(In)Segurança jurídica e administração militar: Considerações hermenêuticas sobre o controle judicial dos atos sancionatórios aplicados a militares estaduais

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22/06/2023 às 18:05
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Resumo: Visamos, neste artigo, a compreender o controle dos atos sancionatórios exercido pelo juiz de direito da Justiça Militar Estadual em face da Administração Militar. Para tanto, por meio de uma pesquisa qualitativa de cunho documental, detivemo-nos sobre julgados encontrados em sítios eletrônicos de Tribunais Estaduais, com vistas a descortinar a hermenêutica jurídica envolvida na relação entre o ato regulador da caserna e o controle externo exercido pelo Judiciário, evidenciando, ainda, as dificuldades apresentadas na condução de processos administrativos na esfera militar. Em conclusão, asseveramos pela reavaliação das normas internas da Administração à luz da Constituição Federal de 1988, bem como, pelo aprimoramento técnico-jurídico dos agentes internos às Corporações militares responsáveis pela condução de feitos administrativos (Corregedorias).

Palavras-chave: Justiça Militar Estadual; controle judicial; segurança jurídica.

Introdução

A noção conceitual de controle estatal é inerente à própria ideia de Estado Democrático de Direito, cujo contorno semântico, nesse contexto, é indissociável do conteúdo da expressão “res pública”. A Administração Pública, e aqui se insere a Administração Militar, enquanto atividade estatal, deve estar direcionada à efetivação do interesse público - considerando-o em sua dimensão primeira, porquanto se trata de interesses da coletividade - e deve estar à mercê de instrumentos apropriados de controle, para se evitarem elementos sinalizadores de arbitrariedades, ilegalidades ou lesões a direitos subjetivos.

A atividade administrativa, subordinada ao império da lei como marco indissociável em um Estado republicano, exige do administrador público fiel observância aos ditames “normativos” quando da prática de seus atos. E “normativo”, saliente-se, porque tal conceito transcende aos meros limitadores legais, mesmo que em seu sentido amplo.

Dessa forma, imperioso é discorrer um pouco sobre o instrumento de controle da Administração Militar, quando da emanação de seus atos administrativos punitivos - atividade também discricionária, em parte - frente ao Poder Judiciário. Assunto, aliás, que tem apresentado, hodiernamente, muita inquietação e, por conseguinte, farta evolução doutrinária e jurisprudencial sobre o assunto - todavia sempre acompanhada de justificadas críticas -, de modo a se tornar imprescindível demonstrar seus contornos.

Percebe-se que a tendência nas práticas judicantes de hoje caminha no sentido da ampliação da aplicabilidade do princípio da legalidade, não sendo este analisado apenas em seu sentido estrito - mera legalidade estrita -, mas, sobretudo, sendo considerado sob uma ótica sistêmica, em que é interpretado em sintonia com todo o ordenamento jurídico, o que envolve regras e princípios de direito. Desse modo, sob que prisma podemos analisar a hermenêutica jurídica envolvida na relação entre o ato regulador da caserna e o controle externo exercido pelo Judiciário em face do princípio da segurança jurídica?

Assim, tendo como escopo compreender o controle dos atos sancionatórios exercido pelo juiz de direito da Justiça Militar Estadual em face da Administração Militar, far-se-á uma abordagem sobre alguns conceitos e precedentes judiciais, com vistas a descortinar a hermenêutica jurídica envolvida na relação entre o ato regulador da caserna e o controle externo exercido pelo Judiciário, evidenciando, ainda, a relevância de uma reavaliação das normas internas da Administração castrense à luz da Constituição Federal de 1988 (filtragem constitucional), bem como de um aprimoramento técnico-jurídico dos agentes internos às Corporações militares responsáveis pela condução de feitos administrativos (intérprete imediato).

A presença do juiz de direito na Justiça Militar Estadual: breves considerações

Para os estudiosos do Direito, a Justiça Militar é uma das mais antigas organizações judiciárias da humanidade, argumento esse materializado pela existência de históricos documentos legislativos egípcios, assírios e gregos que atestam a concretude de um ordenamento jurídico regulador da conduta do cidadão militar e da defesa de interesses próprios de corporações armadas (CARVALHO, 2010). Todavia, acrescenta ainda a autora, embora esse tipo de organização já se mostrasse em civilizações antigas, a Justiça Militar, tal qual a entendemos hoje, apenas se tornou mais bem delineada após o surgimento de exércitos permanentes, a exemplo dos romanos. Nesse diapasão, é certo dizer que a Justiça Militar teve sua gênese dentro da própria organização militar, com a fixação de normas disciplinadoras de conduta para os militares e com a previsão de severas sanções em face de seu descumprimento (CARVALHO, 2010).

No Brasil, a origem da Justiça Militar data da transferência da Corte real portuguesa, pois com tal mudança, surgiu a necessidade de se recriarem órgãos do Estado português, ou seja, toda uma estrutura estatal antes inexistente na colônia, incluído nesses órgãos a própria Justiça Militar. De fato, só foi em abril de 1808, após um Alvará do Príncipe-Regente D. João VI, que houve o surgimento do Conselho Supremo Militar e de Justiça, órgão com competência para julgar os militares em segunda instância e para responder às consultas do Rei sobre as questões afetas à matéria castrense, de modo que foi então que se criou o primeiro Tribunal Superior no Brasil - inserido na Constituição da República de 1891 e cuja denominação foi alterada para Superior Tribunal Militar, pela Constituição de 1934. Esta mesma Constituição concebeu, também, a Justiça Militar Federal como órgão do Poder Judiciário (FRANÇA; DUARTE; ALVES, 2017).

Quanto à Justiça Militar dos Estados, esta teve sua organização autorizada por lei federal em janeiro de 1936 (Lei Federal nº 192, de 17 de janeiro de 1936). Todavia, somente teve destaque, como componente do Poder Judiciário, através da Constituição de 1946, que alude, em seus termos: "a Justiça Militar estadual, organizada com observância dos preceitos gerais da lei federal, terá como órgãos de primeira instância os conselhos de justiça, e como de segunda instância, um Tribunal Especial ou o Tribunal de Justiça" (CARVALHO, 2010).

