A Multiparentalidade e seu reconhecimento nos Tribunais Brasileiros

08/05/2023 às 14:36
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Dener Neres Caminha1

RESUMO

O presente artigo tem como objetivo o estudo da multiparentalidade sob a ótica de sua aplicabilidade consoante à jurisprudência no Brasil. O método de abordagem é dedutivo, sendo desenvolvido pela técnica de documentação indireta, por meio de pesquisa bibliográfica (jurisprudência, publicações e legislação). Desse modo, será apresentada inicialmente, uma análise sobre o princípio do melhor interesse da criança que se torna primordial para a compreensão da evolução do Direito de Família. Nesse sentido, será abordado o conceito da multiparentalidade, observada sua origem e formação, bem como sua aplicação nas relações das famílias do cotidiano. E para uma melhor compreensão serão pontuadas recentes decisões das diversas instâncias da justiça Brasileira, que aplicaram o instituto da multiparentalidade no caso concreto, o qual possibilita a cumulação da filiação de cunho biológico com a filiação sócio-afetiva.

Palavras-chave: multiparentalidade. Filiação. Interesse da criança. Jurisprudência.

INTRODUÇÃO

O direito de Família tem suportado significativas alterações, especialmente no que se trata da constituição e formação das famílias. Existe necessidade jurídica de acompanhar as mudanças sociais, porém, a legislação não avança tão rápido quanto às evoluções sociais que estão em constante mutação.

O anterior Código Civil de 1916 destacou-se pela inovação em termos de legislação civil codificada. Entretanto, não foi capaz de acompanhar a veloz evolução e modificação, em particular, na estrutura da família patriarcal, na qual prevalecia a autoridade do homem (pai), sendo este o chefe de família. A vontade do pai e marido era fundamental e determinante, sendo imposta aos seus dependentes, por determinação legal.

Verifica-se que no decorrer dos tempos, ocorreram constantes mudanças na sociedade contemporânea brasileira. Percebe-se que as diversas formas de famílias surgem por meio de relações de afeto e, cada vez mais, vêm se igualando em direitos às famílias biológicas, causando assim, grande debate quanto à existência de diferenciação e a possibilidade de cumulação entre as formas de filiação.

A multiparentalidade é um instituto de natureza inovadora, pois destoa da corrente tradicional, que não acompanha a rápida evolução do conceito das famílias nos tempos atuais. Trata-se de uma recente possibilidade, ainda sem previsão legal, que surgiu para garantir o direito de reconhecer múltipla filiação, independente se já existente uma filiação devidamente constituída. Assim, a possibilidade que se encontra na doutrina e em julgados, vem sendo cada vez mais aplicada junto ao Direito de Família moderno.

Cabe ressaltar, que o instituto apresentado no presente artigo surgiu com a finalidade de proteger a criança, que é a parte mais vulnerável em qualquer relação. Aplica-se quando se tá em questão um direito fundamental em ter reconhecido um pai e/ou uma mãe e, porque não, dois pais ou duas mães.

Desse modo, a multiparentalidade, mesmo não se encontrando positivada por lei no ordenamento jurídico pátrio, está presente de forma clara em várias famílias atuais. Assim, é de notória constatação por meio de diversos julgados, colecionados a seguir, que tal instituto é mais comum do que se parece. Portanto, merecendo e carecendo de uma segurança jurídica mínima para sua aplicação.

Com o objetivo de realizar uma breve análise da aplicação nos Tribunais brasileiros do instituto da multiparetalidade, o presente trabalho apresenta o princípio do melhor interesse da criança que se torna primordial para a compreensão da evolução do Direito de Família.

Nesse sentido, a análise do conceito da multiparentalidade, observada sua origem e formação, bem como sua aplicação nas relações das famílias do cotidiano. E para uma melhor compreensão, pontua recentes decisões das diversas instâncias da justiça Brasileira, que aplicaram o instituto da multiparentalidade no caso concreto, em que se verifica a possibilita de cumulação da filiação de cunho biológico com a filiação sócio-afetiva.

1. PRINCÍPIO DO MELHOR INTERESSE DA CRIANÇA

A convenção internacional sobre o direito das crianças aprovada na Resolução nº 44/25 da Assembleia Geral das Nações Unidas, em 20 de novembro de 1989 estabeleceu princípios norteadores. Um deles é o princípio do superior interesse da criança que posteriormente foi introduzido na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 e reconhecido pela comunidade internacional como uma reprodução da citada convenção.

Já conforme Tânia da Silva Pereira (2008) o princípio do melhor interesse da criança teve suas origens no instituto parens patrie, empregado na Inglaterra pelo Rei, com o intuito de proteger aqueles que não podiam fazê-lo por conta própria, devendo o bem estar de a criança sobrepor-se aos direitos dos pais.

A observância deste princípio ocorre de forma abstrata e ampla, pois possui caráter orientador tanto para o aplicador como para o legislador, que em qualquer situação o interesse/pretensão do menor deve ser respeitado e mais do que isso, será preponderada em face das demais como forma de garantir os direitos fundamentais de crianças e adolescentes. Assim, busca-se a proteção daquele incapaz e mais vulnerável na ocasião em questão, merecendo ser resguardado tendo em vista a sua fragilidade no momento e a eventual repercussão para seu futuro em sua formação de personalidade.

A aplicação ocorre de modo genérico e interpretativo, porque não se encontra positivado quais seriam as situações ou os fatos que predizem o melhor interesse. Entretanto, destaca-se a obrigatoriedade de respeitar o melhor interesse da criança. Por muitas vezes é esquecido que a prioridade na resolução dos conflitos deve ser em benefício do menor.

