Desastres ambientais em uma Sociedade de Risco

07/12/2023 às 10:32
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Em 1986 o sociólogo alemão Ulrich Beck cunhou o termo sociedade de risco, onde o progresso é conquistado às custas de risco – quanto maior o progresso, maior o risco envolvido.

Para ele, o perigo passa por tudo que poderia opor resistência, e ninguém está preparado para lidar com as consequências da exploração da natureza pelo sistema industrial. A sociedade passa então a ameaçar a si mesma e “o acúmulo de poder do "progresso" tecnológico-econômico é cada vez mais ofuscado pela produção de riscos”1.

As florestas são desmatadas por séculos, tanto para criação de gado quanto para extração de madeira, bens exportados para outros países, o que equivale a dizer que se antes o desmatamento era centralizado em um país ou região, hoje está a nível global.

O rompimento da barragem de Mariana que ocorreu em 2015 foi provocado pelo rompimento da Barragem do Fundão, usada para guardar os rejeitos de minério de ferro explorados pela empresa Samarco, mineradora brasileira criada em 1977, controlada pela Vale S/A, maior produtora de minério de ferro, e pela anglo-australiana BHP Billiton. O Brasil é o segundo maior produtor mundial de ferro, perdendo apenas para China.

No desastre, a cidade de Bento Rodrigues desapareceu, foi soterrada pela lama e 39 municípios de Minas Gerais e Espírito Santo foram afetados, assim como o Rio Doce, mais de 2 mil hectares de terra se tornaram inutilizadas para o plantio, 14 toneladas de peixes mortos, 600 famílias desabrigadas, 19 mortos, 63 milhões de m3 de lama2.

Recentemente, acompanhamos o desastre ambiental em Maceió, episódio decorrente do colapso de uma mina de sal-gema explorada pela petroquímica Braskem. A empresa foi multada em mais de R$ 72 milhões de reais e a situação tem afetado inclusive sua venda para a Empresa Nacional de Petróleo de Abu Dhabi (Adnoc), que teme que o passivo ambiental aumente e complique a negociação3.

Ulrich Beck, sobre isso, vai dizer que ninguém está a salvo da sociedade de risco, tampouco aqueles que produzem e obtém lucro:

Com a distribuição e o incremento dos riscos, surgem situações sociais de ameaça. Estas acompanham, na verdade, em algumas dimensões, a desigualdade de posições de estrato e classe sociais, fazendo valer entretanto uma lógica distributiva substancialmente distinta: os riscos da modernização cedo ou tarde acabam alcançando aqueles que os produziram ou que lucram com eles. Eles contêm um efeito bumerangue, que implode o esquema de classes. Tampouco os ricos e poderosos estão seguros diante deles. Isto não apenas sob a forma de ameaças à saúde, mas também como ameaças à legitimidade, à propriedade e ao lucro: com o reconhecimento social de riscos da modernização estão associadas desvalorizações e desapropriações ecológicas, que incidem múltipla e sistemicamente a contrapelo dos interesses de lucro e propriedade que impulsionam o processo de industrialização4.

Em Maceió estima-se que aproximadamente 50 mil pessoas foram prejudicadas e 14 mil imóveis precisaram ser evacuados, podendo afetar outras minas, formando uma cratera que caberia no estádio do Maracanã5.

Assim, as empresas consideradas fontes de riqueza para o país também se tornam fontes de problemas, danos, mortes, sofrimento, riscos.

Os episódios até aqui relatados dão a impressão de que os possíveis riscos de tais acontecimentos nunca foram estudados cientificamente, a fim de serem manejados, evitados, corrigidos. Todos os casos parecem exteriorizar que enquanto a tragédia não acontece, os riscos não existem.

Essa zona de penumbra, que desconhecemos, gera incertezas, além de catástrofes. Apenas tomamos conhecimento quando ocorre.

Como menciona Ulrich Beck: “Em última instância, ninguém é capaz de conhecer os riscos, enquanto conhecer quiser dizer tê-los deliberadamente experimentado”6.