As Constituições de 1934, 1937, 1946, 1967 e 1969 mantiveram o foro de jurisdição militar como órgão do Poder Judiciário. A Constituição de 1988, por seu turno, chancela a Justiça Militar como órgão do Poder Judiciário. Ainda na mesma Carta Política, precisamente no parágrafo 3º do artigo 125, a norma superior prevê a possibilidade de criação da Justiça Militar estadual, a efetivar-se mediante lei estadual de proposta dos Tribunais de Justiça dos Estados, quando o efetivo militar do respectivo ente for superior a 20.000 integrantes (CARVALHO, 2010).

Assim, em alguns Estados da Federação a Justiça Militar Estadual é estruturada em duas instâncias, como é o caso de Minas Gerais, São Paulo e Rio Grande do Sul. Para Carvalho (2010), “nesses casos, a primeira instância é constituída pelos juízes de Direito do Juízo Militar e os Conselhos de Justiça; e a segunda, pelos Tribunais de Justiça Militar, composta por juízes que integram esses órgãos”. Nos demais Estados brasileiros, os Tribunais de Justiça respectivos exercem a função de órgão recursal (de segunda instância) da Justiça Militar.

As Auditorias da Justiça Militar Estadual são equivalentes às varas criminais comuns. Salientando que essa designação foi alterada pela Emenda Constitucional n. 45/2004, restando hoje a nomenclatura “Justiça Militar Estadual”, tão somente. O juiz de direito titular da Justiça Militar Estadual pragmaticamente tem as funções de aplicar o direito e conduzir os trabalhos processuais, incumbindo-lhe decidir colegiadamente com os demais integrantes do conselho julgador as matérias de mérito, sendo-lhe, todavia, privativa a feitura da sentença (ROTH, 2003).

O Juiz de Direito do Juízo Militar Estadual, consoante a hodierna denominação, é um bacharel em Direito, que ingressa na carreira mediante concurso público de provas e títulos para o cargo de Juiz de Direito Substituto, e tem os mesmos deveres, garantias e prerrogativas dos demais magistrados, cabendo-lhe dirigir os trabalhos judiciais e elaborar as sentenças (CARVALHO, 2010).

Por sua vez, os Conselhos de Justiça são os órgãos colegiados de primeiro grau da Justiça Militar Estadual, os quais são divididos em duas categorias, a saber: o Conselho Permanente de Justiça - competente para processar e julgar as praças1; e o Conselho Especial de Justiça – competente para julgar oficiais. O juiz de direito preside os Conselhos de Justiça, que têm por integrantes, além do magistrado, quatro oficiais: um superior, de posto mais elevado que o dos demais juízes, ou de maior antiguidade, no caso de igualdade de posto, e três oficiais com posto mais elevado que o do acusado, ou de maior antiguidade2, no caso de igualdade de posto (CARVALHO, 2010).

Os integrantes militares dos Conselhos de Justiça, em ambas as categorias, são militares da ativa3, sorteados de uma lista enviada pelas corporações militares do Estado à Justiça Militar Estadual, em ato solene e público realizado pelo Juiz togado. Geralmente tais sorteios são disciplinados pela lei de organização judiciária de cada ente federativo.

No tocante à competência, existem diferenças entre a Justiça Militar da União e a Justiça Militar dos Estados. É que o art. 124 da Constituição de 1988 determina que à Justiça Militar compete processar e julgar os crimes militares definidos em lei4. Ademais, o parágrafo 4º do art. 125 da mesma Carta Política dispõe que:

Compete à Justiça Militar estadual processar e julgar os policiais militares e bombeiros militares nos crimes militares definidos em lei e as ações judiciais contra atos disciplinares militares, ressalvada a competência do júri quando a vítima for civil, cabendo ao tribunal competente decidir sobre a perda do posto e da patente dos oficiais e da graduação das praças.

A atual redação do art. 125 da CF/88 foi dada pela Emenda Constitucional n. 45/2004, que ampliou a competência da Justiça Militar dos Estados, ao lhes atribuir, também, competência de natureza cível, a saber, julgar as ações judiciais contra atos disciplinares militares, o que pode ser feito mediante ação ordinária ou mandado de segurança. Nesse ponto, importante salientar que a competência para processo e julgamento, no primeiro grau, de ações de natureza cível na Justiça Militar não pertence aos Conselhos de Justiça, mas aos juízes de direito monocraticamente, ou seja, é de competência singular.

Por ora, pode-se perceber que a figura do juiz de Direito, como condutor de todo processo judicial, está sempre imersa em uma ritualística própria da Justiça Militar, o que permite ao magistrado (juiz de Direito) - que hipoteticamente não teve uma vivência de caserna - contato com elementos conceituais e normativos castrenses vinculados a uma disposição hermenêutica diferenciada, com vistas à garantia de princípios basilares das organizações militares, quais sejam, disciplina e hierarquia5.

Competência cível das Justiças Militares Estaduais: algumas observações

Conforme já anunciado no tópico anterior, a Emenda Constitucional n° 45/2004 trouxe relevantes alterações nas atividades da Justiça Militar Estadual, notadamente por conferir-lhe jurisdição cível. “A inclusão da matéria cível na competência da Justiça Militar provocou importante mudança de paradigma, desafiando os operadores do Direito a vislumbrar os novos problemas cujo julgamento foi conferido a essa Justiça especial” (ROCHA, 2010).

Nessa esteira, está prevista no § 4º do art. 125 da Constituição Federal o seguinte:

§ 4º Compete à Justiça Militar estadual processar e julgar os militares dos Estados, nos crimes militares definidos em lei e as ações judiciais contra atos disciplinares militares, ressalvada a competência do júri quando a vítima for civil, cabendo ao tribunal competente decidir sobre a perda do posto e da patente dos oficiais e da graduação das praças.

Conforme evidenciado no texto constitucional, o dispositivo estabelece que a competência cível da Justiça Militar se refere às ações judiciais impugnadoras de atos disciplinares militares, os quais são atos administrativos que guardam natureza própria, ou seja, os atos punitivos de condutas (comissivas ou omissivas) violadoras das normas disciplinares. Portanto, pode-se aferir do sistema normativo que os atos disciplinares militares são aqueles que envolvem a preservação da disciplina militar, que a Constituição Federal define como pilar organizacional das instituições militares em seu art. 42, como já visto alhures (ROCHA, 2010).