O ordenamento jurídico pátrio incorporou de modo consolidado o princípio estudado, assumindo uma responsabilidade de parâmetro para alterações legislativas e jurídicas ao tocante a proteção da infância. Assim em diversos exemplos a interpretação legal e jurisprudencial.

De modo a exemplificar, aliando-se a previsão constitucional e legal - Estatuto da Criança e do Adolescente é possível à destituição do poder familiar quando uma criança se encontra em grave estado de risco, sofrendo agressões em seu domicílio. O acolhimento institucional é um exemplo de medida que busca reguardar o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao respeito como pessoa, à dignidade, entre outros.

Destaca-se a possibilidade de afirmação do princípio da concordância prática de direitos fundamentais, pois em casos que não se consiga proporcionar à criança todos os seus direitos fundamentais, prevalece a decisão que os assegura em maior número, da forma mais ampla possível, não permitindo o sacrifício total de um princípio em relação a outro em conflito.

Ao analisar da forma que os tribunais aplicam, observa-se a abrangência da aplicação do princípio do melhor interesse da criança e do adolescente, em um caso específico o Superior Tribunal de Justiça ao tratar sobre o tema. A ementa do referido julgado:

RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE C/C RETIFICAÇÃO DE REGISTRO DE NASCIMENTO. FILHO HAVIDO DE RELAÇÃO EXTRACONJUGAL.CONFLITO ENTRE PATERNIDADE SOCIOAFETIVA E BIOLÓGICA. MULTIPLICIDADE DE VÍNCULOS PARENTAIS. RECONHECIMENTO CONCOMITANTE. POSSIBILIDADE QUANDO ATENDER AO MELHOR INTERESSE DA CRIANÇA. APLICAÇÃO DA RATIO ESSENDI DO PRECEDENTE DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL JULGADO COM REPERCUSSÃO GERAL. SOBREPOSIÇÃO DO INTERESSE DA GENITORA SOBRE O DA MENOR. RECURSO DESPROVIDO. (REsp 1674849 / RS - RECURSO ESPECIAL 2016/0221386-0 Relator(a). Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE (1150). Órgão Julgador T3 - TERCEIRA TURMA. Data do Julgamento: 17/04/2018).

O princípio do melhor interesse da criança é um norte que orienta o direito de família atual e consequentemente está adstrito com o instituto da multiparentalidade. A matéria de destaque do trabalho deve-se inicialmente absorver a inteligência e o propósito fim do princípio do melhor interesse da criança o qual possui uma relevância primordial e substancial ao tratar de qualquer questão que envolva criança ou adolescente, para assim, entender o porquê se deve aplicar a multiparentalidade em casos específicos.

Portanto, devido a sua importância e expressa previsão constitucional e infraconstitucional, as quais serão detalhadas nos tópicos a seguir, trata-se de norma cogente, logo, de observância obrigatória.

1.1 ABORDAGEM CONSTITUCIONAL

O amparo, em sede constitucional, oriunda da doutrina da proteção integral veio reafirmar o princípio do melhor interesse da criança, existente na legislação brasileira e que encontra suas raízes na Convenção internacional sobre os direitos da criança, adotada pela ONU em 20 de novembro de 1989 e ratificado pelo Brasil por meio do decreto 99.710/90.

Nesse sentido, ergueu-se a motivação para o legislador brasileiro criar o Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA o qual preceitua de forma expressa a proteção integral à criança e ao adolescente. Imperioso destacar, que antes mesmo da elaboração do ECA, a previsão e proteção pelo princípio do melhor interesse da criança já era previsto na Constituição Federal de 1988 sendo mais específico em seu artigo 227.

O supracitado dispositivo legal ganhou uma nova redação após a entrada em vigor da emenda constitucional nº 65 de 2010, passando a ser transcrito:

Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. (Redação dada Pela Emenda Constitucional nº 65, de 2010).

A família, a sociedade e o Estado retêm uma responsabilidade imposta pelo constituinte originário de ser o meio em que a criança, o adolescente e o jovem possam se desenvolver naturalmente no aspecto físico, mental e moral. Para Pablo Stolze (2017) os menores possuem o direito determinado na Constituição, o qual o chama de plena proteção e prioridade absoluta em seu tratamento.

E sob uma análise macro da Constituição vigente, se consegue extrair outras manifestações protetivas com aquele menor de 18 anos. Na perspectiva de Celso Lafer (2005), a inserção de princípios gerais na Constituição Brasileira, como o da dignidade, objetiva marcar a passagem política do regime militar para o regime democrático, indicando um sentido de direção para a sociedade brasileira.

1.2 ABORDAGEM LEGAL - ECA/1990 e CÓDIGO CIVIL/2002

Observado o estudo em face da norma constitucional, não obstante, a legislação infraconstitucional traz importantes mecanismos de influência para a aplicação do princípio mencionado. O Código Civil de 2002 disserta em várias ocasiões, o que a doutrina entende de imposição do princípio do melhor interesse da criança. Assim, de caráter sancionatório aduz em seu artigo 1.637 que a inobservância dos direitos mencionados na Constituição (art.227) poderá resultar aos pais na destituição do poder familiar, sem prejuízo da responsabilização penal e civil.

Ainda aborda, embora de forma implícita a presença de tal princípio ao disciplinar em seus artigos 1.583 e 1.584 a possibilidade da guarda compartilhada entre os genitores desde que respeitado em cada caso concreto o interesse da criança, pois em um processo de guarda é ela a maior interessada e não os seus pais. Observam-se também nos artigos 1.566 e 1.724 - obrigações entre os companheiros e cônjuges.

Vale ressaltar, que essa proteção à criança e ao adolescente no âmbito familiar não ficará restrita apenas aos filhos, mas também aos netos, sobrinhos, etc. Sendo uma nova vertente do direito de família moderno (STOLZE, 2017).

