O crime de apropriação indébita e a descaracterização do "animus rem sibi habendi" em defesa do acusado

06/10/2022 às 18:02
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Vejamos bem, caros leitores: o crime de apropriação indébita consiste na vontade, no animus de apropriar-se de coisa alheira móvel. Todavia, é imperioso elucidar o caso a uma análise da elementar do tipo penal, o núcleo da tipificação. Veja-se que a elementar, conforme mencionado, refere-se a "apropriar-se de coisa alheia", conquanto, essa apropriação vem precedida do animus, da vontade, do desejo de assenhorear a res.

Mas, por que toda essa digressão para conceituar algo que, talvez, pareça claro a priori? Entenda que, e, obviamente visando uma atuação defensiva no caso concreto, a caracterização da apropriação indébita, deve restar cristalina nos autos, de outro tanto, não havendo a certeza do animus de se assenhorear da coisa, de transferir a propriedade do bem móvel, não transcendendo esta seara, não há que se falar em crime.

Neste caso, a saciedade de ter o agente a coisa para si, deve estar comprovada. Diante de tais verbos, objetivamente inseridos para formarem uma tese defensiva, elencando, quiçá, possíveis desdobramentos a serem levantados em juízo, mostra-se pertinente colacionar alguns ensinamentos doutrinários, dos quais, não devemos nos furtar a leitura.

 De acordo com a lição de Cezar Roberto Bitencourt:

"a configuração do crime de apropriação indébita reclama a presença de duas elementares: a posse ou a detenção legítima e anterior da coisa alheia móvel; e a apropriação da res para si, com ânimo de dono, invertendo a natureza da posse. O tipo subjetivo, a seu turno, é o dolo, correspondente à vontade livre e consciente de se assenhorear do bem (Tratado de direito penal, 9. ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2013. v. 3, p. 240)". sem grifos no original

Seguindo-se a esse sentir, Bitencourt elucida a questão da consumação:

 "A consumação da apropriação indébita e, por extensão o aperfeiçoamento do tipo, coincidem com aquele momento em que o agente, por ato voluntário e consciente, inverte o título da posse exercida sobre a coisa, passando a dela dispor como se proprietário fosse. Contudo, a certeza da recusa em devolver a coisa somente se caracteriza por algum ato externo, típico do domínio, com o ânimo de apropriar-se dela. O animus rem sibi habendi, característico do crime de apropriação indébita, precisa ficar demonstrado à saciedade. Se o agente não manifesta a intenção de ficar com a res e, ao contrário, a restitui à vítima tão logo possível, o dolo da apropriação indébita não se aperfeiçoa. [...] Consuma-se, enfim, com a inversão da natureza da posse, caracterizada por ato demonstrativo de disposição da coisa alheia ou pela negativa em devolvê-la (op. cit. p. 242).". grifei

Percebam que se mostra primordial analisar eventual Denúncia pelo parquet, à luz do animus da posse ou propriedade, ou seja, se de fato houve apenas um "mero apossamento" ou fatidicamente a real intenção era transcender, imiscuir-se à transferência da propriedade da res, ao revés, narrando a denúncia, elementos diversos dos característicos em epígrafe, não se está diante de uma apropriação indébita.

Notem a percepção do Superior Tribunal de Justiça acerca do tema:

"O crime de apropriação indébita se consuma no momento em que o agente, livre e conscientemente, inverte o domínio da coisa que se encontra na sua posse, passando a dela dispor como se fosse o proprietário" (HC 200.939, Rel. Min. Jorge Mussi, j. 25.9.12). grifei

  A norma penal em seu Artigo 168, descreve o seguinte: Art. 168. Apropriar-se de coisa alheia móvel, de que tem a posse ou a detenção.

Conquanto, não basta apenas apropriar-se da coisa, mas também, agir com o animus rem sibi habendi, com a vontade de não a devolver ao verdadeiro proprietário, transpondo assim, a mera posse para um agir como se dono fosse consubstanciado essa atitude, ao elemento subjetivo.

