialização do sujeito ativo.

A descriminalização de condutas, no caso, refere-se à remoção do caráter criminoso de determinados comportamentos escolhidos pela sociedade. Isso não necessariamente implica na não responsabilização por tais atos, sendo, como já dito, possível a migração da sanção para as esferas cível ou administrativa através de sanções restritivas de direitos (proibição de comercializar produtos), indenizações (repercutindo no bolso do infrator) e até mesmo perda de bens (a exemplo da propriedade rural onde ocorreram reiteradamente desmatamentos). Assim, ataca-se o indivíduo no ponto que mais o faz sentir a reprovabilidade de sua conduta, de forma proporcional e eficiente.

Em resumo, a descriminalização pode ter diversos fundamentos, contudo todos eles devem passar por uma ideia de humanização do sistema criminal, pelas necessidades da redução de custos5 e pela atualização das normas penais.

RESULTADOS E DISCUSSÕES

O Estado do Tocantins faz uso de uma ferramenta fornecida pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública: o Sistema Nacional de Informações de Segurança Pública, conhecido como SINESP. Ao acessá-lo temos à disposição alguns subsistemas, dentre os quais o PPE (Procedimentos Policiais Eletrônicos), que realiza o registro de boletins de ocorrência e demais procedimentos de polícia (TCO/BOC, IP/APF e AIAI/AAFAI).6

Não são todos os Estados da federação que utilizam esta ferramenta, o que prejudica o trabalho de integração nacional de dados de segurança pública.

Segundo o Núcleo de Coleta e Análise Estatística (NUCAE) da Secretaria de Segurança Pública do Estado do Tocantins, que tem como base os dados do SINESP, de 01/01/2023 a 23/10/2023 foram registrados 93.936 boletins de ocorrência junto à Polícia Civil. Desse número absoluto, temos diversas ocorrências atípicas, devendo ser desconsideradas para este estudo, sendo elas:

  1. Perda/extravio de documentos: 16.819 registros;

  2. Acidente de trânsito sem feridos: 4.886 registros;

  3. Outros fatos atípicos: 4.286 registros;

  4. Conflitos diversos – outros: 2.535 registros;

  5. Cumprimento de mandado – prisão: 1.721 registros;

  6. Acidente de trânsito – autolesão: 1.553 registros.

Assim, considerando apenas as condutas típicas, temos aproximadamente 62.132 boletins de ocorrência a serem analisados e despachados pelas autoridades policiais no Estado do Tocantins.

Como o objetivo deste estudo não é realizar uma análise completa da legislação pátria, tomamos como base apenas aqueles crimes de maior incidência nos gráficos e que, se descriminalizados, diminuiriam o volume de ocorrências nas unidades policiais. Lembrando que se trata de condutas menos gravosas e passíveis de solução por outros domínios do direito ou pela via administrativa.

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  1. Ameaça: 8.722 registros;

  2. Crimes contra a honra (Calúnia, difamação e injúria)7: 4.788 registros;

  3. Dano: 1.924 registros;

  4. Vias de fato: 1.027 registros;

  5. Crimes de trânsito (artigos 305 e 309 do CTB): 704 registros;

  6. Perturbação de sossego: 492 registros;

  7. Posse de drogas para consumo pessoal: 358 registros.

Neste cenário, totalizamos 18.015 delitos, o que corresponde a 28,99% das ocorrências típicas atuais. Isto é, considerando a descriminalização apenas do pequeno rol acima de comportamentos hoje considerados criminosos, teríamos uma redução significativa (de quase 30%) no volume de serviços nas delegacias.

Obviamente, o resultado de uma atualização mais profunda nas normas penais brasileiras traria resultados ainda mais expressivos.

Gráfico 1 – Estatísticas Gerais 2023

Fonte: Núcleo de Coleta e Análise Estatística (NUCAE) da Secretaria de Segurança Pública do Estado do Tocantins.

Gráfico 2 – Total por natureza criminal 2023

Fonte: Núcleo de Coleta e Análise Estatística (NUCAE) da Secretaria de Segurança Pública do Estado do Tocantins.

Fonte: Núcleo de Coleta e Análise Estatística (NUCAE) da Secretaria de Segurança Pública do Estado do Tocantins.

No ano de 2022, o resultado é bastante semelhante. Foram registrados 119.538 boletins de ocorrência no Estado do Tocantins, dos quais 43.177 são de fatos atípicos a serem excluídos da análise8.

Dos 76.361 fatos típicos, 20.184 ocorrências se enquadraram como condutas, a nosso entender, passíveis de descriminalização – ameaça, crimes contra a honra, dano, vias de fato, crimes de trânsito (artigos 305 e 309 do CTB), perturbação de sossego e posse de drogas para consumo pessoal. Ou seja, 26,43% dos casos totais.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O fenômeno criminal é intrínseco à sociedade humana, ou seja, sempre existiu e sempre existirá. A questão que se coloca é como reduzir ou minimizar tais eventos a ponto de garantir adequada harmonia social e bem-estar ao cidadão.