De forma mais específica, em 1990 foi elaborado o Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA que, consequentemente, por razões lógicas, valoriza o interesse da criança e do adolescente. Verifica-se no art.3º a seguinte redação:

A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-se-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade.

Nesse sentido, Gustavo Tepedino (2008) reconhece a consagração do princípio geral do melhor interesse também pelo art. 6º, do Estatuto, ao priorizar a condição peculiar da criança e do adolescente como pessoas em desenvolvimento, na atividade interpretativa da legislação.

Exposto o princípio do melhor interesse da criança e compreendido a importância que lhe foi atribuído por ser responsável por um desenvolvimento digno e justo a toda criança. É perceptível que o direito de família está atrelado por completo, pois em todas as matérias há lacunas que se preenchidas com interesse da criança terá um resultado mais humanizado. Portanto, ao analisar a ótica de filiação se é biológica, registral ou socioafetiva é de suma importância verificar a situação da criança ou adolescente.

  1. A FILIAÇÃO NO DIREITO BRASILEIRO

A priori, a filiação multiparental ou a multiparentalidade significa quando o filho passa a ter em seu registro de nascimento o reconhecimento de dois pais e uma mãe ou duas mães e um pai, por exemplo. Por meio de diferentes formas de filiação.

Diante disso, se faz necessário o estudo das formas de filiação existentes na legislação brasileira. No âmbito jurídico, o conceito de filiação surge de uma vinculação jurídica daquele que proporcionou em face daquele que foi proporcionado, gerando inúmeros direitos e deveres para ambos. Flavio Tartuce (2018, p.1.327) leciona sob um olhar técnico que “a filiação é a relação jurídica existente entre ascendentes e descendentes de primeiro grau, ou seja, entre pais e filhos. Tal relação é regida pelo princípio da igualdade entre os filhos (art. 227, §6.º, da CF/1988, e art. 1.596 do CC).”.

Já para Carlos Roberto Gonçalves (2017, p.408) a análise vai além, tendo em vista, existir aspectos caracterizadores que diferenciam o instituto da filiação em diferentes vertentes, como afirma:

Em sentido estrito, filiação é a relação jurídica que liga o filho a seus pais. É considerada filiação propriamente dita quando visualizada pelo lado do filho. Encarada em sentido inverso, ou seja, pelo lado dos genitores em relação ao filho, o vínculo se denomina paternidade ou maternidade.

Tal é a relevância da filiação, por acarretar obrigações jurídicas e morais, que o constituinte atentou em regular ocasiões para se reconhecer desde logo a filiação. Constata-se nas hipóteses que se permitem presumir a paternidade por questões fáticas “pater is est”, oriundas do casamento, ou oriundas do reconhecimento que pode ser voluntário ou judicial.

Destaca-se também a importância do afeto no instituto da filiação. Pois como qualquer outro animal, o ser humano por natureza detém essa ligação entre pais e filhos, não sendo prescindível ser necessariamente uma questão biológica ou consanguínea.

Há uma grande evolução no direto de família sobre a matéria, porque não há muito tempo, considerava-se “filho de verdade” apenas o nascido no próprio casamento, havendo uma hierarquia entre os filhos. Em contrapartida, a Constituição de 1988 veda tal conduta ao estabelecer a proibição de discriminação de filiação, pois filho é filho não sendo relevante a forma pela qual angariou este status.

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Nesse sentido, apenas por uma questão didática se classifica as espécies de filiação, pois independentemente da origem da filiação os direitos e deveres são absolutamente iguais para todos. Existe a filiação biológica e a não biológica, sendo esta última subdividida em filiação por substituição, socioafetiva e adotiva.

A filiação Biológica é aquela que o filho advém com a herança genética dos pais. Pode ser através de concepção de forma natural de relações sexuais dos genitores, como também, por reprodução medicamente assistida com material genético dos genitores.

Já na filiação não biológica não há essa transmissão genética entre pais e filhos. A filiação por substituição ocorre quando se utiliza a técnica de reprodução assistida heteróloga, a qual consiste na concepção in vitro, contudo sem o fornecimento do gameta de um dos pais ou de nenhum dos pais. O material é oriundo de doações de terceiros não identificáveis.

A filiação adotiva é aquela provinda de um processo de adoção, no qual um adulto aceita outra pessoa como seu filho. E por fim, a filiação socioafetiva, aquela proveniente da relação de afeto estabelecida entre os pais e o filho, o que caracteriza a “posse de estado de filho”, que significa uma situação de fato que existe não baseada em vínculo biológico nem pelo processo de adoção.

A filiação não biológica e em específico a filiação socioafetiva vem ganhando destaque nos debates jurídicos, pois não existe legislação regulando sobre essa hipótese. Surgiram casos em que os magistrados se depararam com situações novas, tendo que decidir com base na analogia, costumes e princípios. Portanto, com esse reconhecimento da importância da filiação socioafetiva aumenta a compatibilidade da teoria da desbiologização do parentesco.

2.1 A DESBIOLOGIZAÇÃO DO PARENTESCO

A nova onda de reconhecimentos de filiações oriundas da relação de afeto desperta a preocupação dos profissionais do direito sobre o tema. O professor João Batista Villela no ano de 1979 já se manifestava sobre essa questão e vislumbrava a mudança de parâmetro da relevância da filiação biológica em face da filiação socioafetiva, criando assim a tese da desbiologização do parentesco.

Mesmo por se tratar de uma obra há 40 anos, o professor Villela (1979, p.16) aborda de maneira cristalina a situação sob a perspectiva da época, contudo com uma visão que antevem o futuro ao contemplar a paternidade construída no amor, no afeto, na solidariedade e não apenas advinda de fato natural, argumenta sobre a desbiologização do parentesco.

