Aspectos da Encíclica Rerum Novarum (1891) que influenciaram o Direito do Trabalho

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No presente artigo, apresentaremos um breve resumo dos principais aspectos da Encíclica Rerum Novarum do Papa Leão XIII, de 1891, que influenciariam o Direito do Trabalho. Conforme aponta o professor José Roberto de Castro Neves em seu livro Como os Advogados Salvaram o Mundo, “a importância da Rerum Novarum faz-se sentir até os nossos dias. (...) Seus valores se espalharam imediatamente pelo mundo, que, já naquele momento, precisava de orientação a fim de atenuar a exploração ao trabalhador” (NEVES, 2018: 260).

É interessante observarmos que Leão XIII era um padre com formação jurídica, dando à Encíclica inclusive o que José Roberto de Castro Neves chama de uma “formatação legal”. Nascido em 1810, seu pontificado se estendeu de 1878 até sua morte, em 1903. Neste período, a Revolução Industrial deixava seus efeitos ainda mais evidentes, os trabalhadores sofriam a chamada exploração capitalista e crescia o Socialismo como alternativa política angariando simpatia dos operários.

Leão XIII nesta Encíclica irá então denunciar a ganância de alguns, a vil exploração de outros e ainda refutar o Socialismo e a alternativa da supressão da propriedade privada, pois tal supressão iria contra a Justiça, uma vez que, segundo a Encíclica, a propriedade privada seria um direito natural. A Encíclica Rerum Novarum adota um tom conciliatório e busca promover a caridade como solução para problemas sociais, além de uma melhor relação entre patrões e empregados (NEVES, 2018: 259).

A leitura da Encíclica Rerum Novarum nos permite uma reflexão sobre a condição dos operários naquele momento, bem como sobre as perspectivas em disputa acerca de possíveis soluções para a chamada questão social que passaria a existir no que se refere às relações de trabalho a partir do final do Século XIX.

           O documento aqui analisado é composto de 35 parágrafos e possui como subtítulo “Sobre a Condição dos Operários”. Ao longo desses parágrafos, o Papa Leão XIII expõe a existência de um conflito social, o crescimento do Socialismo, a importância da propriedade privada como algo justo, reflexões sobre a família e o Estado, o Comunismo como correspondente a um empobrecimento, a relação entre a Igreja e a Questão Social, a importância de em vez de luta de classes haver uma conciliação entre as classes, obrigações a que devem se subordinar patrões e empregados e a dignidade do trabalho. Além disso, aponta para a caridade como solução definitiva da questão social emergente.

           Iniciada com uma breve reflexão sobre a “sede de inovações” que havia se apoderado das sociedades, a Encíclica Rerum Novarum indica que resultaram em temível conflito

Os progressos incessantes da indústria, os novos caminhos em que entraram as artes, a alteração das relações entre os operários e os patrões, a influência da riqueza nas mãos dum pequeno número ao lado da indigência da multidão, a opinião enfim mais avantajada que os operários formam de si mesmos e a sua união mais compacta. (LEÃO XIII, §1)

Na sequência, no mesmo §1, a Encíclica aponta a dificuldade de se “precisar com exatidão os direitos e os deveres que devem ao mesmo tempo reger a riqueza e o proletariado, o capital e o trabalho” (LEÃO XIII, §1), ponderando sobre a excitação das multidões e o fomento às desordens por parte de “homens turbulentos e astuciosos”.

No parágrafo seguinte, Leão XIII trata das causas do conflito, denunciando a situação de infortúnio e miséria dos trabalhadores após a destruição das corporações antigas, que seriam uma proteção para esses trabalhadores. Além disso, se ressente no documento do desaparecimento das leis e das instituições públicas dos princípios e do sentimento religioso, somando a essas causas a existência de um pequeno número de ricos e opulentos diante de uma multidão de proletários.

Do terceiro ao quinto parágrafos, a Encíclica propõe uma reflexão sobre os socialistas e a propriedade privada, reclamando de o Socialismo instigar os pobres a um “ódio invejoso” contra a propriedade privada, o que, segundo a carta, seria sumamente injusto por violar os direitos legítimos dos proprietários e viciar as funções do Estado (LEÃO XIII, §3). No quarto parágrafo, para sustentar este argumento, ele explica que o trabalhador visa conquistar bens próprios, fazendo economias para adquirir bens, que são seus salários transformados. Por isso, o Socialismo lhe retiraria a possibilidade de os trabalhadores melhorarem sua situação com a aquisição de bens. Tal remédio, da coletivização da propriedade, no quinto parágrafo, é apontado como oposto à Justiça, por ser a propriedade um direito natural para os seres humanos, ainda se estendendo um pouco mais sobre a importância da terra para os homens, citando o versículo bíblico segundo o qual “Não desejarás a mulher do teu próximo, nem a sua casa, nem o seu campo, nem o seu boi, nem a sua serva, nem o seu jumento, nem coisa alguma que lhe pertença” (Deuteronômio, 5: 21).

