A cautela de veículos apreendidos nas Delegacias: uma investigação piloto

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RESUMO

O presente trabalho visa delimitar uma visão geral acerca da cautela de veículos apreendidos no curso da persecução penal, mormente na fase investigativa, objetivando encontrar os melhores sistemas de gestão para tais objetos que se acumulam nas delegacias sem a devida destinação. Para tanto, faz-se a análise da normativa legal e infralegal disciplinadora desta temática no âmbito dos três poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário), bem como de textos científicos, no intuito de identificar a responsabilidade de cada órgão/ente em relação a tais bens e os empecilhos que dificultam a sua remessa quando não mais interessam à persecução penal. Nesta pesquisa, analisa-se a situação corrente nas delegacias do Estado do Tocantins, sobretudo na cidade de Guaraí-TO.

Palavras-chaves: acúmulo; cautela; Delegacias; destinação; veículos.

ABSTRACT

The aim of this paper is to provide an overview of the safekeeping of vehicles seized in the course of criminal prosecution, especially in the investigative phase, with the aim of finding the best management systems for these objects that accumulate in police stations without their proper destination. To this end, an analysis is made of the legal and infra-legal regulations governing this issue within the three branches of government (Executive, Legislative and Judiciary), as well as scientific texts, in order to identify the responsibility of each body/entity in relation to such assets and the obstacles that hinder their shipment when they are no longer of interest to criminal prosecution. This research analyzes the current situation in police stations in the state of Tocantins, especially in the city of Guaraí-TO.

Keywords: accumulation; caution; Police Stations; destination; vehicles.

INTRODUÇÃO

Da análise empírica e prática acerca da gestão, guarda, depósito, restituição ou destinação de bens nas delegacias do Estado do Tocantins, especificamente em relação a veículos - automotores (motocicletas, carros, caminhões) ou não automotores (semirreboques) -, é possível notar a dificuldade dos gestores das unidades policiais em obter soluções práticas e céleres para o saneamento e esvaziamento dos pátios (ou logradouros públicos, na ausência ou lotação daqueles).

A questão vai além da ausência de espaço físico nas delegacias, partindo-se para a necessidade de prestação de um serviço público com eficiência, vez que tais objetos, além de demandarem local amplo para o devido acondicionamento, necessitam, sobretudo, de rápida destinação, a fim de se evitar o ciclo vicioso de superlotação de pátios.

A realidade local, também recorrente em todo o território brasileiro, demonstra que as apreensões de veículos de pequeno, médio e grande porte são reiteradas, em contraposição à destinação destes mesmos bens, que, além de demandarem diligências complexas, exigem tempo razoável para a gestão.

Além das causas ordinárias já conhecidas, tais como a morosidade do trâmite dos procedimentos policiais e da respectiva análise do destino dos objetos apreendidos, outras, como a ausência da assunção de responsabilidade na cautela destes bens pelos demais órgãos e poderes inseridos no sistema de persecução penal, e até mesmo a existência de normativas defensivas (v.g: aquelas que visam dificultar o recebimento dos bens) acabam gerando sérios entraves à solução eficaz do problema.

METODOLOGIA

O estudo se concentra na análise das apreensões de veículos no âmbito da 48ª Delegacia de Polícia – Guaraí-TO nos últimos 05 (cinco) anos, visando obter um “panorama piloto” das situações recorrentes de destinação e, sobretudo, daquelas em que é impossível dar destinação célere aos veículos após não mais interessarem à investigação ou ao processo penal, tomando por parâmetro a situação presenciada nas delegacias de todo o país, com grande volume de apreensão de veículos, sobretudo nas delegacias especializadas (DERFVA’s3, etc.) e nas cidades onde o número de custódia deste tipo de bem é elevado em razão de diversos fatores (sede de PRF4; sede de Regional/Circunscricional; cidades localizadas em rodovias muito movimentadas; etc.).

Além da análise das casuísticas majoritárias (impossibilidade de restituição pelo não encontro do proprietário de direito, pela não identificação pericial do objeto original e outras), busca-se melhor compreensão da noção equivocada de responsabilidade integral dos gestores das delegacias (delegados e chefes de cartórios policiais), com o escopo de se perquirir acerca da responsabilidade de gestores de outros órgãos e entes (juízes, promotores, etc.) a partir da análise das normas (legais e infralegais) que versam sobre o caso.

FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

Tendo em vista a objetividade deste trabalho, cumpre de plano especificar a que título veículos automotores costumam permanecer apreendidos por longo período de tempo nas delegacias.

As seguintes causas podem ser mencionadas como as principais: a) veículos empregados na atividade ilícita de tráfico de drogas (crimes da Lei 11.343/06); b) veículos produtos de furto (art. 155, do CP5) ou roubo (art. 157, do CP); c) veículos oriundos do crime de receptação (art. 180, do CP); e, por fim: d) aqueles cujos sinais identificadores foram adulterados (art. 311, do CP6).

Acerca da derradeira causa mencionada como fundamento para a apreensão de veículos (alínea “d” – art. 311, CP), reputa-se esta como a mais importante, pois, além de se apresentar de modo singular (veículo apreendido por estar com os sinais identificadores modificados ou suprimidos), não raramente está conjugada com quaisquer outras causas (alínea “a”: tráfico de drogas; alínea “b”: furto ou roubo, e, sobretudo, com as da alínea “c”: receptação).

Assim, veículos empregados no tráfico ilícito de drogas, produtos de roubo e furto, mas, sobretudo, os receptados, de modo reiterado, costumam ser apreendidos com os sinais adulterados (número de chassis, motor, placa, ou quaisquer outros sinais tidos como identificadores).

O problema da superlotação de pátios e logradouros públicos perpassa diversas situações: veículos com dispensa expressa ou tácita do proprietário em retirar seu veículo pelo acúmulo de débitos tributários e/ou administrativos; aqueles cujos proprietários estão em local incerto e não sabido; os oriundos de financiamento, em que a instituição financeira não diligencia a retirada; os salvados com a costumeira demora das seguradoras, etc.

Mas a ênfase deste trabalho em relação aos veículos adulterados (art. 311, do CP) se justifica na medida em que estes exigem diligências mais complexas, notadamente, um exame técnico-pericial, a fim de se identificar o veículo verdadeiro (“por trás” daquele bem adulterado), e cujo resultado do laudo nem sempre é exitoso.

Deste modo, observa-se que no universo de veículos apreendidos há os que não têm adulteração dos sinais identificadores e aqueles que a possuem.

Em relação aos não adulterados, por já serem identificáveis de plano, as diligências para dar destinação a tais bens ordinariamente costumam ser mais simples, embora encontrar os proprietários nem sempre resulta em diminuição do número de veículos nos pátios e delegacias.

No que se refere aos veículos adulterados uma situação um tanto mais difícil se apresenta, pois, de imediato, já se coloca uma diligência mais complexa: “perícia de identificação de veículo automotor” - a exigir peritos com conhecimentos específicos, sendo estes profissionais escassos, motivando ainda mais a mora inicial em se identificar o veículo apreendido.

Em tais casos há a necessidade de um lapso razoável para a confecção do laudo, gerando ainda mais demora nas apreensões – no Estado do Tocantins de 02 (dois) a 03 (três) meses aproximadamente.

Por derradeiro, apresentado o laudo de identificação veicular, podem se verificar basicamente as seguintes conclusões: i. veículo não adulterado (raramente); ii. veículo adulterado e identificado; e iii. veículo adulterado e não identificado.

Ainda, o fato de obter a identificação do veículo não necessariamente implica em solução da apreensão com a intimação do proprietário para a restituição, tanto pelos motivos já mencionados alhures, quanto em razão da possibilidade de o proprietário já ter sido indenizado, simplesmente não ter interesse em recuperá-lo, ou por se tratar de objeto “finan” (com financiamento não pago), etc.

Antes de prosseguir, aqui vale uma observação relevante: nos casos envolvendo veículos, tanto no inquérito quanto no processo penal, tais bens somente interessam ao procedimento enquanto não periciado cabalmente.

Assim, realizada a perícia de constatação e avaliação e, em havendo necessidade, a de identificação de sinal identificador, o bem não mais interessará à persecução após a emissão do(s) laudo(s).

Por óbvio, não se está aqui a discutir a respeito de futuros entraves jurídicos a respeito da propriedade/posse ou outro direito real envolvendo o bem, mas, tão somente, do interesse diretamente relacionado à persecutio criminis.