A desbiologização da paternidade, que é, ao mesmo tempo, um fato e uma vocação, rasga importantíssimas aberturas sociais. Em momento particularmente difícil, quando o mundo atravessa aguda crise de afetividade, e dentro dele o País sofre com seus milhões de crianças em abandono de diferentes graus e espécies, a consciência de que a paternidade é opção e exercício, e não mercê ou fatalidade, pode levar a uma feliz aproximação entre os que têm e precisam dar e os que não têm e carecem receber.

E ainda cita outros autores (GOLD STEIN, 1974, S. 22-3, apud VILLELA, 1979, p. 16):

GOLDSTEIN, ANNA FREUD e SOLNIT, na mesma linha registram que “para a criança mesma os fatos físicos da geração e parto não conduzem diretamente a um vínculo com os pais. Suas relações de sentimento surgem com base na satisfação de suas necessidades por alimento, cuidados, simpatia e estímulos. Somente quando são os próprios pais biológicos que atendem a esses desejos, a relação biológica determina uma psicológica, na qual a criança possa se sentir segura, apreciada e desejada” .E arrematam categóricos: “Pais biológicos que não estabelecem esse vínculo ou que não vivem em comunidade com a criança são, para os sentimentos desta, nada mais que estranhos”.

Nesse sentido, tal teoria aduz o enfraquecimento da preponderância do vínculo biológico em detrimento do afetivo. A paternidade socioafetiva deixa de ser hipótese excepcional e passa a figurar como a regra junto com a paternidade biológica.

O Código Civil de 2002 de maneira inovadora no âmbito da filiação traz em seu artigo 1.593 que “O parentesco é natural ou civil, conforme resulte de consanguinidade ou outra origem”. Assim, percebe-se que o vínculo de parentesco poderá surgir tanto da origem biológica como de “outra origem”, como a afetividade.

Conforme declara Regina Beatriz Tavares da Silva (2012, p.825) sobre a teoria, “a expressão ‘outra origem’ compreende também a paternidade e a maternidade socioafetivas, cujo vínculo não advém de laço de sangue ou de adoção, mas, sim, de reconhecimento social e afetivo da paternidade”.

Nesse sentido, inclusive, aponta o Enunciado nº 103 da 1ª Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal - CJF no ano de 2012, relativo ao art. 1.593 do Código Civil, que assim dispõe:

O Código Civil reconhece, no art. 1.593, outras espécies de parentesco civil além daquele decorrente da adoção, acolhendo, assim, a noção de que há também parentesco civil no vínculo parental proveniente quer das técnicas de reprodução assistida heteróloga relativamente ao pai (ou mãe) que não contribuiu com seu material fecundante, quer da paternidade socioafetiva, fundada na posse do estado de filho.

Observa-se que na Alemanha, desde 2004, a lei dispõe sobre a paternidade socioafetiva. Na Itália, França e Espanha, a noção de posse do estado de pai tem sido empregada para obstar ações de contestação de paternidade. O direito de família vem evoluindo tornando-se um caminho sem volta, haja vista, reconhecer não apenas novas formas de filiação, bem como a multiparentalidade, que não deverão ser excluídas, pois o retrocesso de um direito fundamental é inadmissível no ordenamento jurídico pátrio.

  1. A MULTIPARENTALIDADE

Segundo já mencionado anteriormente neste trabalho, de um modo mais amplo, admite-se a possibilidade, nos tempos atuais, do reconhecimento da múltipla parentalidade, ou seja, a multiparentalidade. Neste tópico será abordado, em específico, sobre o instituto e o estudo de casos reais que foram levados ao judiciário nas diversas instâncias.

3.1 CONCEITO

A multiparentalidade em sua literalidade já é autoexplicativa. Se fragmentada pode ser conceituada por: “multi” que vem de origem latina (multus), e significa múltiplo e “parentalidade” que significa estado ou condição de pai ou de mãe. Por conseguinte, conceitua-se como o reconhecimento de mais de um vínculo paterno ou materno sendo biológico ou socioafetivo por uma mesma pessoa.

Para Carlos Roberto Gonçalves (2017, p.398) “a multiparentalidade, pois, consiste no fato de o filho possuir dois pais ou mães reconhecidos pelo direito, o biológico e o socioafetivo, em função da valorização da filiação socioafetiva”. Já Luiz Edson Fachin (2003, p. 255-256) de forma implícita mesmo sem mencionar diretamente a possibilidade da dupla paternidade afirma “que a verdade biológica pode não expressar a verdadeira paternidade, em que se cogita a verdade socioafetiva, sem exclusão da dimensão biológica da filiação”.

Conforme já exposto a filiação não natural socioafetiva e a filiação natural biológica são diferentes, pois ambas têm uma origem distinta de parentesco. À medida que a socioafetiva tem origem na relação de afeto, a biológica se origina na herança genética. Dessa maneira, é perfeitamente cabível a existência de uma parentalidade biológica sem afeto entre pais e filhos, e não significa que uma irá prevalecer sobre a outra. Pelo contrário, elas devem coexistir por essa razão de serem distintas.

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Bem como, em face do princípio do melhor interesse da criança, se deve proteger o menor de todas as formas, prevalecendo à ideia de se reconhecer a multiparentalidade por ser mais benéfica ao interesse da criança do que se for excluída a paternidade socioafetiva ou a biológica.

Porém, por se tratar de um assunto pouco debatido e ainda polêmico, o IBDFAM – Instituto Brasileiro de Direito de Família aprovou, durante o IX Congresso Brasileiro de Direito de Família, em Araxá/MG, no ano de 2013 o enunciado nº 9 que pode ser utilizado como uma diretriz para a criação da nova doutrina e jurisprudência em Direito de Família. O referido enunciado versa sobre a multiparentalidade que não possui legislação especifica disciplinando, dependendo da doutrina e da jurisprudência para solucionar os litígios. O Enunciado nº 9 do IBDFAM, assim, preceituou que “a multiparentalidade gera efeitos jurídicos”.