Os estudiosos do direito costumam definir a disciplina como sendo estruturada em um conjunto de normas de conduta que envolve direitos e deveres, as quais devem ser observadas pelos militares no cumprimento do serviço e, em casos limitados, fora dele (CARO, 1990). No que toca ao controle da disciplina, esta sedimenta-se diretamente ligada ao poder hierárquico, que confere poderes de mando aos superiores em relação aos subordinados (ROCHA, 2010).

Nesse contexto, esclarece Carvalho Filho:

A disciplina funcional resulta do sistema hierárquico. Com efeito, se aos agentes superiores é dado o poder de fiscalizar as atividades dos de nível inferior, deflui daí o efeito de poderem eles exigir que a conduta destes seja adequada aos mandamentos legais, sob pena de, se tal não ocorrer, serem os infratores sujeitos às respectivas sanções. Disciplina funcional, assim, é a situação de respeito que os agentes da Administração devem ter para com as normas que os regem, em cumprimento aos deveres e obrigações a eles impostos (2005, p. 48-49).

O poder hierárquico, com sua característica peculiar, verificado na estrutura castrense se justifica pela necessidade da pronta intervenção para a preservação da disciplina. Isso porque compete, a priori, à autoridade administrativa militar manter a disciplina e evitar que seus subordinados se desviem dos objetivos institucionais da Corporação (ROCHA, 2010).

Lado outro, ainda evidencia Rocha (2010), o exame judicial dos atos punitivos, orientado que é pelo sistema de jurisdição cível da Justiça Militar, visa a proteger os direitos fundamentais do cidadão em sua relação com o Poder Estatal, eis que, com o advento da CF de 1988, outros valores passaram a permear essa relação e agora se tem como imperioso tentar uma forma de conciliá-los de maneira adequada.

Desse modo, se por um lado as instituições militares têm por base as ideias de disciplina e hierarquia, os direitos inerentes à cidadania e ao respeito efetivo à dignidade humana são fundamentos do Estado Democrático de Direito (ROCHA, 2010). Infere-se, portanto, que o uso do poder disciplinar para a manutenção dos pilares organizacionais da hierarquia e disciplina nas instituições castrenses é um poder/dever da autoridade administrativa, que somente se tem por regular dentro da ordem jurídica se houver o respeito às garantias fundamentais elencadas na Constituição Federal.

É que a Constituição de 1988, em seus preceitos programáticos, vislumbra uma sociedade isonômica para o Brasil, em que todos, inclusive os militares, são sujeitos de direito sem distinção. Nesse contexto, salienta Rocha (2010):

Não há mais lugar para o irrestrito poder de mando, a obediência irrefletida às ordens ilegais e as punições disciplinares abusivas, eis que os princípios fundamentais da dignidade humana, da proporcionalidade, do devido processo legal, do contraditório, da ampla defesa com os recursos que lhe são inerentes, da autoridade competente e da moralidade administrativa, entre outros, impõem limites concretos ao poder disciplinar.

Portanto, podemos asseverar que a ampliação da competência das Justiças Militares Estaduais no âmbito cível, como mecanismo de controle externo da atuação disciplinar castrense, emerge como reforço de que a atuação administrativa se encontra sempre subordinada à lei, em seu sentido mais amplo.

Nessa conjuntura, relevante é salientar que os textos jurídicos são materializados por enunciados linguísticos, cujas regras que lhe dão significado são o ponto de partida de qualquer atividade hermenêutica (interpretação). Isso porque o processo de extração do sentido e alcance da norma é constituído de duas fases complementares, quais sejam: a atividade legislativa, que culmina na produção do texto de lei; e a atividade do aplicador do direito, que exerce prévia atividade interpretativa, mediante a qual extrai do texto a norma jurídica a ser aplicada no caso concreto. Em sendo assim, importante dissecar brevemente sobre o processo hermenêutico envolvido nessa relação.

A questão da hermenêutica jurídica na relação entre o ato regulador militar e o controle Judicial

A argumentação Jurídica e a interpretação de enunciados linguísticos antecedem a emanação de atos administrativos disciplinares e contribui para a resposta normativo-disciplinar através da observância de critérios de discurso racional na fundamentação desses atos, com o fito de se atingir uma decisão castrense justa.

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Para Dimoulis (2008), a comunicação humana se processa mediante signos - é dizer, algo que tem significado para uma pessoa -, e os significados, por sua vez, dependem em muito do contexto. Nessa conjuntura, o discurso, entendido como um conjunto de elementos pertencentes a um sistema de signos, permite transmitir o significado. Todavia, o entendimento não depende exclusivamente da ação do locutor, mas em grande parte dos ouvintes, eis que são os intérpretes do discurso.

Segundo Machado (2009), “a norma funciona como esquema de interpretação, ou seja, o juízo em que se enuncia que um ato de conduta humana constitui um ato jurídico é o resultado de uma interpretação específica, a saber, de uma interpretação normativa”. Nesse sentido, salienta Kelsen (apud MACHADO, 2009):

A interpretação meramente literal de uma regra positivada pode conduzir a equívocos pela limitação que será imposta na compreensão de seu alcance. Por isso, deve-se fazer a interpretação da regra para extrair o seu teor jurídico, empregando-se a hermenêutica, para que a interpretação possa exprimir o real significado dos valores balizadores da norma. A norma jurídica, com sua força vinculante e persuasiva, não pode ser explicada simplesmente pelo encadeamento lógico das palavras, mas em consonância com a experiência de vida e os valores estatuídos por uma sociedade, balizadores do ordenamento jurídico. Esses referenciais sobrelevam a importância do legislador em utilizar termos linguísticos adequados na elaboração dos preceitos normativos, ao passo que, quanto mais aberto for um conceito utilizado no texto, maior será a tarefa de interpretar. As possibilidades de interpretação são imensuráveis, pois depende do nível cultural de cada ouvinte, ou receptor da mensagem. Logo, o emprego de conceitos abertos tornam imprevisíveis as interpretações.