Os riscos são frutos de ações e omissões humanas ocorridas ao longo dos anos. A diferença é que na sociedade de risco, os riscos são produzidos pela própria sociedade, o que dificulta a reação e o controle do risco.

Com o estabelecimento da sociedade industrial, dois processos opostos de organização da transformação social interpenetram-se - a produção da democracia político-parlamentar e a produção de uma transformação social apolítica e não democrática, sob as regras de legitimação do "progresso" e da "racionalização". Ambos se relacionam mutuamente como modernidade e antimodernidade: por um lado, as instituições do sistema político - parlamento, governo, partidos políticos - promovem, condicionados funcional e sistematicamente, o ciclo de produção composto por indústria, economia, tecnologia e ciência. Por outro lado, a alteração contínua de todos os âmbitos da vida é pré-programada desse modo como um manto justificatório do progresso técnico-econômico, em contradição com as regras mais simples da democracia - informação sobre as metas de transformação social, discussão, escrutínio, consentimento7.

O sistema político democraticamente eleito, em nome da modernização e progresso, sofre limitações de fortes grupos corporativos e influentes.

A sociedade de risco traz inúmeros riscos, mas também oportunidades. Para Ulrich Beck haverá sempre “perdedores do risco” e “ganhadores do risco”, que irão possibilitar o exercício do poder político.

Certo é que não é possível aceitar a resposta de imprevisibilidade dos efeitos das operações realizadas pelas empresas. Os efeitos são criados e devem ser calculados.

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À parte isso, é urgente a discussão de projetos, pesquisas, alternativas aos riscos empregados em determinadas atividades. A participação de pessoas especializadas é imprescindível, assim como da população que poderá ser afetada com os riscos empregados nessas atividades empresariais.

Garantias jurídicas devem ser reforçadas, tribunais fortes e independentes são o arrimo de uma sociedade em tais episódios, bem como uma participação política robusta, que objetive evitar e estar preparada para essas catástrofes, que podem vir a tornarem-se o novo “normal”.

“Passamos a viver em meio aos efeitos colaterais de uma civilização - a modernidade capitalista industrial - que regurgitou e saiu dos trilhos, voltando-se contra si própria e escapando dos controles que visam ordená-la”.8


  1. BECK, Ulrich. Sociedade de Risco: rumo a uma outra modernidade. São Paulo: Editora 34, 2010 p.15.

  2. BEZERRA, Juliana. Desastre de Mariana. Toda Matéria[s.d.]. Disponível em: https://www.todamateria.com.br/desastre-de-mariana/. Acesso em: 6 dez. 2023

  3. ROSA, Silvia. Como desastre ambiental em Maceió afeta a venda da Braskem. Portal Valor Econômico. Seção Pipeline. São Paulo, 04/12/2023. Disponível em: https://pipelinevalor.globo.com/negocios/noticia/como-desastre-ambiental-em-maceio-afeta-a-venda-da-braskem.ghtml. Acesso em 6 dez.2023.

  4. BECK, Ulrich. Sociedade de Risco: rumo a uma outra modernidade. São Paulo: Editora 34, 2010 p.27.

  5. SEIXAS, Josué. 'Vocês precisam sair ou serão presos': as famílias obrigadas a deixar suas casas por risco de colapso de mina da Braskem em Maceió. Portal BBC News Brasil. Maceió, 1/12/2023. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/articles/clwpp1j093jo . Acesso em 6 dez. 2023.

  6. BECK, Ulrich. Sociedade de Risco: rumo a uma outra modernidade. São Paulo: Editora 34, 2010 p.88.

  7. Op.Cit. p.277.

  8. Op. Cit. p.2.

Sobre a autora
Ana Carolina Rosalino Garcia

Advogada graduada em Direito pela Universidade Paulista (2008). Membro da Ordem dos Advogados do Brasil, Secção São Paulo desde 2009. Pós-graduada em Direito Civil e Processo Civil pela Escola Paulista de Direito (EPD). Possui MBA em Administração de Empresas com Ênfase em Gestão pela Fundação Getúlio Vargas - FGV / EAESP - Escola de Administração de Empresas de São Paulo. Pós-graduada em Direito Público pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS).

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