Na contramão do entusiasmo da maior parte da doutrina com a popularização do instituto, outra parte da doutrina civilista mostra-se receosa com a aplicação generalizada da multiparentalidade. Segundo Carlos Alberto Dabus Maluf, Adriana Caldas do Rego Freitas Dabus Maluf e reafirmado por Carlos Roberto Gonçalves (2017, p.398):

Pode não ser assim tão benéfica, seja à pessoa do filho, seja à própria sociedade, visto que, através desta, poderia o filho pleitear pensão alimentícia de dois pais ou duas mães, aumentando os recursos de sua sobrevivência, e também poderia pleitear direitos sucessórios aumentados, tendo em vista a duplicação de genitores. Entretanto, tendo em vista a bilateralidade das ações de família, o filho também teria dever de sustento de um maior número de genitores, os quais poderiam também requerer a guarda do filho e ainda teriam direitos sucessórios quando de sua pré-morte. Além disso, da relação multiparental defluiriam direitos e deveres oriundos da relação parental, como guarda, amparo, administração de bens e demais decisões de ordem pessoal.

Com o reconhecimento de mais de um pai ou mãe, surgem diversos questionamentos que a doutrina e a jurisprudência terão que solucionar. Como por exemplo, tendo o menor três ou mais genitores em seu registro de nascimento, quem deve autorizar a emancipação voluntária? Serão todos os genitores responsáveis a representar e assistir os filhos menores? Como ficaria a obrigação alimentar nesse caso?

Ademais, prezando por uma análise mais detalhada sobre eventuais repercussões e efeitos em geral, o professor Christiano Cassetari (2015, p.01), afirma “ser necessário um estudo minucioso sobre os efeitos jurídicos dessa forma de parentalidade, haja vista que, atualmente, o que se percebe é que os julgados que a reconhecem não explicam quais serão as consequências jurídicas desse reconhecimento.”.

Por fim, é notório que o deferimento da multiparentalidade deve ser aplicado apenas para situações especiais, de absoluta necessidade de harmonização da paternidade ou maternidade socioafetivas e biológicas, até que amadureça o debate sobre o tema e a jurisprudência tenha encontrado, com a experiência do passar dos anos, a solução para os efeitos que irão advir dessa nova posição do direito de família que ainda é recente.

3.2 BREVE ANÁLISE DA JURISPRUDÊNCIA BRASILEIRA

A evolução da jurisprudência brasileira é contundente quando se trata de matéria sobre o direito de família, pois as mudanças são constantes e imediatas. Para a analise do entendimento jurisprudencial abordado no presente trabalho foi feita a busca sobre julgados relacionados ao tema nos seguintes tribunais: Supremo Tribunal Federal, Superior Tribunal de Justiça, Tribunal de Justiça do Estado de Rio Grande do Sul, Tribunal de Justiça do Estado do Ceará, Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, Tribunal de Justiça do Estado de Sergipe e Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina.

Assim, o precedente preponderante se tratava das decisões no sentido de que seria impossível uma pessoa ter duas mães e/ou dois pais, pelo fundamento da impossibilidade jurídica do pedido, conforme caso do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul julgado há 10 anos, em 2009 (TJRS; Apelação Cível 70027112192; Oitava Câmara Cível; Rel. Des. Claudir Fidélis Faccenda; j. 2.4.2009).

Ocorre que, aconteceu a superação deste precedente o chamado overruling. Destaca-se que os mecanismos de superação dos precedentes são rigorosos e para justificar uma mudança, é preciso motivação e argumentação qualificadas para o tribunal alterar seu entendimento anterior.

Isto posto, nos dias atuais encontra-se cada vez mais decisões de que é possível a pluralidade da paternidade ou maternidade. Portanto, aqui se buscou a pesquisa de julgados mais recentes para que se possa ter a real situação do entendimento que vem prevalecendo no judiciário pátrio, são essas decisões que serão apresentadas a seguir.

3.2.1 JURISPRUDÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL

A Suprema Corte se manifestou sobre o tema no RE 860.060, proferindo ainda uma tese de Repercussão Geral Nº 622 no ano de 2016. Em apertada síntese, o caso versava sobre uma ação de investigação de paternidade cumulada com pedidos de alimentos onde a autora alegava ser filha biológica do réu. Contudo, fora registrada por outra pessoa que na época convivia com sua mãe, criando como se sua filha fosse (pai registral/socioafetivo). Por conseguinte, a autora pediu o reconhecimento de sua filiação paterna, a retificação do seu registro civil e a fixação de verba alimentar.

O voto do ministro relator Luiz Fux traz conceitos primordiais sobre a multiparentalidade, mesmo não sendo o objeto principal daquela demanda. Segundo ele, baseado no direito comparado, a Suprema Corte do Estado de Louisiana - EUA, desde a década de 1980 já abordava o conceito de “dupla paternidade” (dual paternity) protegendo o melhor interesse da criança e o direito do genitor à declaração da paternidade. Ainda aduz que as situações de pluriparentalidade não podem restar desamparadas simplesmente pela omissão legislativa, devendo merecer resguardo jurídico tanto os vínculos parentais de origem afetiva como a biológica.

O recurso extraordinário foi julgado improcedente, para reconhecer a paternidade biológica e a socioafetiva da autora, ambas com efeitos jurídicos. Ainda como já citado, foi fixada tese jurídica para aplicação a casos parecidos afirmando que “A paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro público, não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante baseado na origem biológica, com os efeitos jurídicos próprios”.

