Propriedade Intelectual e as Inteligências Artificiais

18/09/2023 às 00:41
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  1. A inteligência artificial e sua inserção na sociedade contemporânea

A evolução histórica da tecnologia é impressionante. Seu início, compreendido a partir da terceira revolução industrial, em 1950, continua até os dias atuais. Desde a entrada da computação em âmbito global e sua expansão, nos anos 2000, após a quarta revolução industrial, que trouxe consigo os sistemas ciber-físicos, os avanços não pararam mais. A tecnologia rege as sociedades atuais. Não há como se falar em evolução sem citar que grande parte desse processo se deu mediante o uso de ferramentas tecnológicas.

Sob esse contexto, surgem novas formas tecnológicas, entre elas, a inteligência artificial - IA.  Inteligência artificial é a ciência e engenharia de fazer máquinas inteligentes, especialmente programas de computador inteligentes. Está relacionado com a tarefa semelhante de usar computadores para entender a inteligência humana, mas a IA não precisa limitar-se a métodos que são biologicamente observáveis (Villas, 2017).

Nota-se que a IA, por ser um fruto do desenvolvimento humano e tecnológico, apresenta-se, cada vez mais, como um componente fundamental no desenvolvimento das sociedades contemporâneas. A partir disso, faz-se primordial a análise de como a inteligência artificial atua como uma catalisadora do progresso tecnológico mundial. 

Na era dos algoritmos, cada vez mais, as decisões que afetam as nossas vidas - como qual escola estudar, se podemos ou não fazer um empréstimo, quanto pagamos por um plano de saúde - não são tomadas por humanos, e sim por algoritmos (O’Neil, 2016).

De tal modo, uma vez que a sociedade está inserida em um contexto algorítmico, faz-se imprescindível o desenvolvimento de tecnologias capazes de acompanhar o progresso humano e, até mesmo, impulsioná-lo. Nesse contexto, cabe destacar, pois, que a IA possibilita, por exemplo, que máquinas aprendam com experiências, se ajustem a novas entradas de dados e executem tarefas como seres humanos. Tais ações ocorrem mediante o processo de machine learning, que se expressa pela habilidade de acumular experiências próprias de reiteradas tarefas utilizando um algoritmo para extrair aprendizado (Goldberg & Holland, 1988).

É devido a esse processo de machine learning que hoje possibilidades nunca imaginadas podem ser aplicadas. A tecnologia surge no cotidiano dos indivíduos para auxiliá-los. Sua gama de aplicações cada vez mais cresce e preenche cenários em que muitas vezes nem é pensada sua inserção.

Seja na produção de armas, seja no desenvolvimento de aspiradores inteligentes ou na criação de foguetes, a Inteligência Artificial se faz presente. É inegável que as IAs são catalisadores do progresso social e tecnológico mundial.

Segundo Russel e Norvig (1995), as definições de IA encontradas na literatura científica, podem ser agrupadas em quatro categorias principais: 

  • sistemas que pensam como humanos; 

  • sistemas que agem como humanos;

  • sistemas que pensam logicamente; e 

  • sistemas que agem logicamente.

Para além disso, destaca-se que tal tecnologia apresenta ramificações das quais destaca-se a técnica de Sistemas Especialistas (SEs). Os sistemas especialistas podem ser classificados conforme o problema ou para que finalidades são desenvolvidos. 

Destaca-se que entre suas categorias, pode-se citar sistemas de interpretação, diagnóstico, monitoramento, predição, planejamento, projeto, depuração, reparo, instrução e controle. A gama de atuação é enorme e tende a crescer cada vez mais. 

Tem-se que a IA é capaz de produzir trabalhos que, ainda que de modo superficial, são tidos como criativos. A principal questão em torno da IA ser criativa como um aspecto de ser inteligente diz respeito à definição de criatividade, que é um termo ambíguo (Ramalho, 2017). Na psicologia, a criatividade abrange novidades e adequação onde o produto ou processo criativo deve ser novo e valioso (Kampylis, 2010).

Entretanto, esses termos são usados de forma vaga, não deixando claro qual o grau em que um produto deve ser novo e valioso para ser considerado criativo (Boden, 2009). Na criatividade computacional, para que uma IA seja considerada criativa, ela precisa buscar soluções que não sejam replicações de soluções anteriores, e também precisam buscar soluções aceitáveis para a tarefa que propõe (Mccutcheon, 2012).

Exposto isso, surgem dois questionamentos principais. Indaga-se, a priori, se seria possível atribuir autoria artística a uma inteligência artificial. Para além disso, é necessário apontar quais são as implicações disso para a legislação brasileira e mundial, perpassando, no decorrer disso, o desproporcional avanço entre o Direito e a tecnologia.

  1. Propriedade intelectual vs. Inteligência artificial

De modo geral a propriedade intelectual abrange os direitos do autor e conexos, a propriedade industrial e sui generis, sofrendo forte impacto das tecnologias e levantando discussões acerca de pontos que a legislação vigente ainda não deu conta de tratar com clareza e acompanhamento na mesma velocidade em que ocorrem as mudanças provocadas por essas tecnologias (Marques, 2020).