Portanto, há que se levar em conta a existência dos “conceitos jurídicos indeterminados”6 como elemento integrante da própria atuação discricionária, porquanto é a partir de enunciados linguísticos dotados de amplitude e fluidez que o administrador extrai a norma aplicada à espécie (BANDEIRA DE MELLO, 2007).

Nessa esteira, alguns dispositivos normativos internos definidores de condutas desviantes na esfera disciplinar castrense têm por conteúdo imanente elementos de textura aberta, amplitude intencional e fluidez permissiva à atuação discricionária da Administração militar (características inerentes a conceitos jurídicos indeterminados), com vistas a possibilitar maior subsunção da norma ao caso concreto.7

Neste ponto, a vivência do interprete imediato (aqueles a quem cabe aplicar a norma da caserna no primeiro momento, ou seja, as autoridades militares) nos meandros intrínsecos do militarismo permite a incorporação de elementos próprios de uma moral militar forjada em sua “mundanidade”8 própria, o que integra e define seu “círculo hermenêutico”, dado que a atividade interpretante tem sua gênese em conceitos prévios já trazidos pelo intérprete ao longo de sua existência. Isso porque o intérprete, por se encontrar inserido em um meio social e histórico, é sempre integrante do meio cultural objeto de análise, e é em razão disso que o resultado de sua compreensão já se encontra pré-moldado a um horizonte de significados e intenções já aceitos por ele dentro da sua realidade e de suas experiências (GADAMER, 1999). Nesse sentido, aliás, o saber jurídico não diz respeito apenas às regras encontradas nas normas internas da esfera castrense, mas especialmente aos comportamentos morais condicionados por uma “ética militar” (FRANÇA; DUARTE; ALVES, 2017).

De fato, o encontro do intérprete com o texto linguístico não sucede em uma conjuntura exterior ao tempo e ao espaço, ou indiferente ao seu próprio horizonte de experiências e interesses. Donde se pressupõe que a compreensão orienta-se a partir de uma visão prévia, antecipações subjetivas que emergem da situação existencial do homem, como sinaliza Streck (2002, p. 172): “O mundo só se nos dá na medida em que já termos certo patrimônio de ideias, é dizer, certos pré-juízos que nos guiam na descoberta das coisas.”

Por isso, tudo o que for alvo da compreensão humana, só o será a partir de um modo posicional, de uma visão disposta em pré-conceitos e vivências surgidas da própria experiência, de maneira que o papel do intérprete não se resume no objeto em si, mas na atitude de encontrar meios de interação entre o seu horizonte e o horizonte do texto, a que se chama “fusão de horizontes”.

No tocante à constatação da existência de uma estrutura prévia de valoração que integra a própria existência humana, Heidegger defende que a razão de ser da interpretação reside na importância de que o intérprete esteja ciente de sua condição, a partir da qual lhe caberá ponderar sobre a legitimidade ou o equívoco das impressões pessoais diante da análise do texto, com vista à construção de um diálogo entre os acontecimentos atuais e as circunstâncias do caso, preservando-as ou conferindo-lhes novos sentidos (círculo hermenêutico) (GRONDIN, 1999).

Ao compartilhar da teoria de Heidegger, Gadamer (1997) revela que o indivíduo não contempla um texto com uma consciência vazia, preenchida provisoriamente com a situação em causa, mas, ao contrário, que sua compreensão é inevitavelmente orientada por um conjunto de conceitos preestabelecidos e impressões acumulados ao longo de sua vivência.

Sob essa ótica, há um processo de circularidade na abordagem do objeto, porquanto é a partir de uma leitura do texto que se extrai um projeto incipiente de interpretação, de início fundamentado nos conhecimentos prévios e nas expectativas próprias do leitor em relação ao seu conteúdo, atuando o sujeito sobre o texto e moldando-o em busca de uma legitimidade de sentido.

Assim é que, partindo dessas premissas hermenêuticas em questão, urge identificar um parâmetro interpretativo direcionador para a problemática em questão, porquanto o desfazimento de atos sancionatórios mediante o controle externo da atividade disciplinar militar, quando reiterados, saliente-se, faz emergir a preocupação quanto ao atendimento, por parte da Administração militar, de princípios basilares da Constituição da República Federativa do Brasil que estão relacionados com o serviço público, a saber: eficiência e segurança jurídica. A eficiência, porque uma anulação judicial de ato punitivo acarreta sua repetição, demandando tempo e recursos humanos; e a segurança jurídica, porque se fundamenta na preservação de efeitos do ato que tenham atingido a esfera de direitos do administrado, além de ter como razão precípua assegurar a estabilidade das relações já consolidadas.

Em sendo assim, se por um lado temos o intérprete imediato da norma castrense - a autoridade militar - a extrair o sentido e alcance do enunciado linguístico a partir das suas experiências, de outro temos a figura do magistrado - juiz de direito - que por vezes não teve uma vivência mais aproximada das peculiaridades militares, embora possa ter uma visão satisfatória de sua lógica estruturante, mas ambos intérpretes da mesma norma ensejadora do ato punitivo respectivamente aplicado e controlado.

Nesse contexto, havemos de lembrar que a razão de ser da sindicabilidade judicial dos atos punitivos por meio das Justiças Militares Estaduais é a própria garantia de direitos em um Estado democrático, eis que o uso do poder disciplinar para a manutenção dos pilares organizacionais da hierarquia e disciplina nas instituições militares é um poder/dever da autoridade administrativa, como já enunciado alhures; todavia, a intervenção disciplinar, notadamente a punitiva, só terá legitimidade à luz do ordenamento jurídico se houver o respeito às garantias fundamentais previstas na Constituição.

Desse modo, é patente ser a própria Constituição que emerge como parâmetro direcionador do intérprete, quer seja a autoridade militar, quando da emanação do ato punitivo, quer seja o magistrado, no momento da análise quanto à regularidade normativa do ato sancionador, em uma imperiosa interpretação conforme a Constituição, enquanto método hermenêutico de controle de constitucionalidade, que tem como fito garantir a compatibilidade da norma ao ordenamento constitucional, devendo ser utilizada para dar à lei o sentido à luz da Constituição.