Portanto, emitido(s) o(s) laudo(s) mencionado(s), o bem não mais será necessário à seara criminal para fins instrutórios, podendo e devendo ser, se possível, restituído “por não mais interessar ao processo” nos termos do art. 118, do CPP (Código de Processo Penal) 7.

Contudo, apesar desta aparente facilidade em restituir os veículos apreendidos e identificados, a rotina policial revela dificuldades enormes no sentido de se dar um rápido destino para eles, haja vista a dificuldade de lograr encontrar o proprietário, e, não raras vezes de, encontrando-o, convencê-lo a retirar o bem. Adiciona-se a isso a demora das seguradoras e financeiras para a retirada dos veículos de suas respectivas propriedades.

Findado o inquérito policial, com o relatório final de indiciamento ou com sugestão de arquivamento, e tendo a mesma sorte da denúncia ou do pleito de arquivamento do Ministério Público, sempre com a decisão ulterior do Judiciário (recebendo ou rejeitando a denúncia ou o pedido de arquivamento), os objetos seguem sob a responsabilidade/cautela das delegacias. Nesse sentido, o delegado Mauro Cabral da Cunha Filho mencionou em artigo publicado no site do Conjur:

Na prática, o Poder Judiciário recebe o inquérito policial devidamente concluído, mas pouquíssimas vezes recebe os bens apreendidos durante a investigação, deixando-os sob as expensas e guarda das unidades policias. Como a resolução dos conflitos geralmente se arrasta por anos no Brasil, o resultado é delegacias abarrotadas de bens que terminam se deteriorando (perdendo valor), "envelhecendo", e ficando sem condições de uso, gerando ainda altos custos de manutenção para os entes públicos8.

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O autor menciona “bens”, mas no tocante a “veículos” apreendidos no Estado do Tocantins a situação se mostra ainda pior, pois, além da assertiva acima se repetir neste ente federativo, piora-se a situação das delegacias com a existência de normativa da Corregedoria do Tribunal de Justiça “ordenando” que os bens permaneçam sob a guarda da SSP-TO (Secretaria de Segurança Pública do Estado do Tocantins). Assim dispõe – Provimento 002/2023 – CGJUS9:

Art. 591. Os veículos, embarcações, aeronaves e quaisquer outros meios de transporte não serão recebidos pelos órgãos do Poder Judiciário, ficando sua guarda a cargo da Secretaria de Segurança Pública, adotando-se os mesmos procedimentos descritos para as coisas apreendidas em geral10. (grifo nosso)

RESULTADOS E DISCUSSÕES

Do exposto, nota-se dificuldades imensas na gestão dos veículos apreendidos nas delegacias, de modo que o problema revela diversas causas, dentre elas o famigerado acúmulo de serviço nas delegacias, associada à reiterada dificuldade de encontrar pessoas (físicas ou jurídicas) em condições de receber estes bens.

Ainda, há a demora em se obter os laudos de identificação veicular e as hipóteses em que, embora expedido o laudo, o veículo é “adulterado e não identificado”, passando a ser caracterizado como sucata inservível e passível de leilão, não havendo nesses casos pessoas em condições de proceder à retirada do veículo.

As normas que versam sobre veículos não identificados ou sobre aqueles identificados, mas que não se logrou encontrar pessoas aptas à restituição, dispõem sobre prazos para se reaver o bem, e, transcorrido o tempo estatuído, o veículo deve ser leiloado ou doado.

Contudo, tais procedimentos de leilão e doação necessitam ser instrumentalizados no âmbito do Judiciário ou do órgão de trânsito, o que ocasiona mais tempo hábil para tais diligências (quando estas são realizadas).

Assim, justifica-se a superlotação de veículos nas delegacias, pois, durante o lapso entre a apreensão do veículo e sua futura (e eventual) destinação, longo prazo transcorre e o nível altíssimo de apreensões continua a ocorrer.

Por fim, verifica-se que o órgão que deveria solucionar a questão, no caso o Poder Judiciário, ao invés de auxiliar da melhor maneira possível, sobretudo considerando se tratar de um problema geral e de sua responsabilidade sobre todo o acervo de material que acompanha a ação penal, edita normas defensivas, omitindo-se de seu dever.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Com base em todo o exposto verifica-se que a solução da questão relacionada à apreensão de veículos nas delegacias e do consequente abarrotamento dos pátios (pejorativamente, mas justamente denominados cemitérios de automóveis) perpassa diversas questões que ultrapassam as atribuições da autoridade policial.