Nesse sentido, questiona-se como lidar com os desafios da propriedade intelectual inserida no contexto das inteligências artificiais? O que se observa é um descompasso entre o avanço das tecnologias e as legislações responsáveis pela regulação de tal direito. 

A estrutura legal ainda não está pronta e a tecnologia não está avançada o suficiente para conceder a autoria de uma obra de arte a uma pessoa virtual. Uma IA não tem intenção e está longe de ter uma liberdade inventiva ou capaz de fazer  criações do espírito, ao contrário do que é apresentado nos filmes hollywoodianos. 

É inegável que a tecnologia gerou novos desafios para o Direito. Se por um lado pode-se observar um campo de constantes mudanças e inteligências artificiais, por outro, tem-se o âmbito jurídico, que se porta de modo mais constante se comparado à esfera tecnológica. As questões se dão, pois, mediante a análise de como se lidar com a propriedade intelectual e a responsabilidade civil no meio digital, em específico ao se tratar de tecnologias autônomas capazes de produzir obras inteiramente novas (Bettio, 2022). 

Nesse sentido, as criações de IA que são completamente autônomas de qualquer aporte humano, pode ser difícil discernir um ser humano que seria responsável pelos arranjos mais adiante da cadeia. A escala de autonomia das IAs parece funcionar em termos inversamente proporcionais à aplicabilidade do regime de trabalhos gerados por computador: quanto mais autônomos forem as IAs, menos provável a aplicabilidade do regime, devido à falta de intervenção humana. As provisões sobre obras geradas por computador não parecem ser uma solução para IAs, e mesmo quando elas são uma solução para IAs menos autônomas, não está claro quem é a pessoa responsável pela criação (Ramalho, 2017).

Assim, não haveria como culpabilizar, de forma clara, quem é o indivíduo responsável pelas ações de uma Inteligência Artificial, principalmente por essa ser autônoma. 

As justificativas para a concessão de proteção de direitos autorais ou solicitação de patente não se encaixam muito bem nas criações de IAs e na questão de considerar uma IA um sujeito da lei, devido às características como tomada de decisão autônoma, capacidade de aprender da experiência, memória, planejamento, complexidade, formalidade e capacidade de mapear estruturas as IAs possuem características típicas de entidades que possuem a capacidade de atuação, ou seja, elas devem estar sujeitas a obrigações impostas pelo seu estatuto jurídico (Souza & Jacoski, 2018).

Para que IAs possam ter obrigações, é necessário que os desafios gerados por essa tecnologia sejam enfrentados. O questionamento continua, um computador poderia ser responsabilizado caso violasse obrigações jurídicas? O que se observa é algo ainda não compreendido pelo Direito atual.

Se entre indivíduos do meio tecnológico tal ponto possui uma vasta gama de opiniões divergentes, como delimitar as obrigações de uma Inteligência Artificial? Novamente, o que se tem é o entendimento de que as formas de proteção atual não se fazem efetivas em se tratando de assegurar o direito ao responsável, caso uma criação artística seja produzida por uma inteligência artificial. 

Uma solução para o confronto entre IA e a Propriedade Intelectual é, como trabalham Souza & Jacoski (2018), um modelo de domínio público para criações de IAs.

O domínio público é o caminho alternativo natural para a privatização, mas, mais do que isso, colocar criações de IAs no domínio público permite a criação de novos conhecimentos e acesso mais fácil à informação, para citar apenas algumas vantagens (Souza & Jacoski, 2018).

Entretanto, indaga-se se tal modelo seria o mais adequado no tocante ao confronto entre Propriedade Intelectual e IAs.

Em nações como os Estados Unidos, a União Europeia e a Austrália, o posicionamento frente às obras criadas por I.A. é de que não poderão ser registradas em nome destas, pois os direitos autorais pertencem à pessoa física. Em contrapartida, na China, a corte da cidade Shenzhen decidiu em benefício da empresa de tecnologia Tencent, decidindo que a inteligência artificial chamada de Dreamwriter (que escreve notícias sobre finanças e esportes) é a real autora do conteúdo criado.

O espaço em branco na legislação, gera inclusive prejuízos econômicos para as empresas que decidem investir em tais tecnologias, uma vez que as obras imateriais provenientes de uma inteligência artificial ainda não possuem um regramento específico que as proteja e têm o grande risco de serem reproduzidas por outras empresas, pessoas e organizações, inclusive no mesmo segmento (Bettio, 2022).

Para análise da legislação nacional sobre o assunto, cabe transcrever os artigos 7º e 11º da Lei de Direitos Autorais (Lei 9.610/98):

Art. 7º São obras intelectuais protegidas as criações do espírito, expressas por qualquer meio ou fixadas em qualquer suporte, tangível ou intangível, conhecido ou que se invente no futuro, tais como:

(…)

Art. 11. Autor é a pessoa física criadora de obra literária, artística ou científica.

(…)

Deste modo, apesar de a expressão “criações do espírito”, trazer em si, a possibilidade de uma interpretação ampla para abarcar obras realizadas com a inteligência artificial, o artigo 11, do diploma legal citado, é muito claro ao explicitar que o autor é uma pessoa física, portanto, deve ser um humano, em termos biológicos.