Em seguida, entre o sexto e o trigésimo parágrafos, a Encíclica discorre sobre a família e o Estado, o comunismo, a igreja e a questão social, a conciliação das classes, a caridade, as greves e os salários. Considerando a família como sociedade anterior à sociedade civil, a Encíclica defende que o direito de propriedade deve ser assegurado pelo Estado ao chefe de família (LEÃO XIII, §6), sendo do pai o dever de alimentar e sustentar seus filhos e dos filhos o dever de cuidar dos pais, devem poder constituir patrimônio para se defenderem “na perigosa jornada da vida” contra as “surpresas da má fortuna”. Por isso, o documento defende a existência da propriedade privada e a transmissão por herança. O Estado deve auxiliar famílias em situação desesperada, ou intervir em famílias com graves violações a direitos mútuos, mas sempre protegendo os cidadãos e seus direitos e nunca usurpando suas atribuições, como o direito à propriedade. O Comunismo seria contra a Justiça Natural por substituir a providência paterna pela providência estatal.

“A teoria socialista da propriedade coletiva deve absolutamente repudiar-se como prejudicial àqueles membros a que se quer socorrer, contrária aos direitos naturais dos indivíduos, como desnaturando as funções do Estado” (LEÃO XIII, § 7). O bem do povo, segundo a Encíclica, é a inviolabilidade da propriedade particular. Por isso, uma vez que “o homem deve aceitar com paciência a sua condição: é impossível que na sociedade civil todos sejam elevados ao mesmo nível” (LEÃO XIII, §9) – com “diferenças de inteligência, de talento, de habilidade, de saúde, de força” – essa desigualdade se reverteria em proveito de todos “porque a vida social requer um organismo muito variado e funções muito diversas” (LEÃO XIII, §9). E sobre o trabalho:

Pelo que diz respeito ao trabalho em particular, o homem, mesmo no estado de inocência, não era destinado a viver na ociosidade, mas, ao que a vontade teria abraçado livremente como exercício agradável, a necessidade lhe acrescentou, depois do pecado, o sentimento da dor e o impôs como uma expiação: «A terra será maldita por tua causa; é pelo trabalho que tirarás com que alimentar-te todos os dias da vida» (GêNESIS 3:17) (...) Se há quem, atribuindo-se o poder fazê-lo, prometa ao pobre uma vida isenta de sofrimentos e de trabalhos, toda de repouso e de perpétuos gozos, certamente engana o povo e lhe prepara laços, onde se ocultam, para o futuro, calamidades mais terríveis que as do presente. O melhor partido consiste em ver as coisas tais quais são, e, como dissemos, em procurar um remédio que possa aliviar os nossos males. (LEÃO XIII, §9)

 

           Por esta razão seria um erro crer na inimizade entre patrões e empregados, que se “adaptam maravilhosamente uns aos outros”, já que “elas [as classes] têm imperiosa necessidade uma da outra: não pode haver capital sem trabalho, nem trabalho sem capital. (...) A concórdia traz consigo a ordem e a beleza; ao contrário, dum conflito perpétuo só podem resultar confusão e lutas selvagens.” (LEÃO XIII, §9)

           Para tanto, a Encíclica defende respeito ao pobre e ao operário, tendo sua dignidade respeitada pelos patrões, sendo desumano usar os homens como instrumentos de lucro ou em desarmonia com sua idade ou sexo (LEÃO XIII §10). Isso significaria a obrigação dos patrões de darem o salário que convém ao trabalhador. Além disso, em diferentes passagens, por exemplo, no §11 e no §16, a importância da caridade cristã é evocada e, no §13, a dignidade do trabalho é mais uma vez referida, com fundamentação bíblica, retornando a Encíclica ao Estado no §17 para, no §18, voltar à defesa da propriedade como direito natural, sob o fundamento tomista da citação da Summa Teológica de São Tomás de Aquino, que diz que “Assim como a parte e o todo são em certo modo uma mesma coisa, assim o que pertence ao todo pertence de alguma sorte a cada parte” (SÃO TOMÁS DE AQUINO apud LEÃO XIII, §18), citação com a qual Leão XIII defende a caridade cristão, a conciliação de classes, a propriedade privada como direito natural de todos a ser assegurada pelo Estado e a importância de patrões respeitarem a dignidade dos trabalhadores e os trabalhadores conhecerem a dignidade do trabalho e a dignidade de sua condição como parte da sociedade, com suas desigualdades.

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           Defendendo que o governo é para os governados (LEÃO XIII, §19), sendo injusto o indivíduo ou a família serem absorvidos pelo Estado, que deveria ter limites à sua intervenção (LEÃO XIII, §20) e defender a propriedade privada (LEÃO XIII, §21), a Encíclica ainda defende que o Estado impeça as greves (LEÃO XIII, §22), que causam danos aos patrões e aos operários, ao comércio e aos interesses comuns da sociedade. Na mesma sequência, a Encíclica Rerum Novarum defende a necessidade de repouso festivo (LEÃO XIII, §24), para repouso consagrado à religião, para celebrar a majestade divina. Seria esta a fundamentação religiosa da existência de dias de repouso do trabalho.