Desta forma, outros casos semelhantes devem observar a tese em repercussão geral nº 622 fixada pelo STF. Busca-se abordar no presente artigo por julgados atuais, para assim se ter uma real constatação da jurisprudência vigente. Observa-se que em 06/12/2018 o Ministro Marco Aurélio, com base no RE e na tese mencionada, julgou o ARE nº 1114299 entendendo por determinar a inclusão do nome do pai biológico no termo de nascimento do menor, concomitantemente com o do pai socioafetivo. Observa-se em parte esta decisão:

RECURSO EXTRAORDINÁRIO – REPERCUSSÃO GERAL JULGADA – PROVIMENTO.1. O Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios, reformando o entendimento do Juízo, julgou procedente o pedido de retificação de certidão de nascimento de menor para que conste o nome do pai biológico em substituição ao sociafetivo. No extraordinário cujo trânsito busca alcançar, o recorrente afirma violados os artigos 1º, inciso III, e 227, cabeça e § 6º, da Constituição Federal. Alude ao decidido no recurso extraordinário 898.060. Discorre sobre a multiparentalidade e a possibilidade de inclusão do nome do genitor em conjunto com o daquele que participou da criação e educação da criança e com ela desenvolveu vínculo afetivo.(...) 8. No que se refere à multiparentalidade, tem-se que inexiste permissivo legal em nosso ordenamento jurídico que ampare o registro simultâneo de dois pais ou duas mães, podendo, inclusive, causar reflexos não previstos na seara sucessória e previdenciária. Precedentes deste TJDF e do STJ. A decisão impugnada está em contrariedade com a jurisprudência do Supremo. Confiram com a ementa do recurso extraordinário nº 898.060/SC, relatado no Pleno pelo ministro Luiz Fux, julgado sob a sistemática da repercussão geral(...)2. Ante o precedente, ressalvado entendimento pessoal, conheço do agravo e o provejo. Julgo desde logo o extraordinário, conhecendo-o e provendo-o para, reformando em parte o acórdão recorrido, determinar a inclusão do nome do pai biológico no termo de nascimento do menor, concomitantemente com o do pai socioafetivo.

Percebe-se de forma clara o entendido do STF ao se referir sobre a perfeita possibilidade da dupla filiação de um individuo. Assim, por se tratar do mais elevado tribunal do ordenamento jurídico seu precedente deve ser observado pelos tribunais de todo território nacional, inclusive por já ter tese em repercussão geral firmada sobre a matéria.

3.2.2 JURISPRUDÊNCIA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

O Superior Tribunal de Justiça parece também ter aderido o mesmo entendimento da Corte Constitucional, a qual já firmou o entendimento de que é possível a concomitância das paternidades biológica e afetiva, a denominada multiparentalidade.

No julgamento do RECURSO ESPECIAL Nº 1.584.407 – DF em 28 de novembro de 2018 de relatoria do Ministro Moura Ribeiro, o litígio consistia em um caso de adoção unilateral de uma criança. O adotante agora casado com a genitora da infante pedia o reconhecimento da paternidade socioafetiva sem desconstituir a paternidade biológica da criança, por inclusive o pai biológico concordar com o pedido formulado.

O pedido do autor fora indeferido pelo magistrado de primeiro grau, com fundamento de não ter o direito positivado. Como também, após apelarem da referida decisão o Tribunal local negou o provimento ao apelo por entender que a adoção rompe o vínculo com a família original, carecendo de amparo legal o pedido do autor. Insatisfeito, o requerente recorreu do acórdão. Logo, o caso chegou ao Superior Tribunal de Justiça.

O ministro Moura Ribeiro em seu voto observa o precedente supracitado da Suprema Corte e ressalta que a multiparentalidade é uma realidade jurídica onde “a concomitância das parentalidades sociafetiva e biológica não é uma regra, pelo contrário, a multiparentalidade é uma casuística” devendo ser observado em cada situação fática levada ao judiciário, para sempre observar os princípios do melhor interesse da criança, da afetividade e da parentalidade responsável.

Portanto, neste caso em concreto o Resp. Nº 1.584.407 foi julgado parcialmente procedente ao reconhecer a possibilidade jurídica da multiparentalidade, afirmando a paternidade socioafetiva do adotante (autor), com a preservação da paternidade biológica. A ementa ficou assim:

CIVIL. RECURSO ESPECIAL. RECURSO INTERPOSTO SOB A ÉGIDE DO CPC/73. FAMÍLIA. PRETENSÃO DE RECONHECIMENTO DA PATERNIDADE SOCIOAFETIVA, COM PRESERVAÇÃO DA BIOLÓGICA. ALEGADO CERCEAMENTO DE DEFESA EM RAZÃO DO INDEFERIMENTO DE DILIGÊNCIA DESNECESSÁRIA. LIVRE CONVENCIMENTO MOTIVADO. PRECEDENTES. FALTA DE INTERESSE PROCESSUAL. POSSIBILIDADE JURÍDICA DE RECONHECIMENTO DA MULTIPARENTALIDADE. PRECEDENTES. RECURSO ESPECIAL PARCIALMENTE PROVIDO.

Imperioso destacar que não se trata de um julgamento isolado, de entendimento minoritário por parte de certo Ministro. Há de se desenvolver uniformização da tese apresentada, que em diversos outros recentes julgados também foi o fundamento defendido. Como por exemplo, o Recurso Especial nº 1.704.972/CE de Relatoria do Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, julgado em 09/10/2018; e o Recurso Especial nº 1.674.849/RS de Relatoria do Ministro Marco Aurélio Bellizze, julgado em 17/04/2018.