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Nesse diapasão, à luz do ordenamento jurídico vigente, e notadamente em face da Constituição de 1988 como parâmetro hermenêutico, o Poder Judiciário, por meio do juiz de direito da Justiça Militar Estadual, pode exercer o controle dos atos da Administração Militar de natureza sancionatória, quando eivado de vícios de legalidade ou de legitimidade, que vão desde erros procedimentais violadores de direitos e garantias processuais (ex.: contraditório, ampla defesa, devido processo legal, etc.) a posturas interpretativas contrárias a preceitos e princípios do ordenamento jurídico, incluindo as da razoabilidade e o da proporcionalidade.

Considerações sobre o controle judicial dos atos punitivos da Administração Militar Estadual

Na contemporaneidade, é cediço que um Estado Democrático de Direito exige a completa subsunção da coisa pública ao império da lei, com vistas a se atingir o interesse da coletividade. “Trata-se de um pressuposto que remonta às concepções políticas de Rousseau e Montesquieu, amplamente divulgadas no mundo, que condensaram o que seria o Estado de Direito” (FALCÃO, 2012). Foi com tal objetivo, portanto, que o ordenamento jurídico brasileiro concebeu instrumentos de controle da atuação administrativa, com o fito de se evitar abuso e violação de direitos.

Assim, o controle dos atos administrativos pelo Poder Judiciário não só é possível, como é um dos pilares que dá sustentáculo aos interesses da coletividade. Nessa esteira, Carvalho Filho (2007, p. 92) alude ser o ato administrativo: “a exteriorização da vontade de agentes da Administração Pública ou de seus delegatários, nessa condição, que, sob o regime de direito público, vise à produção de efeitos jurídicos, com o fim de atender ao interesse público.”

Para a emanação do ato administrativo, imperioso dizer que este deve sempre obedecer aos limites impostos pela lei, daí se falar em princípio da legalidade no direito público, porquanto o administrador somente poderá fazer, no exercício de sua função, aquilo que estiver permitido na lei, dado que, ao contrário do direito privado, a direito público sedimenta-se na legalidade estrita.

Ademais, em relação à margem de liberdade, o ato administrativo pode manifestar-se de duas formas delineadas pela doutrina, a saber, vinculado e discricionário, consoante explica Falcão (2012):

Conforme o grau de liberdade do agente público diante de um ato que irá praticar pode-se classificar em: vinculado, quando a norma a ser cumprida determina com rigor e objetividade o comportamento da Administração diante de certa situação fática, dizendo qual é o único e possível comportamento que o administrador deverá tomar, não deixando qualquer espaço para uma apreciação subjetiva; e o discricionário, quando a Administração pode optar por uma dentre duas ou mais soluções, todas convalidadas de pleno direito, com base nos critérios de conveniência e oportunidade.

Ainda sobre o tema da discricionariedade, salienta BANDEIRA DE MELLO (apud FALCÃO, 2012) que discricionariedade é a margem de liberdade que conferida por lei ao administrador para escolher, segundo critérios pautados na razoabilidade, um dentre alguns comportamentos legitimamente viáveis, a fim de cumprir o dever de adotar a solução mais adequada à satisfação da finalidade legal.

Mas para além do controle de legalidade, há também que se verificar se o ato emanado da Administração está consoante os princípios orientadores do Direito Administrativo e com o ordenamento jurídico como um todo. Daí se falar em controle de normatividade, o que inclui normas regras e normas princípios.

Relevante salientar que o controle jurisdicional não põe em risco a discricionariedade administrativa conferida por lei ao agente público, pois tal atuação jurisdicional controla a legalidade, em perfeita homenagem com princípio da inafastabilidade da jurisdição estatal em face de ilegalidades ou ameaças a direitos, previsto no art. 5º, inciso XXXV, da Constituição Federal de 1988. Isso porque:

O ordenamento jurídico brasileiro adotou o sistema de jurisdição una, no qual o Poder Judiciário detém o monopólio da função jurisdicional, de modo que os atos da Administração Pública podem ser submetidos àquele. Neste sistema, o Judiciário aprecia lesão ou ameaça de lesão a direitos individuais e coletivos, resolvendo, em caráter definitivo, todos os conflitos existentes, sejam eles relacionados ou não com a Administração, envolvendo particulares ou até mesmo entre estes e órgãos públicos, como bem explicita o direito de ação inserto no art. 5º, inciso XXXV, da Constituição Federal: “A lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito” (FALCÃO, 2012).

Conforme os ensinamentos de Hely Lopes Meirelles (2003, p. 145):

Todo ato administrativo, de qualquer autoridade ou Poder, para ser legítimo e operante, há de ser praticado em conformidade com a norma legal pertinente (princípio da legalidade), com a moral da instituição (princípio da moralidade), com a destinação pública própria (princípio da publicidade) e com a presteza e rendimento funcional (princípio da eficiência). Faltando ou desviando-se desses princípios básicos, a Administração Pública vicia o ato, expondo-o a anulação por ela mesma ou pelo Poder Judiciário, se requerida pelo interessado.

Ainda no tocante ao controle jurisdicional dos atos emanados da administração pública, Di Pietro (2003, p. 616) alude que: “não há invasão do mérito quando o Judiciário aprecia os motivos, ou seja, os fatos que precedem a elaboração do ato; a ausência ou falsidade do motivo caracteriza ilegalidade suscetível de invalidação pelo Poder Judiciário.”

Portanto, é patente a possibilidade de o Poder Judiciário exercer controle externo sobre os atos administrativos vinculados9, porquanto todos os seus elementos estruturantes estão delineados em lei, de modo a tornar suficiente apenas um controle de legalidade em sentido estrito.

Por outro lado, em relação aos atos discricionários, há certo debate doutrinário a respeito, pois se de um lado é incontroverso que se podem controlar os elementos vinculados dos atos discricionários (competência, finalidade e forma), porquanto são elementos definidos em lei, por outro emerge um substrato intangível, que é o mérito administrativo (conveniência e oportunidade), encontrando-se nos elementos motivos e objeto.

Nessa conjuntura, autores como Seabra Fagundes (apud Carvalho Filho, 2007) afirmam que nunca se poderá adentrar no mérito administrativo a pretexto de exercer controle jurisdicional, sob censura de se violar o princípio da separação dos poderes.