Repare, Luiz Regis Prado nos aponta:

A consumação ocorre com a exteriorização de vontade do agente de não restituir, ou seja, no momento em que o sujeito ativo inverte o título da posse ou detenção, com animus rem sibi habendi (Curso de direito penal brasileiro: parte especial. 10. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. p. 515). grifo nosso

Cabe ainda elencar o posicionamento do Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina sobre a temática:

APELAÇÃO CRIMINAL. CRIME DE APROPRIAÇÃO INDÉBITA MAJORADA EM RAZÃO DE EMPREGO (ART. 168, § 1º, III DO CÓDIGO PENAL). CONJUNTO PROBATÓRIO QUE DEMONSTRA SATISFATORIAMENTE ANTERIOR POSSE LÍCITA DA COISA ALHEIA. AUSÊNCIA DE PROVA QUANTO A INVERSÃO DA NATUREZA DA POSSE. ABSOLVIÇÃO QUE SE IMPÕE POR FALTA DE PROVA DA MATERIALIDADE DO DELITO. - No crime de apropriação indébita não basta a demonstração da anterior posse lícita da coisa alheia, sendo necessária a inversão da natureza da posse para consumação do delito. - A prova documental e testemunhal demonstrou tão-somente a posse lícita da coisa alheia, o que impede a prolação de sentença condenatória, pois não há prova da existência do fato típico. - A juntada do movimento do caixa de todo o período em que ocorreram os pagamentos é indispensável para comprovar a existência da apropriação. - Com absolvição fica prejudicada a análise da adequação da pena aplicada. - Parecer da PGJ pelo conhecimento e desprovimento do recurso. - Recurso conhecido e provido para absolver a recorrente com base no art. 386, II do Código de Processo Penal (Ap. Crim. 2008.080453-6, Rel. Des. Carlos Alberto Civinski, j. 8.9.09) grifei

À luz do acórdão acima, renomado areópago catarinense não destoa, observe ainda a fundamentação do Tribunal sob os aspectos mencionados alhures, notadamente a análise sobre a elementar do tipo penal e o animus de transcender a mera posse para a propriedade, ou seja, tornar-se dono de coisa alheira, assenhorear-se da res, ao ímpeto de não a devolver:

APELAÇÃO CRIMINAL. APROPRIAÇÃO INDÉBITA CIRCUNSTANCIADA EM RAZÃO DA PROFISSÃO (CP, ART. 168, § 1º, INC. III). SENTENÇA CONDENATÓRIA. RECURSO DO ACUSADO. 1. AUSÊNCIA DE DOLO. CONTRATO DE DAÇÃO EM PAGAMENTO DE MOTONETA. VEÍCULO LEVADO PELO CREDOR CONCEDENTE JUNTAMENTE COM OS DEMAIS BENS DO ACUSADO. ANIMUS REM SIBI HABENDI NÃO DEMONSTRADO. 2. ELEMENTAR DO TIPO PENAL "COISA ALHEIA" NÃO CARACTERIZADA. BEM MÓVEL DE PROPRIEDADE DO ACUSADO. CONTRATO DE DAÇÃO EM PAGAMENTO NÃO PERFECTIBILIZADO. TRADIÇÃO NÃO OPERADA. 1. Para configuração do delito de apropriação indébita faz-se necessária a comprovação do animus rem sibi habendi; assim, inexistindo prova de que o acusado agiu com a intenção de inverter o título da posse, sua absolvição é medida que se impõe. 2. Para a configuração do delito de apropriação indébita se faz necessário o assenhoreamento de bem móvel alheio, sendo impossível a configuração do crime se o agente repassa bem de sua propriedade à terceiro. RECURSO CONHECIDO E PROVIDO. (TJSC, Apelação n. 0004403-50.2009.8.24.0067, de São Miguel do Oeste, rel. Sérgio Rizelo, Segunda Câmara Criminal, j. 21-06-2016). Grifei

Os verbos em questão, as expressões apostas na doutrina e jurisprudência quanto a configuração delitiva do crime previsto no Artigo 168 do Código Penal, não por menos, servem como embasamento à suscitar a dúvida ao Juízo, de tal forma, deve-se nortear o processo sob outro ângulo, a estreme de dúvidas de que o Acusado queria devolver a res, ou seja, não havendo provas robustas de que o Acusado não queria devolver o bem supostamente apropriado, não há como consignar a prática delitiva do mencionado artigo.