3.2.3 JURISPRUDÊNCIA DOS TRIBUNAIS DE JUSTIÇA

Não obstante a observância obrigatória dos precedentes dos tribunais superiores sob todos os tribunais do território nacional argumenta sobre a desbiologização do parentesco de forma extraordinária nota-se a obediência dos Tribunais de Justiça pela mesma linha de entendimento ao abordar o tema.

Após a decisão do Supremo Tribunal Federal se posicionando firmemente sobre a multiparentalidade, vê-se o benefício da padronização da jurisprudência, não restando divergência na aplicação do instituto e a celeridade nos julgamentos das situações levadas ao judiciário, pois serão resolvidas no âmbito local sem ser necessário recorrer ao STJ ou STF.

Em um caso de íntima semelhança já abordado no presente artigo, o Tribunal de Justiça do Estado de Sergipe em 29/01/2019 ao julgar a Apelação Cível nº 201800802191 na ação de adoção, reconheceu a procedência do pedido autoral em declarar a paternidade socioafetiva do autor em relação à criança, para todos os fins de direito, devendo ser incluído no registro de nascimento conjuntamente com o nome do pai biológico, mencionando expressamente na ementa do acórdão a aplicação da multiparentalidade, observe-se:

Apelação Cível – Adoção cumulada com Destituição de Pátrio Poder – Situação que não caracteriza o abandono que enseja a medida extrema da destituição do poder familiar – Réu que demonstra interesse em se reaproximar do menor, assim como os avós paternos – Laudos social e psicológico que atestam as boas condições morais e financeiras do pai biológico – Recorrente que cria o menor há mais de seis anos, tempo em que é casado com a genitora daquele – Fortes vínculos afetivos desenvolvidos entre o infante e seu padrasto – Reconhecimento da paternidade sócio-afetiva que se impõe para assegurar a dignidade dos envolvidos – Multiparentalidade que deve ser instituída com a retificação do registro de nascimento da criança – Recurso conhecido e provido - Decisão Unânime.

Já em uma Ação própria declaratória de paternidade socioafetiva o Tribunal de Justiça de Santa Catarina em 07 de fevereiro de 2019 julgou pela procedência do pedido autoral reconhecendo que a existência da paternidade biológica devidamente registrada não é óbice ao reconhecimento concomitante da filiação socioafetiva, transcrição em íntegra da tese nº 622 da repercussão geral do STF.

Neste caso, o padrasto (autor) convivia com a genitora biológica das crianças e assim assumiu a criação como se pai fosse. Essa situação perdurou por vários anos até o falecimento da mãe. Com isso, o padrasto requereu judicialmente para que fosse reconhecida sua paternidade socioafetiva. O TJ-SC com base no precedente do Supremo Tribunal Federal de imediato reconheceu a possibilidade da existência da paternidade socioafetiva em comum acordo com a paternidade biológica. A ementa do acórdão restou fixada assim:

APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DECLARATÓRIA DE PATERNIDADE SOCIOAFETIVA. AUTORES QUE, DESDE A TENRA IDADE, FORAM CRIADOS PELO PADRASTO, QUE CASADO COM A MÃE BIOLÓGICA DELES MANTEVE-SE ATÉ VIR A ÓBITO. RELAÇÃO QUE PERDUROU POR QUASE TRINTA ANOS, DURANTE OS QUAIS AS PARTES DISPENSARAM-SE RECÍPROCO TRATAMENTO PATERNO-FILIAL. RELAÇÃO HAVIDA ENTRE OS LITIGANTES QUE EVIDENCIA INEGÁVEL POSSE DE ESTADO DE FILHO PELOS AUTORES.EXISTÊNCIA DA PATERNIDADE BIOLÓGICA DEVIDAMENTE REGISTRADA QUE NÃO É ÓBICE AO RECONHECIMENTO CONCOMITANTE DA FILIAÇÃO SOCIOAFETIVA. TESE N. 622 DO STF EM JULGAMENTO COM RECONHECIDA REPERCUSSÃO GERAL. APELO CONHECIDO E PROVIDO.

Tal entendimento, a princípio, parece observar a proteção dos interesses das crianças, princípio constitucional. Devido a esse entendimento afirmado na jurisprudência brasileira, observa-se que já existem decisões de imediata aplicação do instituto, como forma de proteção para aquele mais vulnerável na relação. Contudo, as consequências dessas decisões ainda não estão completamente esclarecidas. No tópico a seguir, será demonstrado um caso concreto em que se foi instituída a multiparentalidade em sede de decisão interlocutória de juízo de primeiro grau.

3.2.3.1 DECISÃO INTERLOCUTÓRIA DE JUÍZO DE PRIMEIRO GRAU

Inicialmente, cabe destacar que a decisão do magistrado de primeiro grau não pode ser considerada como um precedente com status de jurisprudência. Deve-se observar apenas o ato do magistrado que por meio de uma decisão não definitiva abordou o tema estudado, demonstrando assim, a tendência na pacificação do entendimento.

Nesse sentido, é destacável o benefício trazido pela uniformização do precedente dos tribunais superiores sobre a matéria debatida em questão. Ademais, surge um questionamento, deve-se conceder e aplicar de imediato o instituto da multiparentalidade, por exemplo, em fase de cognição sumária oriundo de um pedido de tutela provisória, para depois durante a fase instrutória se verificar ou não a veracidade da existência de mais um vínculo de filiação?

Respondendo em afirmativo a essa indagação consoante ao exemplo a seguir, este foi o entendimento da Juíza titular da Vara de Família da Comarca de Fortaleza-CE, em uma ação de reconhecimento de paternidade cumulada com anulação de registro de nascimento. O autor buscava como o objeto principal o reconhecimento da paternidade biológica em verdade a da paternidade registral.

Durante o processo foi realizado o exame de DNA e constatado que o autor se tratava realmente do pai biológico. Contudo, o litígio surgiu após a manifestação do pai registral que não discordou com o reconhecimento do pai biológico, porém gostaria de ser reconhecido como pai socioafetivo da criança por já existir um vínculo afetivo entre eles.