No entanto, doutrina mais prevalente, a exemplo de Mello (2007), sustenta que em dados momentos é possível haver um controle de legalidade que penetre indiretamente o mérito administrativo, com vistas a se evitar abusos ou ameaças a direitos dos administrados sob ilegítima alegação de exercício de mérito da Administração. No entanto, é bom salientar que nestes casos não haverá um típico controle de mérito do ato administrativo, mas sim um controle de legalidade e legitimidade (ou um “controle de normatividade”, quando se analisam leis, princípios e regras constitucionais), notadamente por ferir os princípios da razoabilidade e proporcionalidade - princípios constitucionais implícitos -, e o princípio da moralidade.

Desse modo, argumenta Falcão (2012), é notória a possibilidade de controle de legalidade em sentido amplo dos atos administrativos vinculados e discricionários. Além disso, é relevante salientar que o mérito administrativo quando exercido dentro da legalidade jamais poderá ser controlado pelo poder judiciário (CARVALHO FILHO, apud FALCÃO, 2012).

Em arremate, quanto ao ato administrativo discricionário, e aqui se insere os sancionatórios - inclusive os da esfera militar -, pode ser passível de controle, até mesmo no âmbito do mérito, posto que atualmente se impera uma interpretação do ordenamento jurídico em sentido amplo, levando-se em consideração os princípios informadores do direito, o que possibilita afastar possíveis excessos cometidos com base numa suposta discricionariedade. É o que se chama, hoje, de controle de legalidade e de legitimidade, ou simplesmente “controle de normatividade”10, na concepção de Ávila (2015).

Nessa conjuntura, a jurisprudência dos tribunais brasileiros, durante certo tempo, foi tímida com relação ao tema do controle dos atos administrativos discricionários, e era frequente adotar a doutrina que defendia a impossibilidade de controle jurisdicional dos atos administrativos discricionários praticados pela Administração Pública, por entender que o mérito de referidos atos - formado pelo juízo de conveniência e oportunidade do Poder Público - era insindicável, e, portanto, insuscetível de fiscalização pelo Judiciário, restringindo sua análise ao estrito controle de legalidade.

Tal posição era acolhida pelo Superior Tribunal de Justiça – STJ, conforme se vê dos julgados a seguir:

MANDADO DE SEGURANÇA. SERVIDOR. ATO DE REDISTRIBUIÇÃO. DISCRICIONARIEDADE ADMINISTRATIVA. I - O ato de redistribuição de servidor público é instrumento de política de pessoal da Administração, que deve ser realizada no estrito interesse do serviço, levando em conta a conveniência e oportunidade da transferência do servidor para as novas atividades. II - O controle judicial dos atos administrativos discricionários deve-se limitar ao exame de sua legalidade, eximindo-se o Judiciário de adentrar na análise de mérito do ato impugnado. Precedentes. Segurança denegada.11 (grifo nosso)

ADMINISTRATIVO. SERVIDOR PÚBLICO. CONCESSÃO DE HORÁRIO ESPECIAL. ATO DISCRICIONÁRIO. ILEGALIDADE OU ABUSO. INEXISTÊNCIA. - Foge ao limite do controle jurisdicional o juízo de valoração sobre a oportunidade e conveniência do ato administrativo, porque ao Judiciário cabe unicamente analisar a legalidade do ato, sendo-lhe vedado substituir o Administrador Público - Recurso ordinário desprovido.12 (grifo nosso)

Contudo, aos poucos a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça foi mudando o entendimento e passou a admitir o controle judicial mais verticalizado da atividade discricionária da Administração Pública, a partir de então adotando critérios não só de legalidade, mas também de legitimidade, em um verdadeiro “controle de normatividade” por apreciar regras e princípios informadores do direito:

[...] 2. Hoje em dia, parte da doutrina e da jurisprudência já admite que o Poder Judiciário possa controlar o mérito do ato administrativo (conveniência e oportunidade) sempre que, no uso da discricionariedade admitida legalmente, a Administração Pública agir contrariamente ao princípio da razoabilidade. Lições doutrinárias. 3. Isso se dá porque, ao extrapolar os limites da razoabilidade, a Administração acaba violando a própria legalidade, que, por sua vez, deve pautar a atuação do Poder Público, segundo ditames constitucionais (notadamente do art. 37, caput) [...].13

[...] 1. Na atualidade, a Administração pública está submetida ao império da lei, inclusive quanto à conveniência e oportunidade do ato administrativo. [...] 3. O Poder Judiciário não mais se limita a examinar os aspectos extrínsecos da administração, pois pode analisar, ainda, as razões de conveniência e oportunidade, uma vez que essas razões devem observar critérios de moralidade e razoabilidade [...].

[...] No passado, estava o Judiciário atrelado ao princípio da legalidade, expressão maior do Estado de direito, entendendo-se como tal a submissão de todos os poderes à lei. A visão exacerbada e literal do princípio transformou o Legislativo em um super poder, com supremacia absoluta, fazendo-o bom parceiro do Executivo, que dele merecia conteúdo normativo abrangente e vazio de comando, deixando-se por conta da Administração o facere ou non facere, ao que se chamou de mérito administrativo, longe do alcance do Judiciário. A partir da última década do Século XX, o Brasil, com grande atraso, promoveu a sua revisão crítica do Direito, que consistiu em retirar do Legislador a supremacia de superpoder, ao dar nova interpretação ao princípio da legalidade. Em verdade, é inconcebível que se submeta a Administração, de forma absoluta e total, à lei. Muitas vezes, o vínculo de legalidade significa só a atribuição de competência, deixando zonas de ampla liberdade ao administrador, com o cuidado de não fomentar o arbítrio. Para tanto, deu-se ao Poder Judiciário maior atribuição para imiscuir-se no âmago do ato administrativo, a fim de, mesmo nesse íntimo campo, exercer o juízo de legalidade, coibindo abusos ou vulneração aos princípios constitucionais, na dimensão globalizada do orçamento. A tendência, portanto, é a de manter fiscalizado o espaço livre de entendimento da Administração, espaço este gerado pela discricionariedade, chamado de "Cavalo de Tróia" pelo alemão Huber, transcrito em "Direito Administrativo em Evolução", de Odete Medauar. Dentro desse novo paradigma, não se pode simplesmente dizer que, em matéria de conveniência e oportunidade, não pode o Judiciário examiná-las. Aos poucos, o caráter de liberdade total do administrador vai se apagando da cultura brasileira e, no lugar, coloca-se na análise da motivação do ato administrativo a área de controle. E, diga-se, porque pertinente, não apenas o controle em sua acepção mais ampla, mas também o político e a opinião pública.14