Cediço que, em conformidade com a jurisprudência do Estado de Santa Catarina e, o posicionamento do Superior Tribunal de Justiça, bem como, Doutrina majoritária que norteia a presente, para a caracterização do crime de apropriação indébita, faz-se necessária a demonstração, a comprovação da vontade, do intuito de ter para si coisa alheia móvel, revertendo-se a posse, utilizando-se como se dono fosse.

Vale reprisar:

"[] Se o agente não manifesta a intenção de ficar com a res e, ao contrário, a restitui à vítima tão logo possível, o dolo da apropriação indébita não se aperfeiçoa. [...] Consuma-se, enfim, com a inversão da natureza da posse, caracterizada por ato demonstrativo de disposição da coisa alheia ou pela negativa em devolvê-la (op. cit. p. 242)".

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Sopesando, quiçá, eventualmente as provas dos autos e, não evidenciado que o Acusado tenha se negado a devolver a coisa ou ainda, as tenha devolvido "tão logo quanto possível", não configura a res sibi habendi.

A essa assertiva, ainda que tenha ocorrido o recebimento de valores por parte do Acusado e a demora em repassar/devolver a coisa à suposta vítima, ainda assim, faltaria ao Acusado a caracterização, a demonstração, a efetivação do animus rem sibi habendi, nesse contexto, urge colacionar à presente, trecho do Acórdão acima:

[] De outro lado, ainda que houvesse ocorrido a transferência da propriedade, faltaria ao agente o animus rem sibi habendi, pois não há indício de que o Apelante tinha a vontade de não restituir a coisa. [](TJSC, Apelação n. 0004403-50.2009.8.24.0067, de São Miguel do Oeste, rel. Sérgio Rizelo, Segunda Câmara Criminal, j. 21-06-2016)

Eis que, não há a confirmação do elemento subjetivo, tal qual, o de não restituir a res, ou seja, quando interpelado pelo proprietário, aquele que a detém indevidamente, não a restitui, invertendo a posse desta em seu proveito. Sobre o elemento subjetivo, leciona Luiz Regis Prado:

"A consumação ocorre com a exteriorização de vontade do agente de não restituir, ou seja, no momento em que o sujeito ativo inverte o título da posse ou detenção, com animus rem sibi habendi (Curso de direito penal brasileiro: parte especial. 10. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. p. 515)". Grifei

Consubstanciado a isto, a Jurisprudência e Doutrina dominante apontam para a clara demonstração da inversão da posse da res para caracterização do crime de apropriação indébita, não bastando apenas que o agente a possua anteriormente de forma lícita, mas que este, se negue a devolvê-la e/ou restituí-la a quem de direito.

Sobretudo ainda, em cotejo aos ditames doutrinários e jurisprudenciais, na ausência do elemento subjetivo, tal qual o animus rem sibi habendi, opera-se a ABSOLVIÇÃO do Acusado, sem, contudo, mencionar ainda o princípio constitucional do in dúbio pro reo.