Deste modo, somente uma solução conjunta entre os Poderes instituídos poderá ser capaz de solucionar de modo efetivo este problema, propondo-se alterações legislativas e administrativas no sentido de dar celeridade à destinação final de tais objetos.

REFERÊNCIAS

CAVALCANTI FILHO, Mauro Cabral da Cunha. Veículos apreendidos nas delegacias e a Resolução 356 do CNJ, 2020. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-dez-22/opiniaoi-veiculos-apreendidos-delegacias-resolucao-356-cnj. Acesso em: 14/09/2023.

CNJ. Conselho Nacional de Justiça. Resolução nº 356, de 27/11/2020. Dispõe sobre a alienação antecipada de bens apreendidos em procedimentos criminais e dá outras providências. Disponível em: https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/3601. Acesso em 11/09/2023.

GODINHO, André. Eficiência e a alienação antecipada de bens apreendidos. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-dez-01/godinho-eficiencia-alienacao-antecipada-bens-apreendidos. Acesso em: 11/09/2023.

CNJ. Conselho Nacional de Justiça. Manual de Bens Apreendidos. Disponível: https://bibliotecadigital.cnj.jus.br/jspui/bitstream/123456789/348/1/Manual%20de%20Bens%20Apreendidos.pdf. Acesso em 13/10/2023.

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO TOCANTINS. Provimento Nº 2 - CGJUS/ASJCGJUS. Institui a Consolidação das Normas dos Serviços Judiciais da Corregedoria-Geral da Justiça do Estado do Tocantins. Disponível em: https://wwa.tjto.jus.br/elegis/Home/Imprimir/3370. Acesso em 11/09/2023.

HOFFMAN MONTEIRO DE CASTRO, Henrique. Poder de apreensão do Delegado é necessário à investigação criminal. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2016-out-04/academia-policia-poder-apreensao-delegado-necessario-investigacao criminal#author. Acesso em 13/10/2023.


  1. ...

  2. ...

  3. DERFVA’s: Delegacias Especializadas em Roubos e Furtos de Veículos Automotores.

  4. Polícia Rodoviária Federal.

  5. CP: Código Penal:

  6. A Lei 14.562 de 2023 alterou o tipo penal em comento (Art. 311, do CP) de modo a torná-lo bem mais abrangente. Uma das alterações se refere ao abando da elementar “automotor” de modo a incidir, de agora em diante, sobre a adulteração de sinal de outros tipos de veículos abrangidos pelo Código de Trânsito Brasileiro – CTB, tais como os semirreboques (carretas, bitrens,e rodotrens);

  7. Todavia, não pode descurar o operador do direito (no caso o Delegado e o Juiz de Direito) de acautelar o bem da melhor forma possível, evitando-se, p.ex., restituir o bem ao possuidor de má-fé, ao proprietário de direito (aquele que tem o nome registrado como proprietário do veículo) que já recebeu o valor do seguro, ao receptador ou ao autor do crime de furto/roubo, ao que deu calote na financeira, etc.

  8. https://www.conjur.com.br/2020-dez-22/opiniaoi-veiculos-apreendidos-delegacias-resolucao-356-cnj

  9. Corregedoria Geral de Justiça/

  10. https://wwa.tjto.jus.br/elegis/Home/Imprimir/3370

Sobre os autores
Tarsis Barreto Oliveira

Doutor e Mestre em Direito pela UFBA. Professor Associado de Direito da UFT. Professor Adjunto de Direito da UNITINS. Professor do Mestrado em Prestação Jurisdicional e Direitos Humanos da UFT/ESMAT. Membro do Comitê Internacional de Penalistas Francófonos e da Associação Internacional de Direito Penal.

Antonione Wandré de Araújo Neto

Delegado de Policial Civil no Estado do Tocantins. Especialista em Política e Gestão em Segurança Pública. Ex-assessor do Ministério Público do Estado de Goiás. Ex-advogado. Graduado pela Universidade Federal de Goiás.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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