O Supremo Tribunal Federal, por sua vez, também passou a se pronunciar favoravelmente ao controle dos atos administrativos de natureza discricionária, em face do princípio constitucional da inafastabilidade da jurisdição, previsto no art. 5º, XXXV da CRFB, consoante se extraí dos seguintes julgados:

AGRAVOS REGIMENTAIS NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO. ATO ADMINISTRATIVO. CONTROLE JUDICIAL. REEXAME DE PROVAS. IMPOSSIBILIDADE EM RECURSO EXTRAORDINÁRIO. SÚMULA 279 DO STF. 1. É legítima a verificação, pelo Poder Judiciário, de regularidade do ato discricionário quanto às suas causas, motivos e finalidade. 2. A hipótese dos autos impõe o reexame de fatos e provas. Inviabilidade do recurso extraordinário. Súmula n. 279 do STF. Agravos regimentais aos quais se nega provimento.15 (grifo nosso)

[...] 2. A autoridade administrativa está autorizada a praticar atos discricionários apenas quando norma jurídica válida expressamente a ela atribuir essa livre atuação. Os atos administrativos que envolvem a aplicação de "conceitos indeterminados" estão sujeitos ao exame e controle do Poder Judiciário. O controle jurisdicional pode e deve incidir sobre os elementos do ato, à luz dos princípios que regem a atuação da Administração [...].16 (grifo nosso)

AGRAVO REGIMENTAL EM RECURSO EXTRAORDINÁRIO. ADMINISTRATIVO. CONTRATAÇÃO TEMPORÁRIA DE PROFESSORES. EXISTÊNCIA DE CANDIDADOS APROVADOS EM CONCURSO PÚBLICO DE PROVIMENTO EFETIVO. ILEGALIDADE. LEI ESTADUAL 6.915/2007. EXAME DO CONJUNTO FÁTICO-PROBATÓRIO. SÚMULA 279 DESTA CORTE. ANÁLISE DE LEGISLAÇÃO LOCAL. IMPOSSIBILIDADE. SÚMULA 280 DO STF. PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DOS PODERES. AUSÊNCIA DE VIOLAÇÃO. POSSIBILIDADE DE CONTROLE JUDICIAL DOS ATOS ADMINISTRATIVOS DISCRICIONÁRIOS ABUSIVOS E ILEGAIS. AGRAVO IMPROVIDO.

(...)

II - Esta Corte possui entendimento no sentido de que o exame pelo Poder Judiciário do ato administrativo tido por ilegal ou abusivo não viola o princípio da separação dos poderes. Precedentes.

III - Agravo regimental improvido.17

Nesse mesmo sentido existem julgados que evidenciam a possibilidade de o Judiciário, mediante controle externo da Administração Militar, desfazer atos punitivos eivados de vícios de legalidade e de legitimidade, é dizer, atos passíveis de sindicabilidade por contrariarem regras ou princípios do direito:

Apelação Cível – Mandado de Segurança – Pedido de anulação de demissão com a consequente reintegração ao cargo – Ordem concedida – Preliminar de inexistência de direito líquido e certo rejeitada – Conjunto probatório frágil – Inexistência de prova idônea e suficiente a sustentar a demissão aplicada – Limites da discricionariedade administrativa e controle pelo Poder Judiciário – Teoria dos motivos determinantes – Nulidade do ato – Recurso da Fazenda Pública e remessa necessária improvidos.18

Policial militar – Pedido de anulação de ato de demissão com a consequente reintegração ao cargo – Liminar concedida e confirmada na r. sentença – Conjunto probatório frágil – Inexistência de prova idônea e suficiente a sustentar a demissão aplicada – Limites da discricionariedade administrativa e controle pelo Poder Judiciário – Teoria dos motivos determinantes – Nulidade do ato – Recurso da Fazenda Pública do Estado e remessa necessária improvidos.19

Policial militar – Apelo recíproco - Pedido de anulação de demissão com a consequente reintegração ao cargo – Sentença procedente que anulou a punição – Conjunto probatório frágil – Inexistência de prova idônea e suficiente a sustentar a demissão aplicada – Limites da discricionariedade administrativa e controle pelo Poder Judiciário – Teoria dos motivos determinantes – Nulidade do ato – Inexistência de óbice à adoção do valor da condenação como parâmetro para a fixação de honorários advocatícios em porcentagem – Apelo da Fazenda Pública e remessa necessária não providos – Possibilidade de concessão de tutela antecipada contra a Fazenda Pública, desde que estejam presentes e sejam demonstrados seus pressupostos autorizadores, nos termos do art. 273 do CPC – Não preenchimento dos pressupostos previstos no art. 273, I e 273, § 2º, do CPC – Apelo do autor também improvido – Mantida, “in totum”, a r. sentença.20

Esse singelo panorama representativo, traçado em relação aos precedentes de alguns tribunais afetos à matéria do controle jurisdicional dos atos administrativos discricionários, incluindo os de natureza punitiva militar, revela que a questão em análise vem ganhando contornos jurisprudenciais cada vez mais definidos e sistematizados, porquanto, embora ainda exista divergência na doutrina em relação à profundidade do controle jurisdicional dos atos não vinculados, a aplicação da tese de que o poder Judiciário pode controlar os atos discricionários da Administração Pública atualmente encontra relevante respaldo, eis que de acordo com o espírito democrático e em harmonia com os princípios da inafastabilidade jurisdicional e da separação de poderes.