Assim, a presente ação pairava no ponto controvertido ao tocante a existência ou não da sociafetividade do pai registral para com a criança. Em 19/02/2019 a magistrada julgando a título de antecipação de tutela de urgência, com base no resultado do exame do teste de DNA e verificando a paternidade biológica do autor, reconheceu de imediato a multiparentalidade paterna da criança devendo constar no registro da menor os dois pais até a sentença final de mérito do processo que analisará a permanência ou não da dupla filiação paterna. Observa-se parte da decisão:

(...) Diante do exame genético de fls. 15/17 e documento da menor, será incluído a filiação do pai biológico, a titulo de antecipação de tutela de urgência, onde a mesma passará a ter a multiparentalidade paterna, passando esta a se chamar: M. C. F. L. C., filha de T. B. C. e os pais dele como avós paternos,de nomes B. C. e M. S., devendo ser alterado o registro de fls. 14, para que conste a dupla filiação paterna, até sentença final de mérito a qual analisará a permanência da dupla filiação paterna. (...) – (proc.: 0137267-76.2017.8.06.0001).

Desse modo, a decisão mesmo não sendo definitiva prezou em estabelecer a multiparentalidade como meio de resguardar o direito da criança de forma imediata e que em momento posterior em uma cognição exauriente, colhendo todas as provas possíveis, fosse possível proferir a decisão mais justa de se retirar ou não o pai socioafetivo do registro da menor.

É notória a modernização no conceito de família nos tempos atuais, pois a dupla filiação ou a multiparentalidade está presente nas famílias brasileiras, como se pode observar neste artigo. A jurisprudência vem evoluindo na tentativa de acompanhar o direito de família contemporâneo protegendo as novas formas de filiação e famílias que surgem ao passar do tempo com a evolução da sociedade.

Outrossim, como em qualquer assunto em relação a direitos de menores e família deve o Poder Judiciário e Legislativo atuar com cautela, haja vista se tratar de questões peculiares que geram efeitos irreparáveis para os envolvidos no problema. Portanto, quando por diversas ocasiões o judiciário é provocado para pacificar litígios sobre tal assunto, é necessária uma analise ampla e sistêmica sobre a origem desses conflitos.

Dessa forma o instituto da multiparentalidade surgiu para tutelar bens jurídicos essenciais sob a perspectiva de obedecer os princípios da dignidade da pessoa humana e o principio do melhor interesse da criança. Portanto, o Poder Judiciário busca cumprir seu papel pacificador efetivando direitos que ainda não foram positivados pelo legislador.

CONCLUSÃO

A formação da sociedade é caracterizada pela identificação dos diversos conceitos de conceitos de formação familiar, que passou e continuará a passar por mudanças com o decorrer do tempo. Observa-se que é esperada a evolução das relações humanas e sociais e o surgimento de novas formas de estabelecer vínculos entre as pessoas. Por exemplo, como demonstrado nesse breve estudo, em um passado recente não era possível, por impossibilidade jurídica, reconhecer a existência de dois pais ou duas mães no mesmo registro de nascimento de um filho.

Assim, surge a previsão da multiparentalidade, a qual busca resguardar aquela pessoa que possui dois diferentes pais ou mães provenientes do parentesco natural e civil. Garante-se, portanto, para estes casos o reconhecimento da múltipla filiação. É importante ressaltar que não vigora a antiga diferenciação entre filhos, pois não persiste a importância de uma origem de filiação (registral, biológica ou afetiva) sobre a outra.

Desse modo, foi possível observar que o instituto apresentado possui suas peculiaridades, isto posto, tem-se o reconhecimento de mais de um pai ou mãe que possuirá os mesmos deveres jurídicos e morais para com o mesmo filho, de forma solidária. Em contrapartida, para estes surgem também suas obrigações junto a todos os pais que o reconheceram. Destaca-se que, se efetivada a proteção da criança, a qual se encontra em fase importante de formação, a aplicação da multiparentalidade terá cumprido seu papel.

Ademais, frisa-se o posicionamento trazido pelo STF de que deve ser possibilitado o ato de realizar extrajudicialmente o registro da parentalidade de um filho afetivo, com quem o genitor não possui herança genética e, mesmo sabendo de todas as consequências jurídicas que a parentalidade irá originar nesse caso, assume como se gerado tivesse.

Como também o entendimento do Superior Tribunal de Justiça, Tribunal de Justiça de Santa Catarina e Tribunal de Justiça do Estado de Sergipe que reconheceram e caminham para um entendimento consolidado sobre a aplicação da multiparentalidade no direito brasileiro. Inclusive, já tendo manifestações em sede de decisão não definitiva de primeiro grau de jurisdição que reconheceu em caráter de tutela provisória a multiparentalidade no caso concreto.

Assim, é relevante a preocupação com essas situações que se busca a concretização do vínculo afetivo mesmo já constatado o vínculo biológico ou registral, pois o interesse que prevalece é o da criança.

Diante das breves reflexões aqui mencionadas, verifica-se que o ordenamento jurídico está em um processo de adaptação à nova realidade social que se instaura na vida de muitas famílias brasileiras, já que a multiparentalidade possui respaldo na doutrina, na jurisprudência e em princípios constitucionais, não sendo aceitável que venha a legislação tornar um empecilho à aplicação do instituto.

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  1. Advogado. E-mail: [email protected]

Sobre o autor
Dener Neres Caminha

Advogado. Pós-Graduado Lato Sensu em Direito Processual Civil – Faculdade Única de Ipatinga – FUNIP e Pós-Graduado Lato Sensu Planejamento Previdenciário.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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