A política criminal de um país, portanto, é que norteará as estratégias, medidas e leis para combater a criminalidade e promover a justiça em uma sociedade e, conforme vimos, a atual política de repressão adotada no Brasil não tem apresentado êxito.

Pertinentes as palavras de Costa (2023), em trabalho de conclusão de mestrado apresentado na Universidade Federal de Santa Catarina:

a política de intensificação da aplicação da pena de prisão e da quebra das garantias individuais previstas nas constituições, não serão capazes de diminuírem o crime, como querem nos fazer crer certos movimentos de lei e ordem. Somente uma política de transformação social, de efetivação dos direitos humanos, juntamente com uma política criminal de descriminalização das condutas de pequeno potencial ofensivo, acredita-se, diminuirão os problemas da violência. A transformação social implica na busca da qualidade de vida, implica na efetiva justiça social, na redução dos fatores estruturais e institucionais que favorecem a violência. A partir da atualização do Direito Penal, criminalizando e descriminalizando, sempre que as transformações sociais assim o exigirem, pode obter-se um Direito Penal que sirva de instrumento de efetivação de justiça social.

Neste sentido, o presente trabalho demonstrou, ainda que de forma limitada, como pequenas alterações (descriminalização) afetam o volume de trabalho da Polícia Civil (em 30%, aproximadamente), o que, por consequência, traria efetividade na atuação dos trabalhos investigativos de polícia judiciária, com foco em delitos mais graves.

Uma profunda revisão legislativa, portanto, nos moldes do que foi aqui apontado, demonstra que a implementação de uma política criminal alternativa de descriminalização é uma opção esperançosa nos rumos da segurança pública no Brasil.

REFERÊNCIAS

17° ANUÁRIO BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. FBSP. Disponível em: em: chrome-extension://efaidnbmnnnibpcajpcglclefindmkaj/https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2023/07/anuario-2023.pdf, na página 21. Acesso em: 21 de out. 2023.

COSTA, Ana Lúcia Barentin da. Descriminalização: uma política criminal alternativa. Repositório institucional da UFSC. Disponível em: chrome-extension://efaidnbmnnnibpcajpcglclefindmkaj/https://repositorio.ufsc.br/bitstream/handle/123456789/106424/105184.pdf?sequence=1&isAllowed=y. Acesso em: 21 de out. 2023.

GRECO, Luís. Breves reflexões sobre os princípios da proteção de bens jurídicos e da subsidiariedade no direito penal. In: Brito, Alexis Augusto Couto de; Vanzolini, Maria Patrícia (Coord.). Direito penal: aspectos jurídicos controvertidos. São Paulo: Quartier Latin do Brasil, 2006.

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO DISTRITO FEDERAL E DOS TERRITÓRIOS. TJDFT. Disponível em: https://www.tjdft.jus.br/institucional/imprensa/campanhas-e-produtos/direito-facil/edicao-semanal/descriminalizacao-x-legalizacao. Acesso em: 21 de out. 2023.

NÚCLEO DE COLETA E ANÁLISE ESTATÍSTICA (NUCAE) DA SECRETARIA DE SEGURANÇA PÚBLICA DO ESTADO DO TOCANTINS. Disponível em: https://intranet.ssp.to.gov.br/ideia/11/incidencia-criminal. Acesso em: 23 de out. 2023.


  1. ...

  2. ....

  3. Entram nesta contagem: homicídio, latrocínio, lesão corporal seguida de morte, morte de agentes de segurança e mortes decorrente de intervenção policial.

  4. Neste período foram solicitadas 445.456 mil medidas protetivas de urgência, crescimento de 13,7% em comparação a 2021.

  5. No ano de 2022, o Brasil gastou 124,8 bilhões de reais com segurança pública (1,26 do PIB), aumento de 11,6% em relação a 2021. Informação do 17º Anuário Brasileiro de Segurança Pública.

  6. Termo Circunstanciado de Ocorrência/Boletim Circunstanciado de Ocorrência, Inquérito Policial/Auto de Prisão em Flagrante e Auto de Investigação de Ato Infracional/Auto de Apreensão em Flagrante de Ato Infracional.

  7. O dado inclui outras espécies de crimes contra honra com menor incidência no gráfico.

  8. Perda/extravio de documento, acidente de trânsito sem vítima, outros fatos atípicos, conflitos diversos – outros, acidente de trânsito – autolesão e mandado – prisão, localização de veículos, acidente – autolesão, cumprimento de mandado de busca e apreensão e cumprimento de carta precatória.

Sobre os autores
Tarsis Barreto Oliveira

Doutor e Mestre em Direito pela UFBA. Professor Associado de Direito da UFT. Professor Adjunto de Direito da UNITINS. Professor do Mestrado em Prestação Jurisdicional e Direitos Humanos da UFT/ESMAT. Membro do Comitê Internacional de Penalistas Francófonos e da Associação Internacional de Direito Penal.

Diogo Fonseca da Silveira

Graduado em Direito pela Universidade Federal de Juiz de Fora/MG. Pós-graduado em Direito Penal e Processo Penal pelo Damásio Educacional, São Paulo. Investigador de Polícia, Polícia Civil de Minas Gerais. Delegado de Polícia, Polícia Civil do Tocantins.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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