Nesse ponto, ratificamos a aludida preocupação, neste trabalho, em se conceber uma postura da Administração militar que fomente o fortalecimento de suas ações à luz dos princípios da segurança jurídica e da eficiência. Isso porque, em face dessa atividade judicante cada vez mais verticalizada na seara castrense, o desfazimento de atos sancionatórios mediante o controle externo da atividade disciplinar militar, quando reiterados, saliente-se, faz emergir a inquietação quanto ao atendimento, por parte da Administração militar, de princípios basilares da Constituição Federal de 1988 que estão relacionados com o serviço público, a saber: eficiência e segurança jurídica. A eficiência, porque uma anulação judicial de ato punitivo acarreta sua repetição, demandando tempo e recursos humanos; e a segurança jurídica, porque se fundamenta na preservação de efeitos do ato que tenham atingido a esfera de direitos do administrado, além de ter como razão precípua assegurar a estabilidade das relações já consolidadas.

Mas partindo do argumento, já sustentado anteriormente, de que é a própria Constituição que emerge como parâmetro direcionador do intérprete, quer seja a autoridade militar, quando da emanação do ato punitivo, quer seja o magistrado, no momento da análise quanto à regularidade normativa do ato sancionador, em uma imperiosa interpretação conforme a Constituição, infere-se que as normas castrenses que sustentam a atuação sancionatório, ou seja, as normas materiais e processuais – as que tipificam as condutas entendidas desviantes e as que orientam a feitura regular do procedimento apuratório, respectivamente - devem guardar compatibilidade com a Constituição Federal em vigor.

Assim, se a Constituição, enquanto produto social, está em constante processo de modificação pelos métodos formais e informais/difusos, deve-se reconhecer que uma interpretação das normas disciplinares castrenses, à luz da Constituição como parâmetro hermenêutico, faz emergir a necessidade de uma filtragem constitucional, ou seja, uma leitura dessas normas internas da Administração Militar à luz da Constituição Federal de 1988, com o fito de identificar elementos linguísticos ou interpretações deles decorrentes que por ventura não guardam mais compatibilidade constitucional.

Além disso, certo é que um aprimoramento técnico-jurídico cada vez constante dos agentes internos às instituições militares encarregados de promoverem uma interpretação primeira da norma disciplinar na seara de processos administrativos, quer seja na condução dos feitos (encarregados, presidentes de comissões disciplinares, etc.), quer seja na sua recepção e controle (corregedorias) fomenta um meio eficaz de controle interno da atividade sancionadora, porquanto viabiliza uma espécie de antecipação por meio de uma atividade hermenêutica mais qualificada e hábil dos dispositivos castrenses à luz da Constituição, evitando-se equívocos e vícios procedimentais comprometedores de direitos e garantias fundamentais dos militares.

Considerações finais

O presente artigo teve o objetivo de compreender o controle dos atos sancionatórios exercido pelo juiz de direito da Justiça Militar Estadual em face da Administração Militar, fazendo-o por meio de uma pesquisa qualitativa e mediante breve análise de julgados encontrados em sítios eletrônicos de Tribunais, com vistas a descortinar a hermenêutica jurídica envolvida na relação entre o ato regulador da caserna e o controle externo exercido pelo Judiciário.

Após sucinta abordagem histórica sobre as Justiças Militares Estaduais e sua competência, notadamente em matéria cível com o advento da Emenda Constitucional n° 45, de 30 de dezembro de 2004, fez-se um breve apanhado conceitual sobre o controle externo dos atos administrativos de natureza punitiva, em que se evidenciou, através de alguns precedentes judiciais, que paulatinamente a jurisprudência das cortes passou a admitir um controle judicial mais aprofundado da atividade discricionária da Administração Militar em seus atos sancionadores, levando em conta critérios não só de legalidade, mas considerando o ordenamento jurídico como um todo.

Ademais, na tentativa de compreender, mediante uma rápida abordagem hermenêutica, os meandros envolvidos no processo de extração do sentido e alcance dos enunciados linguísticos da norma, percebeu-se que a vivência do intérprete é elemento preponderante nesse processo, dado que o ato de interpretar se inicia com conceitos prévios carregados pelo intérprete ao longo de sua história.

Assim, com vistas a priorizar as ideias de eficiência e segurança jurídica envolvidas no controle judicial dos atos sancionatórios da Administração castrense, evidenciou-se como parâmetro direcionador do intérprete da norma a própria Constituição, mediante uma interpretação do dispositivo infraconstitucional que lhe seja conforme, com vistas a garantir a compatibilidade necessária e o respeito às garantias fundamentais.

Em conclusão, evidenciou-se, em síntese, que uma interpretação das normas disciplinares castrenses, à luz da Constituição como parâmetro hermenêutico, faz emergir a necessidade de uma filtragem constitucional, ou seja, uma leitura dessas normas internas da Administração Militar à luz da Constituição Federal de 1988, com o fito de identificar elementos linguísticos ou interpretações deles decorrentes que porventura não guardam a necessária compatibilidade constitucional.

Além disso, evidenciou-se a necessidade de um aprimoramento técnico-jurídico cada vez constante dos agentes internos às instituições militares encarregados de promoverem uma interpretação primeira da norma disciplinar na seara de processos administrativos, com vistas a fomenta um meio eficaz de controle interno da atividade sancionadora, viabilizando uma espécie de antecipação por meio de uma atividade hermenêutica mais qualificada e hábil dos dispositivos castrenses à luz da Constituição, evitando-se equívocos e vícios procedimentais comprometedores de direitos e garantias fundamentais dos militares.

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Sobre o autor
Tiago da Silva Lima

Graduado em Direito pela Universidade Federal da Paraíba - UFPB e pós-graduado "lato sensu" em Prática Judicante pela Universidade Estadual da Paraíba - UEPB, em parceria com a Escola Superior da Magistratura - ESMA da Paraíba. Também possui graduação em Segurança Pública pela Academia de Polícia Militar do Cabo Branco, em parceria com a Universidade Estadual da Paraíba - UEPB, e especialização em Segurança Pública pela mesma instituição. Profissional de Segurança Pública no Estado da Paraíba (Oficial da PMPB), com experiência na área ambiental, corregedoria e assessoria jurídica em Direito Militar. Atualmente, Chefe do Cartório da Vara da Justiça Militar (Auditoria Militar) da Paraíba.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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