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O referido ponto é sensível, pois, em decorrência da interpretação acima, podemos concluir que em um primeiro momento e com análise à legislação vigente, as obras criadas exclusivamente por inteligência artificial, não teriam proteção legal, portanto, estariam sob o domínio público.

Porém, ao tomarmos essa postura, haverá um grande enfraquecimento do desenvolvimento de inovações no campo da inteligência artificial. Causaremos, assim, a ausência de novos investimentos no campo do deep learning, visto que não haveria interesse pecuniário sobre o resultado final.

A legislação comparada pode ser uma alternativa. Segundo o Copyright, Designs and Patents Act, no Reino Unido, “nos casos de criação de trabalhos literários, dramáticos, musicais ou artísticos por computadores, o autor será a pessoa que fez os arranjos necessários para a criação da obra em questão”. Ou seja, a propriedade intelectual é atribuída a uma pessoa física que possibilita a criação da obra pelo computador, não à máquina, podendo o autor ser o programador ou mesmo alguém que inseriu dados ou definiu diretrizes que levaram à criação da obra tal como se deu.

Por outro lado, a IA é também uma aliada de órgãos regulamentadores de propriedade intelectual. 

A WIPO tem explorado o uso de AI para agilizar o processo de registro de patentes, e também pretende usar a tecnologia na busca em base de dados, por meio do reconhecimento de fotos, padrões, etc.

Para Francis Gurry, ex-diretor geral da WIPO, o volume de solicitações é o principal fator de incentivo ao uso de inteligência artificial na administração de propriedade intelectual. Ele acredita que ferramentas de AI aumentam a qualidade do processo. 

Apesar dos desafios e complexidade que a inteligência artificial pode trazer para a propriedade intelectual, essa é uma discussão necessária e urgente. A AI seguirá evoluindo, e as leis e regras precisam ser adequadas à realidade de um mundo tecnológico.

  1. Conclusão

A tecnologia em conjunto com a internet elencou novas questões e desafios para o Direito. De um lado, a existência de computadores digitais denominados Inteligência Artificial capazes de agir de forma autônoma. De outro, os clássicos campos do Direito, em especial a propriedade intelectual e a responsabilidade civil oriunda desses atos. 

Não há como realizar a abordagem de qualquer tema envolvendo Inteligência Artificial sem as diretrizes da intenção inventiva, ou seja, a liberdade e vontade de realizar uma nova obra independente da atuação humana. 

Dessa forma, aos materiais oriundos de atos autônomos de IA atribui-se sua titularidade ao seu desenvolvedor/criador/programador, já que aparentemente inexiste inteligência em computadores digitais e, consequentemente, processos mentais intencionais. Ainda que a legislação brasileira assim não aborde do assunto, inspirar-se nas diretrizes europeias seria válido. Passo contrário seria a criação de um estatuto jurídico próprio para IA, vez que tal atitude não reflete eficazmente a compostura com a realidade.

Notadamente nossa legislação, doutrina e jurisprudência ainda precisam evoluir muito para resolver os problemas atuais que surgem em conjunto com o avanço da inteligência artificial.

No Brasil, seria necessária uma alteração na legislação vigente, ou mesmo, uma legislação própria que regule os direitos autorais (e direitos conexos) provenientes da inteligência artificial.

Referências:

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DI BLASI, Gabriel. Como o empreendedor deve entender a propriedade intelectual: a importância da proteção de direitos de propriedade intelectual para empreendedores que inovam. Endeavor, São Paulo, 2014. Disponível em: https://endeavor.org.br/como-o-empreendedor-deve-entender-a-propriedade-intelectual/. Acesso em: 17 set. 2023.

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KAMPYLIS, Panagiotis G.; VALTANEN, Juri. Redefining Creativity - Analyzing Definitions, Collocations, and Consequences. The Journal Of Creative Behavior, [S.L.], v. 44, n. 3, p. 191-214, set. 2010. Wiley. http://dx.doi.org/10.1002/j.2162-6057.2010.tb01333.x

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VILLAS, Marcos. Inteligência Artificial e a Indústria 4.0. 2017. Disponível em: https://tiinside.com.br/27/07/2017/inteligencia-artificial-e-industria-4-0/. Acesso em: 17 set. 2023.

Sobre o autor
Keiffer Becker

Possuo graduação em Direito pela Universidade do Sul de Santa Catarina - UNISUL. Pós-graduado em Direito Empresarial pelo Escola Brasileira de Direito - EBRADI. Fui membro titular da Comissão de Direito Securitário da Ordem dos Advogados do Brasil Seccional de Santa Catarina. Sou o atual presidente da Comissão de Direito Administrativo, Vice-presidente da Comissão de Moralidade Pública e membro da Comissão de Negócios Internacionais, Tecnologia e Investimentos em Startups, todas da OAB Subseção Palhoça. Tenho experiência nas áreas do Direito Empresarial, Propriedade Intelectual, Contratos, e atuação efetiva em demandas complexas de Direito Administrativo e Direito Público em geral.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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