           A Encíclica também defende que o número de horas de trabalho diário não exceda a força dos trabalhadores, que a quantidade de repouso seja proporcional à qualidade do trabalho e suas circunstâncias e à saúde dos trabalhadores, à compensação de certos trabalhos mais penosos com a sua duração mais curta (LEÃO XIII, §25). Além de não considerar equitativo a uma mulher e a uma criança o trabalho de um homem na força da idade. Às crianças, deveria ocupar sua educação. E às mulheres, as tarefas domésticas, para boa educação dos filhos e prosperidade da família (LEÃO XIII, §26),  com o “direito ao descanso de cada dia assim como à cessação do trabalho no dia do Senhor” devendo ser “a condição expressa ou tácita de todo o contrato feito entre patrões e operários”, pois não seria justo “exigir ou prometer a violação dos deveres do homem para com Deus e para consigo mesmo” (LEÃO XIII, §26).

           Sobre os salários, a Encíclica afirma que “acima da sua livre vontade está uma lei de justiça natural, mais elevada e mais antiga, a saber, que o salário não deve ser insuficiente para assegurar a subsistência do operário sóbrio e honrado” (LEÃO XIII, §27) e que será uma violência, contra a qual a Justiça protestará, um operário receber, constrangido pela necessidade, condições mais duras impostas pelos patrões. Contra intervenção do Estado no que diz respeito às horas de trabalho e à saúde dos operários, a Encíclica considera preferível que corporações ou sindicatos acompanhem tais condições, só recorrendo ao Estado se necessário for. Por isso, no §29 trata do benefício das corporações e das associações de socorro mútuo, que devem socorrer viúvas e órfãos em caso de morte, acidentes ou enfermidades.

           Chegando ao final da carta, após longa defesa de associações católicas e da Igreja, com fundamentação religiosa, entre o §30 e o §34, de que aqui não trataremos, a Encíclica traz no último parágrafo, o §35, uma defesa da caridade, a partir de uma conclamação de governantes, patrões, ricos, operários e da própria Igreja, para “arrancar o mal pela raiz”, isto é, o conflito social e a alternativa socialista:

Façam os governantes uso da autoridade protetora das leis e das instituições; lembrem-se os ricos e os patrões dos seus deveres; tratem os operários, cuja sorte está em jogo, dos seus interesses pelas vias legítimas; e, visto que só a religião, como dissemos no princípio, é capaz de arrancar o mal pela raiz, lembrem-se todos de que a primeira coisa a fazer é a restauração dos costumes cristãos, sem os quais os meios mais eficazes sugeridos pela prudência humana serão pouco aptos para produzir salutares resultados. Quanto à Igreja, a sua ação jamais faltará por qualquer modo, e será tanto mais fecunda, quanto mais livremente se possa desenvolver. (LEÃO XIII, §35)

           Leão XIII defende, por fim, a caridade como o mais seguro antídoto contra o orgulho e o egoísmo do século, terminando a Encíclica com uma citação de São Paulo, segundo o qual “a caridade é paciente, é benigna, não cuida do seu interesse; tudo sofre; a tudo se resigna” (SÃO PAULO apud LEÃO XIII, §35).

E, em resumo, pudemos conhecer de que modo, conforme pontuou José Roberto de Castro Neves (2018), a Encíclica Rerum Novarum é a base da Doutrina Social da Igreja, com uma defesa da dignidade do trabalhador, de sua folga, de seu descanso e de salários que o atendam em sua subsistência, embora ao mesmo tempo defenda a propriedade privada e se posicione contra a intervenção do Estado nas relações de trabalho e uma orientação política socialista que buscasse suprimir a propriedade privada, verdadeiro foco de defesa na Encíclica publicada em 15 de maio de 1891, Dia de São Isidoro, o lavrador, na tradição católica.

 

Referências

LEÃO XIII, Papa. Carta Encíclica Rerum Novarum: sobre a condição dos operários. Roma, 15 mai. 1891. disponível em: < http://www.vatican.va/content/leo-xiii/pt/encyclicals/documents/hf_l-xiii_enc_15051891_rerum-novarum.html > Acesso em 24 de fevereiro de 2021

 

NEVES, José Roberto Castro. Como os advogados salvaram o mundo. Nova Fronteira: Rio de Janeiro: 2018.

Sobre o autor
Carlos Eduardo Oliva de Carvalho Rêgo

Advogado (OAB 254.318/RJ). Doutor e mestre em Ciência Política (UFF), especialista em ensino de Sociologia (CPII) e em Direito Público Constitucional, Administrativo e Tributário (FF/PR), bacharel em Direito (UERJ), bacharel e licenciado em Ciências Sociais (UFRJ), é professor de Sociologia da carreira EBTT do Ministério da Educação, pesquisador e líder do LAEDH - Laboratório de Educação em Direitos Humanos do Colégio Pedro II.

Informações sobre o texto

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