Alusiva afirmação exsurge com supedâneo à Jurisprudência do Estado de Santa Catarina:

Veja-se:

"APELAÇÃO CRIMINAL. APROPRIAÇÃO INDÉBITA (ART. 168, § 1º, III, DO CÓDIGO PENAL). MATERIALIDADE DO DELITO QUE PRESSUPÕE A COMPROVAÇÃO DO ELEMENTO SUBJETIVO DO TIPO, CONSISTENTE NA VONTADE DE APROPRIAR-SE DE COISA QUE PERTENCE A OUTRA PESSOA. PACTO VERBAL DE HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS. CONTROVÉRSIA ACERCA DA FORMA DE PAGAMENTO DO TRABALHO PRESTADO. AUSÊNCIA DE DEMONSTRAÇÃO CABAL DE QUE A VERBA RECEBIDA PELO CAUSÍDICO, A ELE NÃO PERTENCIA. DÚVIDA QUE MILITA EM FAVOR DO RÉU. SENTENÇA ABSOLUTÓRIA MANTIDA. 1. A materialidade do delito de apropriação indébita é aferida por intermédio da configuração do termo "apropriar-se", que significa "apossar-se ou tomar como sua coisa que pertence a outra pessoa", conforme leciona Guilherme de Souza Nucci, em sua obra Código Penal Comentado, 10ª ed., RT, 2010, p. 790. 2. Havendo controvérsia acerca da forma em que seria realizado o pagamento dos honorários advocatícios, não há como se imputar ao apelado a prática da ação núcleo do tipo penal 'apropriar-se', uma vez que esta pressupõe a vontade específica de apossar-se de coisa pertencente a outra pessoa. 3. Inexistindo nos autos prova cabal de que o valor efetivamente pertencia a outra pessoa (no caso, ao cliente), aliada à circunstância de que este confessou que nada pagou ao advogado, torna-se verossímil a tese defensiva de que o montante eventualmente obtido com êxito na ação serviria como pagamento do trabalho prestado pelo causídico. 4. Ausente a configuração do elemento núcleo do tipo penal, diante da não comprovação do animus rem sibi habendi, milita em favor do réu o princípio in dubio pro reo, impondo-se, em consequência, a manutenção da sentença absolutória. SENTENÇA DE ABSOLVIÇÃO MANTIDA. APELO CONHECIDO E DESPROVIDO. (TJSC, Apelação Criminal n. 2011.087978-4, de Modelo, rel. Francisco Oliveira Neto, Segunda Câmara Criminal, j. 30-04-2012). grifei".

A materialidade do delito de apropriação indébita é aferida por intermédio da configuração do termo "apropriar-se", que significa:

"apossar-se ou tomar como sua coisa que pertence a outra pessoa", conforme leciona Guilherme de Souza Nucci, em sua obra Código Penal Comentado, 10ª ed., RT, 2010, p. 790.

Em análise ao núcleo do tipo penal, referido Doutrinador, preleciona que o elemento subjetivo do tipo é o dolo, inexistindo a forma culposa.

Assim:

"a vontade específica de pretender apossar-se de coisa pertencente a outra pessoa está ínsita no verbo 'apropriar-se'. Portanto, incidindo o dolo sobre o núcleo do tipo, é isso suficiente para configurar o crime de apropriação indébita" (ob. Cit., pág. 791).

Eventualmente a prova oral coligida nos autos deve ser suscetível de solucionar a controvérsia quanto a negativa ou não em devolver/restituir os valores, pois, de um lado poder-se-á o ora Acusado afirmar que jamais se negou a restituir a res, e de outro tanto, pode a suposta vítima, afirmar a negativa do Acusado.

De outro tanto, deve a Acusação apontar com clareza o momento e a forma com que ocorrera a negativa por parte do Acusado, se é que ocorrera!

Pertine elencar em arremate que, ausente o elemento núcleo do tipo penal, diante da não comprovação do animus rem sibi habendi, milita em favor do Acusado ainda, o princípio do in dubio pro reo, além da carência de outras características já apontadas, as quais, em sua ausência, não perfectibilizam o cometimento da elementar do tipo, impondo-se, em consequência, a prolação da sentença absolutória.

Sobre o autor
Rangel Cesar Cane

Advogado, atuante nas áreas de Direito Penal, Bancário e Contencioso Cível. Associado no Escritório Staudinger Advocacia na Cidade de Ibirama - SC. Entusiasta das áreas de filosofia clássica, contemporânea, política e religião.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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