Médico é demitido por atendimento humanizado

12/06/2023 às 16:45
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Quem é o vilão da história, o médico ou a mãe do paciente? Nenhum deles! É a nossa sociedade de valores invertidos, e altamente manipulável por opiniões estúpidas.

“Direito e Saúde”

A inusitada demissão de um médico no último dia 18, decorrente do atendimento de uma criança de 9 anos em uma UPA da rede pública de Osasco/SP, tomou as manchetes nas últimas 2 semanas. O paciente apresentava inflamação na garganta e sintomas gripais, e o médico prescreveu amoxicilina, ibuprofeno, dipirona e prednisona. Ao final da receita, o motivo de sua demissão: a divertida prescrição de sorvete de chocolate 2 vezes ao dia, e “Free Fire” (jogo eletrônico) diário. Inconformada, a mãe do paciente jogou o caso nas redes sociais, acusando o médico de debochar do paciente. O profissional foi massacrado pelos internautas, e poucos dias depois, demitido.

Em mais de 15 anos de Direito Médico, quando finalmente acho que já vi de tudo na área da saúde, me deparo com esta absurda demissão. Na prescrição, constava toda a medicação prevista na literatura médica para tratamento da enfermidade do jovem paciente. Segundo a própria mãe, durante a consulta o médico questionou ao garoto o sabor de sorvete que ele mais gostava (o alimento é constantemente indicado por médicos e dentistas para aliviar a dor, pelo efeito anestésico). E o jogo? Possivelmente, só um inofensivo ato de simpatia do médico para distrair a criança, que sofria com os sintomas.

Verdade seja dita: o médico foi punido por mostrar empatia e sensibilidade, o sonho de todo paciente! Em meio a uma rede pública repleta de profissionais que sequer olham nos olhos do paciente, ele se atreveu a ser humano e simpático com uma criança doente, e lamentavelmente, pagou caro por isso.

Talvez ele tenha se esquecido que vivemos em uma sociedade doente, de valores invertidos, na qual reina absoluta a cultura da lacração e do cancelamento social. Que ao menor sinal de descontentamento com algo incontestavelmente positivo e benéfico (como o atendimento dispensado pelo médico no caso em questão), os críticos lhe submetem ao cruel julgamento das redes sociais, a praça pública da era moderna, onde o povo anseia ávido junto à forca para uma execução sumária e precipitada, sem qualquer direito de defesa.

O médico foi exposto, demitido, e teve sua reputação arranhada, de forma tão injusta quanto ocorre com centenas ou milhares de outros médicos em todo o mundo. Mas na maioria dos casos há pelo menos algum dano ao paciente, ainda que sem responsabilidade do médico. Neste caso, absurdamente, o foco de toda a crise é simplesmente um atendimento humanizado e empático.

O que mais chamou a atenção no caso, foi o destempero e a incompetência dos gestores, que mesmo diante de fatos tão claros e uma crítica tão absurda, demitiram o médico para atender à reivindicação da “patota da lacrosfera”. O que eles não esperavam é que, logo em seguida, os lacradores passariam a defender o médico, e a acusar a mãe do paciente.

O resultado? Em poucos dias o próprio prefeito determinou o retorno do médico às atividades. Já a mãe da criança, se defendeu dizendo que sua intenção era mostrar o descaso dos médicos de Osasco, que sequer olham na cara dos pacientes. Sem dúvidas, ela não poderia ter escolhido uma consulta mais inadequada para basear sua crítica, pois o médico em questão agiu exatamente de forma contrária. Para criticar o descaso de alguns, ela atacou a empatia de outro, e causou sua demissão. Mas não podemos presumir que a mãe teve más intenções, como sustentado pelos críticos. Talvez seja somente uma pessoa simples, agindo de forma emocional e precipitada por não compreender a atitude do médico, e por ter um longo histórico de frustrações no atendimento da rede pública de saúde.

Casos como este mostram o quanto a nossa sociedade é frágil sob o ponto de vista moral, ético e empático. Estamos perigosamente sujeitos ao humor dos haters, vivemos sob a ditadura de uma opinião pública cega e precipitada governada por influenciadores tóxicos, que direcionam o povo ao cancelamento social de pessoas inocentes, por motivos absurdos.

Talvez por isto, outros médicos se abstenham em defender publicamente colegas que vivem situações análogas. As chances de se tornarem alvo do cancelamento junto com a vítima são grandes, pois para tanto, não é necessário qualquer má conduta ou mancha na carreira, basta discordar dos haters.

Mas nada explica a negligência dos Conselhos de Classe, que deveriam se manifestar em defesa dos profissionais em situações absurdas como a presente. Procurado pela imprensa, o CREMESP se limitou a informar que “está investigando o caso”. Não esperávamos que o conselho saísse em defesa do profissional antes da apuração definitiva dos fatos, mas explicar à sociedade o óbvio equívoco da crítica, é seu incontestável dever.

Quem é o vilão da história, a mãe ou o médico? Nenhum deles! O vilão é a nossa sociedade, altamente manipulável por pessoas maldosas com opiniões estúpidas. E como membros desta sociedade, é dever de todos mudar esta realidade, para que nossos filhos e netos vivam sem medo, em um ambiente coletivo menos ingrato para com os bons cidadãos.

Renato Assis é advogado, especialista em Direito Médico e Odontológico há 15 anos, e conselheiro jurídico e científico da ANADEM. É fundador e CEO do escritório que leva seu nome, sediado em Belo Horizonte/MG e atuante em todo o país.

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Sobre o autor
Renato Assis

Advogado, professor, escritor, palestrante, debatedor, conferencista; Graduado em Direito pela Universidade FUMEC-MG; Pós-graduado em Direito Processual pela PUC-MG; Pós-graduado em Direito Médico pela Universidade de Araraquara/SP; Pós-Graduando em MBA em Gestão Empresarial pela Fundação Getúlio Vargas/RJ; Professor do curso de Direito Médico, Odontológico e Direito da Regulação da UCA (Universidade Corporativa da ANADEM); Especialista em Terceiro Setor e Direito Médico;

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Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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